sábado, 28 de julho de 2012

Teleanálise | "Batman e o vizinho: Hasta la vista, baby"

Malu Fontes

Durante a semana, notícias tendo como elemento central a banalização da morte nortearam as principais manchetes dos telejornais internacionais, nacionais e locais. Sim, esses fenômenos são uma constante no jornalismo, mas aqui e acolá episódios nos quais essa banalidade se manifesta os hierarquizam de tal modo numa ordem de horror e non sense que ainda surpreendem. Partindo do global para o local, nos Estados Unidos, no estado do Colorado, na cidadezinha de Aurora, uma plateia de batmaníacos esfregava as mãos de ansiedade para uma sessão de estreia do filme à meia noite, quando, no escuro, irrompeu o imponderável. Uma saraivada de tiros. 12 mortos, 58 feridos e um país de novo boquiaberto.
MARKETING - Num país, os EUA, onde todas as naturezas de ações de marketing são possíveis, numa cultura local do culto às armas de fogo na qual qualquer moleque consegue comprar um arsenal de guerra sem qualquer dificuldade e numa sucessão de casos em que adolescentes ou adultos jovens perturbados já inscreveram uma longa história de violência, primeiro achou-se que os tiros não passavam uma ação de marketing associada à estreia. Depois, houve uma correria às lojas de armas da cidade para comprar mais e mais exemplares delas e, simultaneamente, a imprensa do mundo repetiu a pergunta que faz sempre e para a qual nunca se tem resposta objetiva e diante da qual todas as especulações malucas disputam um lugar entre as possibilidades de explicação: por que esse fenômeno se repete tanto nos Estados Unidos e como evitá-lo, já que a população não abre mão do seu culto quase passional às armas e à liberdade de comprá-las sem restrições?
RATO - No Brasil, a Polícia Militar de São Paulo chocou o país ao executar (pelo menos) dois inocentes: um publicitário que não parou o carro à noite quando ordenado a fazer isso e um jovem que fugiu com medo porque a carteira de habilitação estava vencida. Além disso, matadores que não se sabe quem vêm barbarizando na cidade nas últimas semanas, executando e chacinando sem que se saiba de quaisquer razões e desfechos para tais crimes. Num outro episódio noticiado na imprensa internacional, um jovem italiano que chegou à mesma São Paulo em um dia, para morar e trabalhar, foi assassinado no dia seguinte, numa tentativa de assalto frustrada no trânsito, em uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Veio para o Brasil e morreu como um rato perseguido por exterminadores dispostos a explodir o primeiro cérebro que encontram pela frente troca de um relógio ou um celular.
FASCÍNIO - Sim, o mundo, Brasil incluído, choca-se com jovens como o estudante de medicina James Holmes, o auto-intitulado Coringa da sessão noturna de Aurora, mas pouco se esforça para lembrar que a natureza da banalização da violência pode até ser de ordem diferente, mas a nossa é tão banal e brutal quanto. Quando contados os cadáveres de um em um, aqui mata-se/morre-se muito mais que lá. A Polícia Militar de São Paulo, por exemplo, mata mais que toda a Polícia dos Estados Unidos (e nos Estados Unidos). Por que o espanto com a matança dos outros é maior do que com a nossa, a doméstica incluída? Por que a matança de lá é a de um homem só, que, em surto assassino, revolve interromper a vida de dezenas? Aqui, de um em um, os matadores matam muito mais, enquanto o brasileiro olha horrorizado para a violência americana coletiva desses episódios, talvez porque encontre neles um quê de fascínio hollywoodiano. Violência é violência, assassinato é assassinato e cada país tem a sua forma banal de matar seus cidadãos. O que faz de James Holmes um sujeito mais assustador que um assassino anônimo que explode a cabeça de um motorista numa rua de São Paulo, querendo apenas levar um objetinho para casa? Lá é loucura e aqui é pobreza e desigualdade? Esses fenômenos não justificam a banalização da morte do outro. Nem lá, nem aqui.
VIZINHO - No terreiro local, uma quadrilha inicialmente descrita como formada por quatro jovens de classe média e um deles considerado rico em qualquer sociedade, divertiam-se roubando mansões num condomínio de luxo nos arredores de Salvador, onde cada uma das cerca de 400 mansões custam entre um e 10 milhões. Entravam no espaço privilegiado e supostamente protegido por grades, câmeras e seguranças graças ao apoio logístico de um dos integrantes da quadrilha, morador do oásis desde criancinha. A razão dos assaltos, que incluíam seqüestros relâmpagos e torturas psicológicas nas 10 famílias de moradores vitimadas desde 2011, era banal: gastar o dinheiro com noitadas. Segundo o delegado, os rapazes pagavam contas de até 15 mil numa única balada. Os rapazes negam os cálculos. Dizem que eram só cinco mil por noite, em média.
Lá e cá, portanto, o que há em comum na violência cometida é a gratuidade da ação, do comportamento de quem mata, tortura, violenta, persegue e achaca, Polícia Militar incluída. No caso dos condomínios horizontais de luxo, não deixa de ser curioso que 10 em cada 10 pesquisas feitas por pesquisadores do campo das ciências sociais apontam para um detalhe que deveria intrigar quem investe milhões nessas mansões em nome do sonho de viver feliz sob dois guarda-chuvas: a segurança e a liberdade. Um estudo recente feito por uma pesquisadora da Universidade de Brasília mostra por A mais B que praticamente a totalidade de atos delituosos, conflituosos e de insegurança registrados em condomínios tem como autoria os próprios moradores. A leitura dessas pesquisas deixaria boquiaberto quem sonha com os gramados, as crianças brincando com portas abertas e a confiança plena nos vizinhos nos condomínios de classe alta.
HASTA LA VISTA - A banalização do mal se concretiza quando se come uma pipoca no cinema e um sujeito arranca-lhe da poltrona para lhe matar; quando seu vizinho de porta do condomínio chama os amigos para lhe seqüestrar apenas em nome do desejo de sair para entornar 10 mil em uísque, como repetiram os telejornais de Salvador durante a semana. É como se esses sujeitos vissem nisso tudo uma brincadeira, como se quase piscassem o olho após cruzar a fronteira do intolerável e dissessem às suas vítimas, como vingadores ocos de um futuro bestial: ‘hasta la vista, baby’. E a referência aqui não é o disco homônimo do U2, mas puro Schwarzenegger.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 29 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com





 

sábado, 21 de julho de 2012

Teleanálise | "Carminha, a professorinha e o professor de ponta"

Malu Fontes

Esta semana Avenida Brasil chegou ao 100º capítulo levando ao ar uma trama que há muito não prendia tanto o telespectador, ancorada em ganchos sucessivos e não deixando saudades do tempo em que o público de novelas tinha que esperar 180 capítulos para ver o desfecho central se realizar ou para ver um mistério anunciado no primeiro capítulo ser revelado. Do lado de cá da tela, no caso do telespectador de Salvador, outros 100 capítulos sem nenhuma atratividade e nenhum desfecho também foram ao ar na mesma semana: a greve dos professores da rede pública estadual, há 100 dias fora da sala de aula.
BISPO - Enquanto em Avenida Brasil Adriana Esteves vem dando um banho de interpretação, sobretudo em se tratando da TV, um veículo que deixa pouquíssimo espaço para o ator crescer em seus personagens a ponto de explodir em talento numa tela tão pequena, na chanchada da greve baiana não houve espaço para outra coisa senão para a explosão do grotesco. Do lado do Governo, além do já tradicional modus operandi lentíssimo do governador Jaques Wagner de só negociar conflito quando nem mesmo o bispo, literalmente (no caso, o Cardeal Arcebispo Primaz de Salvador, Don Murilo Kirieger, que sempre tenta ajudar em negociações entre grevistas e Governo do Estado) suporta mais tanto imobilismo, mais duas cenas grotescas marcaram essa greve para nunca mais saírem da história da (péssima) educação na Bahia.
SHOW - A primeira partiu do próprio Governo, que parecendo acreditar que educação e fast food são uma coisa só, deu a deixa para que a população incorporasse em seu repertório uma expressão ímpar: professor de ponta. Não, não se fala de cornos, chifres ou algo do gênero, como inicialmente a expressão sugere, mas de uma suposta elite eleita por um professor-empresário-privilegiado cuja empresa foi contratada pelo Estado por milhões, sem licitação, para que seu dono pagasse uns caraminguás pequenininhos a professores tidos pelo próprio ‘professores de ponta’ e os colocasse para dar uns aulões, aulas do tipo que qualquer pessoa de bom senso acha uma ribanceira intelectual: juntar trocentos alunos em grandes espaços, como ginásios de esportes e conchas acústicas e oferecer-lhes como aula substitutiva às interrompidas pela greve uns tais aulões. Os cursinhos estão cheios desses aulões, né? Professores cantam, rebolam, dão show e, nos vestibulares que importam os alunos dançam. Ou são aprovados nas faculdades capengas e 10 anos depois não conseguem ter uma carteira da OAB porque mal sabem ler e escrever.
NINA COVER - Quando o Governo parecia ser o único dono da cereja do bolo, por vender aos alunos das escolas em greve bugalhos (estrelados por professores de ponta) por alhos, dando-lhes aulões ao invés do processo educacional que a Constituição garante, foi a vez de uma professorinha sem talento resolver incorporar a Carminha má da greve, transformando uma auxiliar de limpeza da Assembléia Legislativa em uma Nina cover atirada ao lixão da ofensa. A senhorinha letrada (sim, já não era nenhuma jovem inexperiente imberbe) achou por bem acocorar-se no chão de um dos banheiros da Assembléia e jorrou com gosto sua uréia, mesmo com dois sanitários com vaso branco, água limpa e portas bem à sua frente. Flagrada em cena tão educativa por auxiliar de limpeza, que lhe questionou a razão do ato, dona professora não titubeou. Disse-lhe, com ares de quem se sente a bala que matou Kennedy, que fez, sim, o nº 1, e se a moça a importunasse, ela iria fazer o nº 2. Disse mais: a auxiliar teria obrigação limpar os dois, pois quem mandou não estudar?
SENTA LÁ - No mesmo dia em que o depoimento em vídeo da auxiliar de limpeza com esse conteúdo assombrava em alguns telejornais de Salvador, a Globo local exibiu uma entrevista com um aluno da rede pública, há 100 dias sem aula. Perguntado sobre o que estaria fazendo nesse período, o garoto resumiu sua condição no que se refere àquilo que o estado lhe oferece. Disse que ficava olhando o caderno, com a mente vazia. Resumo da ópera: na Bahia, bem remunerado pelo Estado é o professor de ponta, professora faz nº 1 e nº 2 no chão de órgão público e considera que auxiliares de limpeza são subalternas e têm obrigação de limpar seus detritos e os jovens, se depender da educação que recebem, não passarão de zumbis com mentes vazias. E os marxistas embolorados certamente acham que a culpa disso tudo é da Carminha global, que aliena as massas e não as estimula a pensar e a emprenhar a mente. Ah, tá. Senta lá, professor de ponta.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 22 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 14 de julho de 2012

Teleanálise | "Por que opção de criança pobre ao trabalho é roubo ou prostituição?"

Malu Fontes

Diferentemente do ‘Na moral’, de Bial, anunciado com estardalhaço pela Globo como um programa inteligente e na prática um saco de vento chinfrim, o já consolidado Profissão Repórter, conduzido por uma das unanimidades da casa, Caco Barcelos, embora espremido na grade, pouco ou nada divulgado e sem tempo, sempre consegue em meio a todas as essas agruras, tirar leite de pedra. Duas edições recentes do programas foram aulas de bom jornalismo sobre temas invisíveis, aqueles que a imprensa pouco dá atenção e o telespectador menos ainda.  

Criança transportando carrinho na feira. Crédito: Reprodução G1/Profissão Repórter

Logo após a confissão do assassinato do empresário Marcos Matsunaga pela mulher, Elize, e com o propósito de evidenciar o quanto a cobertura de crimes passionais e de gênero, ou de quaisquer formas de violência doméstica, por parte da imprensa, obedece, sim, sempre, a vieses de gênero e de classe, o Profissão Repórter levou ao ar um programa sobre casos semelhantes e invisíveis na imprensa de homens e mulheres que mataram ou que morreram em circunstâncias de passionalidade semelhante e não mereceram uma linha nos jornais nem um segundo na TV. Ou seja, se os envolvidos são ricos, de classe média, brancos, famosos ou apenas se vivem em grandes centros urbanos e desfrutam de modos de vida privilegiados, a garantia de uma cobertura ampla, irrestrita e que dura dias nos telejornais é certa. Já se os envolvidos são homens e mulheres pobres que vivem como ratazanas escondidos na pobreza de suas vidas de quinta e habitando favelas aonde as câmeras não chegam ou em zonas rurais do chamado Brasil profundo, a televisão sequer toma conhecimento.
ESQUARTEJAMENTO - O tema desse programa específico era ilustrar quão dessemelhante é a cobertura dos crimes tidos como com grande potencial de midiatização e aqueles envolvendo casais miseráveis, independentemente do que dizia ou diz a legislação após a Lei Maria da Penha. Barcelos e seus pupilos mostravam que, na mesma semana do esquartejamento na mansão suspensa de luxo dos Matsunaga, inúmeras marias e josés pobres de marré deci na periferia de São Paulo também mataram e morreram em circunstâncias passionais. Mulheres pobres que mataram companheiros ainda mais lenhados mofavam nas delegacias encarceradas sem sequer terem tido ainda a possibilidade de contato com um parente e muito menos com um defensor público, já que advogado para ouvi-las e às suas razões nunca terão.
CASTANHA QUENTE - Outra edição digna de aplausos foi ao ar na última terça-feira, abordando o drama de milhares de crianças brasileiras que trabalham trocentas horas por dia para sustentar suas famílias, a si mesmas e sob o aplauso, principalmente da sociedade que as cerca. Um dos elementos que sempre chama àtenção nas abordagens jornalísticas sobre o trabalho de crianças é o bordão repetido por pais que defendem a importância do trabalho de seus filhos e, coincidentemente, também repetido por muita gente boa que vive muito bem e que não sabe o que é colocar seus rebentos para trabalhar descascando castanhas torradas ainda quentes, catando mariscos ou arrastando pesados carrinhos de compras em feiras livres, cenas comuns na infância pobre do Nordeste. Todos têm um argumento de defesa na ponta da língua: ‘ah, mas é melhor a criança estar trabalhando do que roubando, do que pegando no que é alheio ou se prostituindo’.
Ora, como bem enfatizou o Profissão Repórter da última terça, quem foi que estabeleceu esta lógica perversa segundo a qual toda e qualquer criança pobre só tem essas duas escolhas: o trabalho ou o roubo, no caso dos meninos, ou a prostituição, no caso das meninas? O discurso, incorporado acriticamente pelos pais, para quem colocar os filhos para trabalhar nos primeiros anos de vida é prêmio e proteção, não permite compreender que crianças tratadas com normalidade pelo mundo não precisam trabalhar cedo e nem por isso se tornam ladrões nem prostitutas. Vão para a escola.
 
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 15 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

domingo, 8 de julho de 2012

Teleanálise | "Na moral? Desligue a TV e vá ler um livro. Mas volte."

Malu Fontes

Nas últimas semanas, não apenas o telespectador, mas o leitor de jornais, de sites, o dono de qualquer conta de e-mail, usuário de redes sociais e qualquer brasileiro que não esteja em Marte vem sendo bombardeado com saraivadas de informação emitidas com potência de míssil publicitário pela Rede Globo sobre as estreias de Gabriela, Fátima Bernardes e Pedro Bial. A divulgação é tão massiva que o público fica sabendo delas mesmo involuntariamente, mesmo que não tenha o menor interesse em ver tais atrações. E a Globo, quando se trata de jornalismo de umbigo, ou seja, de transformar em pauta seu próprios produtos, é mais eficiente que milagreiro.


Programa "Na moral", que estreou na Globo no último dia 5. Foto: Artigolandia
SACO DE VENTO - Nesta quinta, Bial estreou o seu “Na Moral’, anunciado aos quatro ventos como um programete cabeça, para discutir em profundidade temas decolados e com convidados e atrações idem. A primeira edição foi um assombro do que a TV é capaz de dizer e fazer para convencer o público médio de que usa verniz quando, na verdade, oferece madeira de demolição corroída de cupim. O programa, antes de tudo, exige uma maratona de teimosia do público, pois, para chegar a ele, era preciso esperar as peripécias peripatéticas do casamento do parlapatão Cadinho em Avenida Brasil, passar pela Grande Família, arranhar os ouvidos com a baianidade caricata prosódica do elenco de Gabriela e finalmente deparar-se com o saco de vento de Bial.
NO PAU DO GATO - Dizendo-se um programa de debate, Na Moral é, como se deve esperar de debates na TV aberta, pílula de farinha fast food disfarçada de conversa cabeça. Na estreia, o programa já disse o quanto está disposto a brincar de circo. Num tapete com ares de persa fake da 25 de março, colocou um elenco improvável mas apropriadíssimo para esse tipo de atração: um professor de filosofia, Luiz Felipe Pondé, hoje o intelectual mais badalado da mídia eletrônica e de revistas ditas antenadas, e já chamado no Twitter de Caco Antibes da filosofia, por suas posições arrasadoras sobre o politicamente correto e sobre tudo o que diz respeitos aos ditos fracos e oprimidos. Ou frascos e comprimidos, como prefere Rita Lee; uma gostosa, desbocada e decotadíssima, Maria Paula, agora se reivindicando psicóloga, com nada a dizer sobre tudo a partir do seu batom carmim (a sua pérola da noite foi confessar que, ao invés de cantar ‘atirei o pau no gato’, prefere mesmo é se atirar no pau do gato (sic)) e um professor com trejeitos de cientista maluco para fazer exatamente o papel do freak circense: Antonio Carlos Queiroz, o autor da Cartilha do Politicamente Correto, segundo ele censurada pelo então presidente Lula. Queiroz usava uma boina quadriculada que não ficaria bem na TV nem na cabeça de um inglês com cachimbo e parecia, com uma caneta baratinha na mão, estar em cima de um caixote na praça, vociferando contra os impropérios cometidos contra Tia Nastácia, o Saci e não sei mais quem.
Aliado a isso, Alexandre Pires bancando um DJ que não tocava nada, instalado num cenário hype, ilustrado com grafismos, objetos vintage e um livro vermelho de arquitetura, para dar um ar descolado, claro. Ah, e tinha ainda um ineditismo: a primeira platéia completamente muda da TV Brasileira. Mas é preciso confessar: mesmo muda e imóvel, fica mil vezes melhor na fita que a espalhafatosa e inacreditável platéia collor block desocupada de Fátima Bernardes. Já Bial, cada vez que aparecia e começava a falar em close, dava a nítida impressão que iria anunciar com os teasers de sempre o eliminado do dia do BBB. E o mais engraçado: com tanta gente e um assunto anunciado como tão sério, a ditadura do politicamente correto e o assédio sexual e moral no trabalho, o tempo era inexistente: meia hora. Descontado o tempo dos intervalos comerciais, o tempo de um cochilo, já que passava da meia noite.
AÇOUGUE - Sim, na TV aberta, a receita para um debate profundo e cabeça é juntar uma fauna, um apresentador fazendo o tipo gatão de meia idade, durar meia hora, não deixar ninguém dizer nada que ultrapasse a faixa dos segundos e terminar como tudo termina na cultura de massa: no mercado das carnes. Ao final, atores vestidos de macaco e um açougue de mulheres de biquínis exíguos, metros de bunda, trocentos mililitros de peitos e coxas que fazem as mulheres horti-fruti parecerem sílfides, pagodeavam rebolizantes no vídeo.
O melhor do primeiro Na Moral foi a deixa possibilitada pela trilha sonora de encerramento. Os créditos do programa subiram ao som de Falcão, o ícone pop do brega kitsch, entoando ‘homem é homem, menino é menino e viado é viado”. É mesmo. E TV é TV, entretenimento em pílulas aceleradas que divertem anunciando que debatem. Quer debater ou aprender alguma coisa? Recupere o mantra engraçadinho que a MTV tinha há tempos: desliga essa TV e vai ler um livro. Mas volte, pois, na moral, quem gosta de profundidade é escafandrista ou os interessados nas técnicas de propulsão do Pré-Sal.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 07 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 30 de junho de 2012

Teleanálise | "Urubu doméstico, cabra adestrada e galinha humana" (versão integral)

Malu Fontes


Este título é apenas uma tentativa, que já nasce frustrada, de traduzir o circo de horrores em que se tornou a televisão. E o que é pior: para tudo o que aparece de muito ruim ou muito raso, hoje, na TV brasileira, os profissionais das emissoras, devidamente emprenhados pelo ouvido pelos colegas dos departamentos comerciais e de marketing, vomitam um argumento que já vive pronto na ponta da língua: é isso o que a Classe C quer ver.

Custa a crer que nenhuma entidade tenha, até agora, se apresentado disposta a se queixar juridicamente contra esse estigma de burrice, ignorância e preguiça intelectual que vem sendo colado pelos meios de comunicação aos integrantes da nova Classe C, recentemente endinheirada. Quem é louco para ter uma ONG para chamar de sua, fica a dica, como diz a gíria: corra e crie urgente uma ONG para pedir indenização por danos morais à mídia brasileira argumentando que esta vem atribuindo de forma ostensiva e preconceituosa à classe C a condição de burrice extrema e de consumidora das piores coisas que se tem feito na indústria cultural.

CLASSE BÁRBARA - Sobre essa burrice associada pelos meios de comunicação de um modo geral à Classe C, o professor Muniz Sodré, baiano de São Gonçalo dos Campos, hoje professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos maiores intelectuais brasileiros, deu, na última segunda-feira, no centro do programa Roda Viva, da TV Cultura, uma aula sobre o assunto. Comemorando 70 anos e no auge da maturidade intelectual, questionou que Classe C é essa, inexistente da forma como vem sendo representada pela imprensa e pelas emissoras de TV, incluindo, principalmente, a teledramaturgia, que agora a adotou como protagonista, vestida de outras cores, mas se comportando sempre como uma classe bárbara.

Durante a semana, um dos programas locais de TV em Salvador realizou a fantasia de um voyeur da periferia que registrou imagens da fantasia sexual de um casal de classe média que resolveu fazer sexo de madrugada em um lugar insólito: entre os vagões de um trem na periferia da cidade. O apresentador do programa onde as imagens do ato sexual foram parar achou por bem considerar a coisa mais normal do mundo, já que empoderado por sua turba de seguidores alfabetizados exclusivamente pela mídia eletrônica sem nunca ter (podido) passar pelo livro e pela reflexão crítica, chamar a mulher da cena de galinha. Anunciando a profissão da moça, médica, ameaçava revelar sua identidade e reiterava o quanto ela estaria, a partir de agora, desmoralizada.
  
GALINHA - Numa cidade onde a média de assassinatos por fim de semana só raramente não ultrapassa as duas dezenas, crime bárbaro mesmo, para uma mulher, parece ser fazer sexo com seu companheiro num lugar inóspito. Sim, só ela, nas palavras repetidas na TV, está desmoralizada, “porque ele é homem” (sic). Diante disso, é mesmo de se estranhar que oito bárbaros espanquem com paralelepípedos na cabeça (até a morte de um) dois irmãos gêmeos que andavam abraçados numa rua em Camaçari (BA)? O julgamento dos assassinos diante de dois homens abraçados na rua é semelhante ao da TV diante de uma mulher flagrada por uma câmera fazendo sexo com seu companheiro. Para os primeiros, eles devem apanhar porque são ‘mulherzinhas’ (sic). Para a segunda, a mulher deve ser desmoralizada porque ‘é uma galinha’ (sic).

Em tempos caleidoscópicos em que marchas feministas se auto-batizam de marcha das vadias, lésbicas protestam mostrado os peitos e ficam furiosas por serem rotuladas de musas nas manchetes e em que, pela primeira vez, uma mulher conduz o país e é elogiada pela firmeza de opiniões e gestão, é uma volta à idade média e à inquisição ver num programa de TV uma campanha de desmoralização de uma mulher por ter sido flagrada por uma câmera escondida fazendo sexo numa estação de trem. E o medievalismo está menos na reação diante da cena e mais no fato de se defender a tese de que a desmoralizada é ela, porque, como creem os medievalistas, ‘em homem não pega nada’. Essa tese foi dita, mal dita e reverberada ao vivo, na TV, e reiterada nas redes sociais pela audiência bombada dos alfabetizados televisuais.        
        
Nesse contexto, em que mulheres são xingadas de galinhas, reclamar do quê se vez ou outra o telejornal concorrente lança mão de atrações animais reais? Diante de uma mulher sendo chamada de galinha pela sanha moralista de uma turba ignara, porque fez com seu corpo e seu companheiro o que bem quis, como reclamar se um dia o principal programa local do telejornalismo classicão exibe um urubu tornado bicho doméstico ultra-mega-super amigo de um surdo mudo lavador de carros da periferia e no outro uma cabra que mora e se comporta como cachorros e é adestrada como tal por um profissional que anuncia para os próximos dias a presença de um porco com as mesmas habilidades?
          
TETAS - Para fechar com chave de ouro a descrição freak da programação da TV, vista neste texto a partir da ótica de Salvador, destaca-se a farra publicitária da Prefeitura de Salvador com a exibição, sempre em horário nobre, quando o custo de cada segundo é altíssimo, com um jingle que, estivesse Chacrinha vivo, deveria ser premiado com o Troféu Abacaxi. Sem obras para mostrar e ancorado em um slogan torto que nomeia Salvador como ‘Cidade Sede do Trabalho’, o anúncio institucional repete o versinho tolo ‘eu amo amar Salvador’. Quem vive na cidade sabe que, se há coisas que os gestores dessa cidade não fazem, é trabalhar. Sabe também que o verso seria melhor tradutor das coisas se o verbo amar usado de forma falsa e melosa fosse substituído por mamar. Ah, quão generosas para os gestores têm sido as tetas de Salvador...

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 01 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

domingo, 24 de junho de 2012

Teleanálise | "O teste do sofá e o garoto de Maluf"

Malu Fontes

Poucas imagens do jornalismo causaram tanto alvoroço e repercussão nos últimos tempos quanto as fotografias e cenas exibindo em multiplicidades de poses o ex-presidente Lula, seu candidato à Prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, e o nome mais associado à corrupção no Brasil nas últimas quatro décadas: Paulo Maluf. A cena soava pornográfica até mesmo para quem acredita mais em duende que em coerência política. Lula e Maluf felizes e sorridentes, tendo ao meio um Haddad aparentemente constrangido de riso amarelado. Os três abraçados, nos jardins imperiais da mansão de Maluf, para onde o anfitrião os atraiu sob o álibi de selar e anunciar seu apoio eleitoral à chapa petista. Ofereceu uma feijoada e fez questão de encerrá-la na área verde externa do seu bunker malufista, sob o olhar de fotógrafos e cinegrafistas convocados para imortalizar o tão inusitado encontro na memória política do país.  

Junto a Lula, Maluf afaga o candidato Fernando Haddad. Foto: Balaio do Kotscho
TESTE DO SOFÁ – Pragmático e sempre ancorado nos argumentos do cinismo que são peculiares à média da classe política brasileira, Maluf deu a tônica da essência das coisas quando perguntado sobre onde teriam ido parar os resquícios ideológicos partidários que separavam esquerda e direita. Segundo anunciou-se no jornalismo político, a sua resposta teria sido algo do tipo: já não existe nem direita, nem esquerda. O que existe são segundos na TV. Ou seja, os abraços, os tapinhas, a feijoada com direito a cenas públicas de afagos nos jardins impostos a (e imediatamente aceitos por) Lula em troca do apoio de Maluf à candidatura de Haddad seriam uma versão eleitoral do teste do sofá.

Há quem diga que, ao longo da história da televisão brasileira (quiçá do mundo, quiçá do cinema internacional), muitas mulheres lindas, com ou sem talento, precisaram submeter-se ao famoso teste do sofá, oferecendo seus encantos a algum diretor ou chairman poderoso das emissoras para, assim, obter oportunidade e espaço na telinha. Pois bem, esta campanha eleitoral que se aproxima será uma campanha antecedida e marcada pelo ‘teste do sofá’, onde alhos e bugalhos estão se misturando sem qualquer pudor desde que sentar no sofá do ex-opositor signifique uns segundinhos a mais no horário eleitoral gratuito.

CINISMO - Foi isso que Lula foi fazer com Haddad na mansão de Maluf: o teste do sofá. Em troca dos preciosos tempinhos do partido de Maluf na TV no horário eleitoral gratuito. Do mesmo modo, por aqui, na Bahia, o DEM também apelou para a mesma estratégia assediando o Partido Verde e uma militante dos movimentos sociais da periferia e do movimento negro. Se um dia o DEM de ACM Neto já contestou juridicamente as cotas raciais na universidade e agora tem como vice Célia Sacramento, uma árdua defensora das cotas, os antagonismos entre ambos, como diria Maluf, não mais importam. O que importa são os preciosos segundos na TV que o casamento político do DEM com o PV proporciona à campanha eleitoral.

E na onda do teste, o cinismo se espraia sem qualquer resquício de pudor. O próprio ex-presidente Lula, ao posar com a presidente Dilma durante a Rio+20, dois dias após posar com Maluf e um dia após a ressaca política de ver a vice do seu candidato, a ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, recuar da chapa alegando repulsa às imagens da véspera, saiu-se com um trocadilho infame. Referiu-se à foto com Dilma como sendo ambientalmente correta, numa oposição à politicamente incorreta, literal, com Maluf. No mesmo evento, o governador da Bahia, Jaques Wagner, também se sentindo confortável no posto de piadista experimental disse que em tempos de Rio+20 era preciso ver a aliança com Maluf num contexto em que sustentabilidade pressupõe não exterminar qualquer espécie [política]. Muito engraçado, governador. Além disso, para Wagner, para vencer as eleições em São Paulo vale o esforço de aliar-se a Maluf.  

‘MEU GAROTO’! - Entre o teste do sofá visando a campanha eleitoral na TV, que logo entrará nos lares brasileiros assustando o telespectador que tiver estômago para assisti-lo, e as imagens de Lula no bunker malufista, a cena mais tradutora da canastrice bufa do encontro talvez seja a de Paulo Maluf passando a mão nos cabelos recém-cortadinhos de Haddad. Vista na TV e nos jornais a imagem parecia pedir desesperadamente uma legenda. Poderiam ter tomado-a emprestada do bordão de um dos personagens antológicos de Chico Anísio. Quem não lembra da dupla de palhaços Cascata (Chico) e Cascatinha (Castrinho), cujo bordão era: ‘meu pai-pai!; meu garoto!’? À luz da imagem, Maluf transformou Haddad no garoto de Maluf.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 24 de junho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 16 de junho de 2012

Teleanálise | "Jornalismo prescritivo: dicas para não morrer nunca"

Malu Fontes

Alguns dos espaços antes ocupados, no jornalismo impresso e no telejornalismo, por um subgênero chamado de jornalismo de serviço, serviam para informar aos leitores e telespectadores o que abriria e fecharia nos feriados, cotação de preços de produtos alimentícios básicos em períodos especiais ou estações, onde encontrar atendimento para uma série de demandas sociais, dicas de emprego e de outras oportunidades, foram, aos poucos sendo substituídos pela tendência da auto-ajuda. Nos últimos anos tal tendência virou febre e a televisão embarcou nessa onda sem nenhum comedimento.

Das bancas de revistas, aos jornais impressos e nos programas de TV matutinos e vespertinos é impossível contar a quantidade de produtos voltados para dizer às pessoas como elas devem viver, comer, dormir, fazer sexo. Enfim, para qualquer ponto que se olhe da indústria cultural há um texto, um apresentador, um especialista ou, na maioria das vezes, um picareta de plantão na televisão, dizendo o que as pessoas devem fazer para serem felizes e viverem bem todos os dias da vida. O fenômeno é tão alarmante que basta ler, ouvir ou assistir as falas desses conselheiros de plantão, personais de tudo, para deduzir que o enunciado dos seus discursos, no conjunto, não diz outra coisa senão: se vocês fizerem tudo o que a gente manda, comerem tudo o que a gente aconselha, fizerem os exercícios certos, usarem os produtos que recomendamos, nunca morrerão, pois as causas da morte ou os riscos de esta acontecer desaparecerão de suas vidas.

VASSOURA - A televisão aberta vive hoje uma febre em suas grades de um gênero que pode ser chamado ironicamente de telejornalismo prescritivo, caracterizado como um discurso de papagaio treinado que repete sem parar tudo o que o cidadão deve fazer: de quanto em quanto tempo deve trocar os travesseiros e por quais para não ser acometido de síndromes alérgicas irreversíveis a como pegar direito na vassoura e manejá-la para limpar a casa sem que a coluna vertebral um dia se desmonte e para, de quebra, perca-se algumas calorias e ganhe-se massa muscular. Sim, a faxina de casa é apresentada à dona de casa como uma irresistível forma de exercitar o corpo. Desde que seja feita, é claro, com muito prazer e com movimentos mais articulados e coreografados diante da vassoura, do balde d’água e do pano de chão do que os de um corpo de baile de um grupo de dança premiado por suas coreografias.

Se o Fantástico, no quadro Medida Certa, já colocou seus apresentadores, Zeca Camargo e Renata Ceribelli a fazer diante do público todos os esforços do mundo para ensinarem aos telespectadores como entrar em forma, agora é a vez de ensinar a mesma coisa às crianças. Recrutou algumas, todas gordinhas, exceto um garoto, para fazer o mesmo no Medidinha Certa, ensinando-os (e aos pais) a comer e ter um corpo bom. No mesmo Fantástico, não faz muito tempo o Doutor Bactéria ensinava o tempo certo para trocar a esponja de lavar pratos. Mas se todo programa de TV que se preze hoje tenha embutido em seu formato um quadro dizendo o que alguém deve fazer e o que evitar, o prêmio vip da categoria fica com o global matinal Bem Estar. No programa se aprende de tudo. É o formato mais redondo do que já se pode chamar de jornalismo prescritivo, um jornalismo que tem como mote prescrever receitas cotidianas de como viver da maneira certa.     

VIVARINA - Assim como há algum tempo todo mundo se perguntava se as facas Ginsu (anunciadas como capazes de cortar até pedra) cortariam as meias Vivarina (uma meia fina feminina à prova de qualquer dano, de unha de gato a escoriações em chão árido), hoje já se pode perguntar do que morrerão as pessoas se elas cumprirem todas as prescrições que os especialistas de plantão desfiam nos programas de TV. Todas as doenças parecem ser passíveis de serem evitadas e até mesmo a violência parece ser coisa da ordem da escolha das vítimas. Rodrigo Pimentel, o Capitão Nascimento de carne e osso, está todos os dias na Globo ensinando todos como fazer para evitar assalto e repetindo pela enésima vez como uma mulher deve carregar uma bolsa para que esta não seja levada pelo ladrão.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 17 de junho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 9 de junho de 2012

Teleanálise | "As malas de Elize salvaram Ronaldinho"

Malu Fontes


Não fosse a bela, rica e loura Elize Matsunaga dar um tiro na cabeça do marido, esperar horas e horas para o sangue do corpo morto coagular e, assim, evitar sangramento para então esquartejá-lo até fazer caber os pedaços em três malas e carregá-las sob o olhar sempre vigilante das câmeras onipresentes de um elevador, Ronaldinho Gaúcho é quem teria ocupado o posto de grande réu da semana nas manchetes da telejornais. A semana televisiva começou com mais uma bomba de vento jornalístico.


Todas as emissoras foram atrás da sanha de Patrícia Amorim, a moça meio sem sorte ou norte do Flamengo, que, com o propósito de ganhar um round numa batalha milionária trabalhista orçada em 40 milhões movida pelo jogador contra o time, tirou da cartola imagens mostrando uma mulher entrando com uma mala num dos quartos do hotel onde a equipe estava concentrada, em janeiro deste ano, em Londrina. As câmeras, assim como denunciaram o esquartejamento até então inconfessado de Elize Matsunaga, também mostram o que parece que nem os torcedores mirins têm dúvida. Nove entre 10 (e há quem diga que são 11 a cada 10) jogadores de futebol fazem sexo ou outras coisas nas concentrações. As câmeras mostram Ronaldinho entrando e saindo do quarto da moça da mala e saindo cedinho, todo vestido para o treino.

MORTES - O detalhe jornalístico surpreendente do episódio não é o que as imagens mostram, mas a forma como a imprensa é pautada ao gosto e ao sabor dos discursos dos donos da notícia em cada área, seja esporte, política, celebridades, etc. Todas as emissoras, sem exceção, mostravam Ronaldinho praticamente como um criminoso flagrado durante o ato. Desde quando a maioria dos grandes astros do futebol brasileiro tem como característica exatamente traços como contenção, bom mocismo, bom comportamento, sobriedade e fidelidade (no caso dos casados)?


Da história inteira de álcool e mulheres de Garrincha ao bafafá entre Ronaldão e os travestis, passando por Romário, Renato Gaúcho e os trocentos casos envolvendo Edmundo, embriaguez e até mortes, em que aspecto Ronaldinho Gaúcho representa uma evolução para pior? A única diferença parece ser a câmera de um hotel. E se Patrícia Amorim acha isso tão grave e transgressor assim, com a anuência da imprensa de um modo geral, que deu à coisa o tamanho da repercussão que deu, por que não tomou providências em janeiro?


JUMENTOS - E por que o Flamengo contratou Ronaldinho sabendo que na Espanha o jogador já era uma figura do balacobaco? E por que ninguém do Flamengo nunca ouviu os lamentos dos moradores do condomínio onde o moço morava e dava baladas que só não perdiam para as de Adriano? Se nas festas de Ronaldinho o traço era a desproporção infinitamente superior entre a quantidade de mulheres e o barulho da música, a marca Adriano era dar um toque de Calígula aos seus eventos. Qualquer busca no Google mostra que em suas festas eram comuns a junção de ex-bbbs, anões e, sim: jumentos. Não causará estranhamento se a qualquer momento a direção do Flamengo acusar o gaúcho, com a anuência da imprensa para a divulgação, de infração contratual no quesito estética, sob a alegação de que comprou um galã e recebeu um Shreck Black e dentuço de chuteiras. 


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 10 de junho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

domingo, 3 de junho de 2012

Teleanálise | "Quem se importa com o futuro alheio?"


Malu Fontes


Doze dias de greve dos policiais na Bahia foram capazes de revolver diversos segmentos da sociedade baiana, não apenas na negociação diária em busca de saídas para o impasse entre grevistas e o governo do estado, mas, sobretudo no debate irado que se travou nos meios de comunicação em torno do argumento do desamparo ao qual a população estava submetida e dos prejuízos gerados à economia pela redução da circulação de pessoas no comércio.


Os telejornais locais e os nacionais deram ampla cobertura ao fato e o barulho social gerado pela paralisação tinha força de um urro, ora acusando o governador de omisso e irresponsável por não negociar com os policiais, ora acusando os policiais de bandidos, irresponsáveis e até de contribuírem diretamente para o aumento do número de homicídios. Em outras palavras, parte da imprensa disse com muito prazer que uma certa polícia miliciana andou executando gente durante a greve a torto e a direito.

METRÔ – Há pouco mais de uma semana a maior cidade do País, São Paulo, acordou com os metroviários de braços cruzados e mesmo quem vive no Amapá foi bombardeado o dia inteiro por imagens televisivas de todas as emissoras mostrando do alto a cidade caótica, cena, aliás, que nem precisa de paralisação de metrô para ser capturada por câmeras de TV, em se tratando de São Paulo. A greve não durou um dia. O poder político e o poder econômico, diante do prejuízo que se desenhou, arranjaram uma solução urgente e 24 horas depois tudo estava resolvido, com conquistas para os metroviários.


Em Salvador, que nunca pôde contar com o luxo de ter um metrô, no mesmo dia quem cruzou os braços foram os motoristas e cobradores de ônibus, deixando cerca de um milhão de pessoas sem transporte e reduzindo radicalmente a circulação de dinheiro no comércio. Como quem anda de ônibus em Salvador está em muita desvantagem social e econômica em relação a quem anda de metrô em São Paulo, a coisa demorou um pouquinho mais que lá para se resolver, mas a greve não se estendeu nem até o fim de semana.


RENITENTE - Enquanto isso, na Bahia, numa outra dimensão da vida, para um grupo de pessoas que de certo modo carregam nas costas a única idéia de futuro que este país pode ter, os professores, uma greve se arrasta caminhando para dois meses, 60 dias, e a impressão que se tem na capital, em Salvador, é que nada está acontecendo, que nada está fora do lugar ou da ordem. Milhares de alunos sem aula há praticamente 60 dias, um discurso renitente do governo que contesta até as decisões judiciais sobre o pagamento dos salários dos professores e com exceções de uma reportagem de TV aqui e ali ou de um comentário de apresentador, quem parece socialmente incomodado com a greve e suas consequências.

Quando a polícia para e todo mundo fica com medo de sair às ruas e deixa de fazer compras, a economia do país e o medo da violência crescer ainda mais fazem a população comum sair do silêncio, mesmo que seja para dizer absurdos. Quando o transporte público para e os empregados não podem ir trabalhar e o comércio e a indústria veem essas ausências transformadas em perda concreta de dinheiro, dá-se um jeito de forçar o poder público a se virar nos 30, negociar o que quer que seja para a ordem das coisas se restabelecer. E a cidade vazia, os shopping centers vazios e a paisagem das ruas sem polícia ou sem ônibus geram excelentes imagens de TV.

OFENDIDOS - Já milhares de meninos e meninas pobres, sem aula, cada um em sua casa, sem poder nenhum, que imagem haverão de gerar para o telespectador? A lógica parece simples e não é da televisão, mas, antes, da sociedade. Quando os policiais ou os metroviários e rodoviários cruzam os braços, a sociedade compreende imediatamente que o seu presente, o imediato, o aqui e o agora estão comprometidos. E como pode o direito de ir e vir do cidadão ser assim cerceado, pensa a maioria e aponta a metralhadora de pressão para os governantes descansados, obrigando-os a reagir.


Já os professores da rede pública, se cruzam os braços, quem se importa? Isso não diz respeito ao presente de ninguém, somente ao futuro, e mesmo assim já incerto, de um universo de jovens pobres para quem a greve, cada vez mais silenciosa socialmente, é apenas mais um elemento de consolidação da falta de acesso à cultura, à informação e à formação que os habilitariam a entrar na universidade sem serem ofendidos porque precisam de cotas. A greve dos professores quase não passa na TV porque diz respeito ao futuro alheio.



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 03 de junho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 26 de maio de 2012

Teleanálise | "Do 'Xournalismo' de Xuxa à bela e as feras"

Malu Fontes

A semana jornalística começou sob o prognóstico de que as declarações de Xuxa ao Fantástico, anunciando que fora abusada sexualmente reiteradas vezes da infância, até os 13 anos e por diferentes homens adultos, dariam o tom da repercussão facinha do jornalismo de fofoca e, sobretudo, das redes sociais.  Em Salvador, no entanto, a metamorfose da versão da Rainha dos Baixinhos de 'Xou da Xuxa' para 'showrnalismo do eu', a fórmula batida de jornalismo de celebridade em que famosos expõem intimidades e dizem coisas no divã eletrônico da TV que algumas pessoas levariam anos gastando os tubos para falar ao analista, teve a cena roubada pelo showrnalismo dos PPPs, o jornalismo sensacionalista que deita e rola sobre os presos pobres da periferia e só falta bater continência para presos de operações milionárias.


Xuxa em entrevista ao Fantástico: "Xournalismo". Crédito: Estadão

BOIADA - Em Salvador, com repercussão para além da cidade e do Estado, uma repórter de um dos programas televisivos populares foi espinafrada após algo que alguns chamam de entrevista, dela com um suposto garoto acusado de estupro, cair na rede e provocar um efeito retardado, mas acachapante sobre a moça. Os artigos indefinidos usados até aqui, uma repórter, um programa, não é um caso de cuidado em não dar nome aos bois. Ao contrário, é uma forma de abranger a boiada. A moça, loura, jovem, rica, ao fazer troça com um encarcerado preto e pobre foi atirada aos leões, mas sozinha.


Repórter hostiliza entrevistado pobre. Ela é só um exemplo de alguns que têm esse comportamento. Crédito: Jornalismo B

De injustiça, as acusações à moça não têm nada, mas daí a usá-la, sozinha, como boi de piranha e bode expiatório da fórmula jocosa como presos e acusados do que quer que seja são entrevistados pelo formato de telejornalismo que hoje viceja sob aplauso popular (segundo mostra a audiência) e sob o silêncio da Justiça e do Estado, é hipocrisia da boa. Moiçolos que fizeram fama como entrevistadores e apresentadores desse tipo de programa, apenas mais feiosos que Mirella Cunha e com maior concentração de melanina, repetem todos os dias o mesmo comportamento jocoso que o do vídeo dela que correu as redes com um poder quase viral.


FERAS - E quem nunca assistiu a nada parecido é porque, em nome do bom gosto ou de um comportamento blasè intelectual prefere arrotar coisas do tipo: ah, eu não vejo lixo. Pois quem sabe se o "lixo" viesse sendo visto mais de perto, inclusive pelas autoridades que agora anunciam o enquadramento legal da moça nas letras constitucionais, saber-se-ia, de há muito, que ela é tão somente a mais nova e bonitinha cria desse gênero de entrevistador/a na Bahia. E não duvidem: deve ter sido escolhida a dedo justamente por sua lourice, juventude, fashionice e beleza. Ela cabe como uma luva num personagem que os programas concorrentes ainda não tinham: a Bela, para ser explorada no vídeo como contraponto às feras entrevistadas, ou seja, os bárbaros que TODOS os programas dessa natureza, que se estapeiam cotidianamente pela audiência, sobretudo na grade vespertina, exibem como as feras e os monstros que levam alguns telespectadores a salivar sonhando com a pena de morte.

O diálogo da Bela com seu entrevistado soa abjeto aos olhos dos defensores da igualdade de direitos entre presos A e presos B? Sim, ninguém há de negar. Mas antes de a transformarem na Geni solitária, que tal fazer um rastreamento analítico de seus colegas de função na concorrência para conferir suas performances? E os delegados que permitem tal nível de jocosidade nos espaços do Estado em troca do capital simbólico que angariam com o telespectador que quer sangue? E o governador, que quase que mensalmente faz uma ronda nas emissoras batendo o ponto como entrevistado nesses mesmos programas que os críticos chamam de escória? E se no resto do tempo é só desgraça nas cenas desses programas, nos dias de ronda do governador nos estúdios todos os apresentadores só lhe fazem perguntas do tipo escada, aquelas que garantem respostas bonitas ou burocráticas.


CACHOEIRA - Crucificar Mirella é fácil. Mas cadê peito e de quem para evitar que rotineiramente seus colegas presepeiros perguntem de um tudo a quem não tem advogado para poder ficar calado? Carlinhos Cachoeira ficou em silêncio quase 3 horas no Congresso, recusando-se a responder, sob as bênçãos do lastreado Márcio Thomaz Bastos, qualquer pergunta dos nobres senadores da República. E tudo bem. Na TV baiana, se qualquer preso ou acusado pobre insinua uma resposta hostil, os coleguinhas de Mirella, sob as bênçãos dos delegados em busca de flash, gritam logo: respeite o repórter! Ah, tá. O mesmo garoto que é trollado pela Bela, no dia em que foi preso, passeou, no mesmo dia, pelas telas da concorrência. E quem disse que foi abordado de forma muito diferente pelos outros entrevistadores e apresentadores? Mirella não está só em seu modus operandi, ao contrário do que, agora, querem fazer crer seus concorrentes.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 27 de maio de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 19 de maio de 2012

Teleanálise | "A auréola de Carolina e os escravos do Brasil"

Malu Fontes

Muitas vezes as matérias jornalísticas exibidas na televisão revelam muito mais sobre o país e seus problemas por aquilo que escondem do que por aquilo que abordam e revelam abertamente. Durante a semana, três reportagens exibidas em diferentes telejornais são exemplos claros do quanto é possível informar sem informar. Tudo bem que seria exagero e radicalismo dizer que boa parte das matérias que podem ser caracterizadas como tais mais desinformam que informam. Não é verdade. Mas não se pode silenciar que estas deixam o telespectador desamparado quanto a instrumentos críticos que lhes permitam refletir melhor e mais criticamente sobre aquele assunto abordado.


As três reportagens, exibidas em dias diferentes e em diferentes telejornais. A primeira: toda a operação de cuidados e investimentos necessários adotados pelos produtores de flores da cidade paulista de Holambra, o principal pólo nacional de floricultura. Em datas comemorativas como o dia das mães e dos namorados, centenas de caminhões de grande porte e cheios de triques triques, como refrigeração na medida e suspensões que ultrapassem a perfeição mecânica, saem de Holambra e cruzam o país em centenas, milhares de quilômetros, para entregar flores perfeitas ao mercado nacional.


NO LOMBO - Se isso não leva o preço das flores para a estratosfera? Não se toca no assunto. Para que estragar assunto tão belo? Mas isso não é o mais importante desse exemplo: o lobby das grandes montadoras de automóveis na condição de anunciantes de TV é tão poderoso que ninguém nunca discute a sério que os custos de Holambra valem para tudo o que o brasileiro consome. Carne, peixe, grãos, cruzam o país no lombo caríssimo de caminhões. Enquanto isso, a construção de uma malha ferroviária nunca é pauta nem agenda política de nenhum programa jornalístico, de nenhum candidato a nada ou eleito para o que quer que seja. Quem se importa? As montadoras precisam vender seus caminhões, sustentando a lógica do transporte lento, caro e ineficiente que só serve para encarecer a vida e alimentar a eterna corrupção dos reparos constantes das estradas esfoladas por tanta carga pesada.

A segunda matéria: apenas poucas horas após a identificação dos hackers sebosinhos que revelaram ao país o tamanho e a cor da auréola dos peitos de Carolina Dieckmann na web, o Congresso nacional acudiu correndo e aprovou no ritmo the flash o projeto que circulava na casa há teeeeempos tornando crime invasão de computadores, violação de senhas, obtenção de dados sem autorização, a ação de hackers, a clonagem de cartões de crédito ou débito, enfim, os cybercrimes. Não, não estavam querendo ser manchete nos produtos jornalísticos nem serem oportunistas ao solidarizar-se com uma famosa global. Foi coincidência. Se correram assim, ágeis como coelhos, certamente foi pensando no bem comum do cidadão brasileiro.


BCHOS-PREGUIÇA - Mas a informação sobre a reação rápida dos deputados diante das vergonhas expostas de graça e sem fotoshop de Mrs. Dieckmann ainda diz muito pouco sobre os deputados se analisada jornalisticamente isolada. Ganha em cores e profundidade ideológica do tipo de parlamentares comprometidos que temos é quando esta mesma informação é contrastada com a terceira matéria que ilustra este texto. Na mesma semana, os mesmos deputados tiraram os seus da reta quando foram conclamados a votar o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Escravo. A pressão da bancada ruralista não permitiu, até agora, após várias tentativas, que a PEC fosse votada. Se aprovada, estabelece a pena de perda da propriedade como punição para quem mantém trabalhadores em regime de escravidão ou em condição degradante.

Sim, está correto transformar em crime o cybercrime. Mas por que a exposição das vergonhas de uma celebridade da emissora mais poderosa do país leva os parlamentares a correrem em disparada para ficar bem na fita e aprovam em tempo recorde uma lei e, ao mesmo tempo, estes mesmos deputados, tornam-se bichos-preguiça retardatários, letárgicos quando se trata de aprovar lei que protege gente escravizada em 2012? Talvez nem fosse preciso responder que trocentos deputados e senadores que não tomaram conhecimento da Abolição, volta e meia são acusados de manter mão de obra escrava em seus latifúndios no Brasil profundo. Mas já que entre as vítimas não está nenhuma Carolina Dieckmann, quem se importa? Nem a imprensa, sobretudo o telejornalismo, cuja cobertura sobre a eterna recusa dos nobres parlamentares de votarem (e aprovarem, se é que vão fazê-lo) da PEC do trabalho escravo foi menos que pífia.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 20 de maio de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com


sábado, 12 de maio de 2012

Teleanálise | "O ovo ou a galinha?"

Malu Fontes

Com a disseminação das chamadas mídias pós-massivas, ou seja, os tablets, as mensagens eletrônicas, as informações circulantes nos smartphones, as imagens capturadas por câmeras onipresentes de celulares ou por sistemas públicos e privados de vigilância, entre tantas outras modalidades de tráfego de informação, a cada dia redefine-se o conceito de privacidade, para se continuar sem saber mais o que é isso. A atriz Carolina Dieckmann e suas fotos nuas para consumo do casal que o diga. Ela é apenas o caso mais recente.


O conceito de privacidade, e também o de violação desta, vêm se reconfigurando com as novas mídias. Crédito: socialtimes.com
RETO - Durante a semana, uma outra discussão sobre privacidade e ética chamou muito menos atenção na TV do que o caso Dieckmann, por razões óbvias, mas teve um potencial, para quem estivesse disposto a isso, é claro, muito maior para se fazer pensar no direito à privacidade e no quanto ela vale quando se trata de um cidadão comum. Uma equipe médica do centro cirúrgico do Hospital Universitário de Londrina filmou com celulares e divulgou na rede a cirurgia em um homem para a retirada de um peixe que entrou em seu intestino pelo reto.

O teor com que as abordagens jornalísticas trataram do tema, colocando a opinião de advogados, autoridades em ética e representantes do Conselho Federal de Medicina, leva a uma pergunta sem respostas: até que ponto a repercussão dada pelos grandes veículos de comunicação de massa, como a televisão e seus principais telejornais nacionais e os jornais impressos de maior circulação no país contribui para inibir que atos antiéticos desta natureza sejam evitados ou para que sejam inflacionados via web?

MAL LAVADO - A exposição triplamente traumática a que o paciente foi submetido (causada pelo incidente em si, pela inclusão das imagens da cirurgia na Internet e pela repercussão posterior em grande escala nos telejornais e jornais nacionais), leva à tese do que veio primeiro, se o ovo ou a galinha? Ao dar ampla repercussão a fatos desta natureza, a imprensa convencional não está fazendo as vezes do sujo que fala do mal lavado? Não está contribuindo, ao exibir as imagens, para acentuar o dano ético e moral cometido originalmente pela equipe médica que registrou tais imagens e as inseriu na internet?

A co-responsabilização dos meios de imprensa tradicionais, ao lado dos médicos acusados de cometerem um crime contra a dignidade do paciente, parece se escancarar quando, por exemplo, um telejornal expõe em rede nacional partes dessas mesmas imagens, chamadas de indignas pelos âncoras. A falta de ética não deveria estar tão somente na origem primeira da circulação, mas também na continuidade da disseminação, na decisão editorial dos profissionais de imprensa que a fazem chegar, inclusive, a rincões aonde jamais chegaria apenas via web.   

URUBUS - Nesse caso específico do Paraná, para além dos efeitos emocionais causados no paciente e em sua família pela repercussão nos veículos de imprensa e da presença ad infinitum na rede, já que até mesmo o caríssimo advogado Kakay que atende de Demóstenes Torres a Carolina Dieckmann não conseguiu retirar as fotos da atriz da web, as expectativas voltam-se para o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Regional do Paraná. Somente com a punição de atitudes desta natureza, cometidas por parte de profissionais da medicina, e, sobretudo em um contexto de Hospital Universitário, ou seja, um hospital escola, é possível ter alguma garantia que a intimidade de pacientes em momentos máximos de fragilidade humana não se transforme em atração circense. Já não bastam os pseudojornalistas travestidos de urubus munidos de câmeras todo o tempo sobrevoando os corpos de gente pobre?

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 13 de maio de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com