domingo, 28 de agosto de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "Bang bang, cinismo e mortes

Malu Fontes, professora e jornalista
Enquanto grupos políticos, em Brasília, cada vez mais se assemelham a quadrilhas brigando de foice por e para tirar cada moeda possível dos cofres públicos, ao ponto de um ministro de Estado, numa espécie de chantagem nada velada para bom entendedor, insinuar que se uns continuarem denunciando os outros vai haver derramamento de sangue entre irmãos e todos morrerão, no chão do país de verdade quem está morrendo mesmo é a população desprovida de saúde. Nos últimos dias, um exemplo nacional e outro local exibidos pela televisão estamparam o quanto o mar de corrupção e as intrigas políticas geradas em torno dele se traduz no dia a dia na ausência do estado na vida de quem precisa ou na prestação de serviços inclassificáveis de tão desumanos.

Em agosto, os telespectadores baianos foram assombrados por imagens de um exército de mais de 2.000 pessoas doentes derretendo de calor, cansaço e sofrimento físico em frente ao Hospital Ana Nery, indicado pelo poder público como o hospital de referência em cardiopatia. Embora nada justifique a presença de dois milhares de pessoas implorando por atendimento médico desde a madrugada até o meio da tarde para pegar esse perverso direito de voltar para casa com esperança de ser atendido um dia, ou seja, o direito à tal da senha para obter uma ficha, os responsáveis pela unidade vieram para a frente das câmeras explicar que havia ocorrido tão somente um erro no sistema de agendamento. Para quem via as imagens e o desespero das pessoas no local era impossível aceitar a tese de que tudo poderia ser reduzido a um erro de sistema.

VALE-FUNERAL - Um outro argumento sempre usado pelo ajuntamento desumano de gente doente em porta de hospital é o de que as pessoas, se doentes e sem possibilidades de atendimento, jamais devem vir para a capital em busca de atendimento. O discurso é belo e aparentemente funcional: devem procurar as prefeituras locais, cadastrar-se e esperar que estas providenciem o agendamento do atendimento em Salvador, via centrais de regulação. Quem acreditar na eficiência desse sistema ganha um doce e quiçá um vale-funeral. O povo, que de muito bobo só tem a aparência, sabe que a política pública da regulação do atendimento entre prefeituras e sistema único de saúde na capital pode ser perfeitamente traduzível, com raríssimas exceções, por uma sentença do tipo: esperem, em seu município, passivamente, a morte chegar. Não venha tumultuar as portas dos hospitais com sua pressa por atendimento, pois não há vagas, não há leitos disponíveis. Essa é a tradução da regulação.  

Um dia antes de um ministro, Mário Negromonte, do PP, baiano, inclusive, quando submetido a denúncias de ter criado um mensalinho para remunerar o apoio dos colegas de bancada mais pragmáticos, dizer, em tom de ameaça, que “em briga de família, irmão mata irmão, e morre todo mundo. Por isso eu disse que isso vai virar sangue”, quem praticamente morria em uma maternidade de referência, em Belém, que lhe batera a porta na cara, era uma mulher em trabalho de parto de gêmeos. Os bebês nasceram mortos e, independentemente de a causa mortis ter sido a negligência, é impossível compreender que uma mulher em sofrimento de parto tenha duas portas na cara em duas maternidades diferentes e acabe parindo bebês mortos em uma viatura do Corpo de Bombeiros.


DONO DE CAPITANIA - Bastou o Jornal Nacional ir à maternidade para o discurso surreal de sempre recomeçar. Não se sabe de quem é a culpa, os médicos que estão na ponta de um sistema perverso não podem se tornar bode expiatórios, as maternidades já estavam superlotadas e a culpa é do sistema como um todo. Sim, a culpa é do sistema, mas não apenas o de saúde, mas o político, ético e moral do país. O impostômetro instalado em São Paulo corre voraz todos os dias anunciando quantos milhões, bilhões, os brasileiros deixam nos cofres públicos a cada bala que compram e a cada salário que recebem. O sistema que faz faltar dinheiro para maternidades ampliarem vagas, instalar leitos, contratar médicos ou para a construção de novos hospitais é o mesmo que sempre dá um jeito de reservar um dinheirão para mensalinhos e para o combustível dos helicópteros da Polícia Militar do Maranhão que conduzem o mais prestigiado dono de capitania hereditária do Brasil, José Sarney, em sobrevoos para ver as belezas de sua ilha de estimação no estado. E ele sente-se tão à vontade com isso que se permite brincar a respeito publicamente.


No mesmo dia em que a realidade da maternidade em Belém onde houve a negação de atendimento à mãe dos gêmeos mortos no parto mudou completamente, por conta da presença das câmeras do Jornal Nacional, nobres senadores, quem sabe estimulados pelo clima Negromonte de insinuar morte de irmão e sangue, trocaram acusações no plenário e por conta não encenaram um bang bang de sopapos. Os afagos morais oscilavam em torno de termos como safado, débil mental, louco e moleque. Em Belém, o representante dos médicos dizia que estes não podem ser o bode expiatório da crise na saúde. Autoridades do sistema de saúde e jurídico diziam ter havido falta de solidariedade no caso da grávida. Todos têm razão sob seu ponto de vista, enquanto o mais elementar fica desfocado: os homens públicos que deveriam empreender todos os esforços para reduzir o sofrimento humano no país, estão mesmo é exercendo o cinismo, as ameaças, as chantagens à companheirada e interessados tão somente na briga por poder, cargos e desvios de dinheiro. Pacientes em desespero e médicos incapazes de dar conta da demanda que se entendam e se acusem entre si por negligências e mortes. Esse é o recado que boa parte de ministros, deputados e senadores mandam de Brasília. Justo Veríssimo é a tendência no Planalto Central.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 28 de agosto de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 21 de agosto de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "Método abortivo de novela"

Malu Fontes, professora e jornalista
Insensato Coração chegou ao fim na última sexta-feira e, como a teledramaturgia, sinônimo de telenovela no país, há décadas assume no cotidiano e no imaginário dos brasileiros um papel praticamente paradidático, insinuando o que é certo ou errado, bom ou ruim, feio ou bonito, dois aspectos da trama chamaram atenção, principalmente em sua reta final: as abordagens do preconceito contra os homossexuais e da gravidez indesejada.


Do lado de cá da tela, todo mundo sabe que casais formados por pessoas do mesmo sexo existem e que de suas rotinas faz parte tudo aquilo que faz parte de qualquer relação amorosa: afeto, demonstrações públicas e privadas de carinho, beijo na boca, sexo e todo o resto do pacote, conflitos inclusive. Do mesmo modo, todo mundo que tem mais de um neurônio sabe que muitas meninas bem ou mal nascidas, diante de uma gravidez indesejada, já recorreram, sim, ao aborto e continuarão recorrendo, seja seguro ou inseguro, mesmo com a prática sendo ilegal no país. São milhões de mulheres que recorrem à prática e quem diz isso são os serviços públicos de saúde, onde de um jeito ou de outro vão parar as estatísticas de mortes ou sequelas graves em decorrência de abortos, sobretudo os feitos de maneira tosca, com gente que vive disso e não precisa dar garantia de bom atendimento.  


TABU - As novelas brasileiras, no entanto, consideradas por especialistas no assunto, daqui e de alhures, como detentoras de uma das mais sofisticadas técnicas de produção do mundo e também conhecidas pelo seu nível de realismo nas temáticas abordadas, continuam sendo o que são, um produto fluido que só chega perto de temas que não afastem o telespectador. E o que os afasta da tela, comprometendo a audiência e mais ainda a receita publicitária da emissora? Em geral, temas morais, considerados tabus pela sociedade brasileira, pelo que se convenciona chamar de família tradicional, e assuntos que passem perto de questões religiosas, que descambam quase sempre, claro, de novo na moralidade.


Sabendo-se das limitações temáticas das telenovelas no terreno da moral, o telespectador de bom senso sabe que os autores têm limites até onde podem avançar e arriscar, o que não os livra de críticas às vezes ferozes e até injustas de grupos de defesa de determinados grupos sociais engajados na defesa de suas causas. Ou seja, a telenovela vai até um determinado ponto com alguma bandeira comportamental, mais precisamente até a fronteira em que determinado discurso, enquadramento ou abordagem pise nos calos dos tabus da sociedade brasileira. Não precisa dizer que aborto e homossexualidade são um olho nu e gritante no centro do universo de tabus nacionais. Não é à toa que os que cobram da telenovela algum comprometimento com a realidade façam coro exigindo, e esperando, das telenovelas a tal cena tão desejada que nunca veio: o primeiro beijo de língua gay entre um casal de homossexuais. Se for um casal masculino, melhor ainda. Para muitos defensores dos tabus, um beijo entre duas mulheres fica um pouco aquém do tabu e pode estar mais para fetichismo sexual.  


Insensato Coração começou praticamente anunciando a realização da expectativa frustrada do beijo masculino gay. Tinha um dos maiores núcleos de homossexuais já visto numa novela e a trama carregava, a título de merchandising social, a bandeira do protesto contra a violência praticada com os homossexuais, por preconceito, fato corriqueiro no Brasil. No entanto, parece que os compradores de sabão fizeram saber à Globo que de jeito nenhum queriam ver essa ‘pouca vergonha’, e os autores principais da novela, Gilberto Braga e Ricardo Linhares, foram convidados pela direção da emissora a pisar no freio do chamego entre os meninos sarados do quiosque da trama. O que surpreende e espanta, no entanto, é que, o mesmo telespectador que, em tese, teria mandado avisar à Globo que a boicotaria se visse na tela dois homens se beijando apaixonadamente, parece ter enviado um pedido para ver gays sendo espancados e brutalmente assassinados, em cenas que parecem ter emocionado a audiência dos entabuados, a ponto de elevar o ibope. Lição: o brasileiro médio acha violento demais ver um beijo masculino na TV, mas acha muito emocionante ver um garoto apanhando até morrer de um bando de pit-boys. Foi ou não foi assim, Gilberto Braga?


FETO - E no final, para fechar com chave de ouro a ode aos entabuados do aborto. Uma das mocinhas boas e belas da trama, Cecília, que engravidara de um ficante mau caráter, que lhe embriagara para fazer sexo sem camisinha, jamais, claro, sequer cogitou longinquamente a possibilidade de um aborto. Ao contrário: demonstrou amor eterno ao feto desde que soube da concepção, a ponto de aceitar casar com o vilão para proteger a cria. Como o feto era de um mau caráter e a menina era boa e amava outro homem, esse também bom e puro, a criança seria um ruído difícil de ser engolido pelo telespectador no meio de tanta beleza, pureza e lisura de caráter. Como aborto não pode, foi preciso dar um jeito de arrancar o fetinho de um modo, diga-se, mais ‘bem aceito’ moralmente pela família brasileira compradora de margarina. E assim se fez: a autoria da obra mandou o pai mau caráter do feto dar umas porradas eficientes na mocinha. E era uma vez uma gravidez. Então, quem disse que mocinha de novela não pode abortar? Pode sim. É só escolher o método certo e moralmente adequado. A surra de um homem violento é uma opção completamente aceitável pela audiência.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 21 de agosto de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 14 de agosto de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "Algemas e Senzala"

Malu Fontes, professora e jornalista
A semana televisiva foi dividida em três temas dominantes, nas esferas local, nacional e internacional: a morte de nove operários num mesmo acidente, num edifício em construção, em Salvador, mais uma rodada de dezenas de prisões por desvio de dinheiro público federal, desta vez no Ministério do Turismo, e a onda de violência que durante a semana varreu Londres e cidades do entorno, sem que o mundo fosse informado das reais motivações que nutriam a onda de destruição. Em relação ao mais novo escândalo dos últimos dias em Brasília, desta vez com uma esticadinha até a longínqua Macapá, o que dizer? Sempre, na história deste país, cenas de tal natureza brotarão nas manchetes.

No dia seguinte à prisão, emergiram protestos incompreensíveis para o resto dos brasileiros que não frequentam as hostes do poder político e econômico. Bastou o segundo homem forte do Turismo ser preso para muita gente boa do Governo ir para a frente das câmeras dizer que houve abuso de poder por parte da Justiça e para classificar caricaturalmente a ação da Polícia Federal de espetaculosa. As críticas, não aos acusados, mas aos acusadores, não pararam aí: choveram queixas quanto ao uso de algemas. Se for para ser sem algemas, então que fique combinado o seguinte: em caso de prisão, os empoderados não serão ofendidos em sua dignidade pelo uso de algemas, desde que a prática também seja condenada pelos queixosos de agora quando magotes de acusados pobres e pretos forem enfiados algemados nos camburões policiais das grandes metrópoles brasileiras para a TV vespertina e seus urubus filmarem, como acontece todos os dias. E, nesses casos, a Polícia ainda contribui para a qualidade das imagens: segura a cabeça dos acusados pelos cabelos, para o close no rosto ser registrado pelo câmera amigo. O que não pode é só considerar a algema um abuso de poder quando é usada contra apadrinhado políticos. Ora, se desta vez até Sarney saiu de seus cuidados para dizer na TV que "este não se trata de um caso de Política, mas de Polícia"...

SENZALA - Sobre os operários mortos em Salvador, o choro e o protesto dos trabalhadores da construção civil e o fogo ardendo em Londres, há muito mais em comum entre os dois fenômenos do que as notícias do dia a dia permitem ao telespectador deduzir. Diante da onda de violência urbana que rotineiramente varre toda grande cidade brasileira, é jargão típico da turma formada pelos indignados de poltrona, os típicos fãs de Datena e congêneres, o bla bla bla de que os jovens violentos da periferia são a praga do mundo porque não querem fazer nada, mas querem ter tênis de grife e vida fácil. A pobreza, sozinha, não justifica violência e criminalidade, mas também é verdade que a "mão de obra" absorvida pelo crime na periferia brasileira não sabe, nem nunca soube e nem saberá fazer nada, mesmo porque nada lhes foi ensinado. Nem o be a bá.

No entanto, entre esses indignados de poltrona, quantos nutrem admiração social, mínima que seja, por esse exército de homens pobres que diariamente acordam de madrugada, recorrem a um sistema de transporte medonhamente ruim (o que nos subúrbios de Londres já teria levado a trocentos incêndios), e há anos disputam vagas no mercado da construção civil, onde, sabe-se, as condições de trabalho ainda fazem questão de repetir métodos do tempo da senzala, com direito até a figuras revisitadas mas inspiradas no velho capitão do mato?

O que pensam as classes médias altas e altas sobre a opção que diariamente fazem os milhões de trabalhadores da construção civil por uma vida tão árdua se comparada aos salários que recebem e ao reconhecimento social que (não) têm? Não pensam, pois para que pensar nesse assunto? Melhor é fazer como se faz, fingir que não se sabe das péssimas condições de trabalho que essa gente tem e da fiscalização meia boca por parte das instituições públicas. Canteiros de construção civil são, sim, com raras exceções, senzalas atualizadas onde exércitos de homens invisíveis constroem, sabe-se a que custo humano, o sonho imobiliário que vai ilustrar a vida dos melhores situados na pirâmide social. Só quando nove morrem juntos e polifraturados é que uns e outros gritam midiaticamente um "ô meu Deus!". No chão da obra, no dia a dia, o pau quebra e ninguém vê e nem quer saber. Até surgir um espigão deslumbrante vestido de vidro no anúncio publicitário convidando todo mundo a morar no quintal do shopping, como se viver dentro de um fosse, literalmente, o nirvana do mundo.

ADIVINHADORES - Enquanto isso, não deixa de ser ilustrativo como o mundo não sabe o que fazer com os seus outros, aqueles que antes do politicamente correto e do multiculturalismo podiam ser livremente chamados de pobres e excluídos. Agora, ninguém sabe como nomeá-los. O telejornalismo passou a semana referindo-se às áreas de Londres onde espocavam os surtos de violência como "bairros multi-étnicos". Um nome bom e tanto para ser entendido pelo telespectador médio e mais ainda para enquadrar os indesejados do mundo que deveriam ficar estocados quietos esperando a vida passar na televisão. Mais ilustrativo ainda foi o surgimento dos primeiros adivinhadores de plantão. Sem entrevistar nenhum manifestante, "especialistas" diagnosticavam: são jovens dispostos a tudo apenas para consumir, sem ter que pagar por isso. Pelo tamanho da confusão, parece ser só isso não. Mas quando trata-se dos moradores de áreas ‘multi-étnicas’, os especialistas não perguntam antes. Diagnosticam logo, sem escala, para não perder tempo. E para não perder o timing da piada, afinal, quando o Louro José vai se referir aos novos princípios editoriais da Rede Globo?

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 14 de agosto de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com 

sábado, 6 de agosto de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "Pode, Luiza?"

Malu Fontes

Malu Fontes, professora e jornalista
Em Salvador, o teminha midiático dos últimos dias tem sido a subida nas tamancas por parte das bandas de pagode e seus seguidores – e seguidoras - diante do projeto de lei da deputada estadual Luiza Maia (PT). A deputada apresentou à Assembléia Legislativa um projeto de lei propondo que bandas e grupos musicais, desses que brotam todos os dias fazendo o gênero novíssima poesia baiana e cujos versos mais líricos dizem que mulher é igual a lata, algo que o homem chuta e outro cata e incorporam coisas prosaicas como ralar a checa e chamam ‘mãinha’ para quebrar, fiquem impedidos de ser contratados pelo governo do Estado, ou seja, que não tenham cachês pagos com dinheiro público do Estado para repetir tais hinos celebratórios à mulher.


Aparentemente não seria preciso explicar que a deputada não quer proibir grupo de pagode nenhum de dizer coisa nenhuma. A proposta é outra, para quem lê o projeto. Ou seja, qualquer ídolo das meninas que quebram, ralam a checa, dançam na boca da garrafa, adoram ser chamadas de cachorrinhas e acham o máximo dar a patinha, pode cantar o que quiser e nem a deputada nem ninguém quer proibir nada. O que Luiza Maia defende é que o poder público, o Governo do Estado da Bahia, fique proibido de contratar artistas para gritar no palco versos misóginos, embora os meninos que a cantem provavelmente nunca tenham sabido ou nunca venham a saber que incorreram em misoginia.


PAULARIA - No entanto, a proposta que prevê que o Governo do Estado não possa remunerar para shows ou outras atividades grupos musicais cujas canções, em tese, denigram a imagem da mulher, foi transformada, em linguagem midiática popularesca em algo como ‘deputada quer proibir bandas de pagode de cantar músicas que ofendam as mulheres’ ou ‘deputada quer censurar bandas de pagode baianas’. E em seguida, veio a paularia na parlamentar, com a cantilena do senso comum de sempre: os deputados não têm o que fazer, a Bahia tem trocentas prioridades outras para merecer proibição e projetos de lei, por que a deputada não vai proibir o povo do funk, que é bem mais desrespeitoso com a mulher, por que ninguém nunca se preocupou com a misoginia que sempre esteve presente na MPB, na obra de Chico, Caetano e João das Couves e, a mais elementar de todas as teses: o pagode não ofende as mulheres. Ao contrário, ele as homenageia, as celebras, e elas adoram, pois todos os versos que falam da sensualidade (da mulher baiana, pois a baianidade adora esta expressão) são uma brincadeira saudável...


Bom, primeiro é bom que alguns críticos aprendam a mais elementar das lições politiquinhas quando forem contrapor um objeto de um projeto de lei a outro. A deputada Luiza Maia tem uma mandato conquistado para ser exercido na Assembléia Legislativa do Estado da Bahia e só pode, e se puder, se seus projetos forem aprovados, se meter com as causas e as coisas da Bahia. O funk do Rio, se é que alguém está incomodado com ele, não poderia ser objeto do mandato da deputada. Os deputados estaduais cariocas que vejam se Sérgio Cabral, além de voar de jatinho de empreiteiro, pode ou não pode remunerar o povo do funk para chamar as patricinhas do Leblon de cachorra, mesmo que essas não vejam nisso mal nenhum, como atesta em carne e fala Heloísa Faissol, a riquinha da zona sul que adora o epíteto de Galinha do Funk. Depois, independentemente do futuro do projeto da deputada entre os seus pares, que são quem, na verdade, vão decidir se ele vai ou não se tornar lei, a tese da brincadeira elogiosa e celebratória é para rir, não é não?


CANASTRONA - Na hora em que se trata da relativizar e aliviar o peso das ofensas midiáticas proferidas contra a mulher e sua sexualidade e corpo, é impressionante como as vítimas dos outros preconceitos se tornam tolerantes de carteirinha. Há, na história da MPB, letras de viés misógino e com ofensas contra as mulheres? E como! Mas o tempo não faz as coisas mudarem? A inquisição matava gente e hoje isso soa uma aberração. O cancioneiro popular, até bem pouco tempo, dizia o que queria sobre negros, mulatas e pobres. Mas hoje, faça-se uma música com uma ‘brincadeira’ bem humorada com um deles e veja como o mundindo civilizado reage. Então, por que, só com a mulher, a tese da brincadeira e da homenagem deve prevalecer? 


Quer dizer que não se pode mais brincar com elementos da negritude, da homossexualidade, da pobreza, porque isso fere a dignidade da pessoa humana, mas com a mulher pode, Luiza? Infelizmente, o que norteia não apenas o projeto da deputada, mas sobretudo, as reações contra ele, é algo muito mais sólido e sério do que a forma canastrona como veículos de imprensa vêm fazendo enquetes com a pergunta mal formulada a leitores e telespectadores, associando o projeto a um ato de censura, inflando a polêmica rasa. A verdade dos fatos é só uma: cada povo tem o cancioneiro que merece. Muitas moiçolas adoram as brincadeiras do pagode e do funk. Por que? Ah, a resposta provavelmente seria enquadrada como atentado à dignidade feminina, ao passo que ser comparada a uma lata é só uma brincadeira ‘positiva’.  

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 07 de agosto de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com