domingo, 26 de dezembro de 2010

Malu Fontes

TELEANÁLISE

 
COM CARTÃO DE CRÉDITO E SEM RECEITA


Como é da natureza da televisão ser rápida, obedecer a um fluxo ininterrupto e nunca reduzir a velocidade das informações que veicula, o telejornalismo raramente convida o telespectador à reflexão e a levar em conta o contraditório. Quando o público pensa em deter-se sobre um assunto, já é outro timing, outra viagem, outra notícia e a apresentadora já está sorrindo, anunciando o sol a pino que fará de norte a sul do País, ou mostrando os shopping centers transbordantes de consumidores impulsionados pelo clima de Natal.

Nas duas últimas semanas, algumas informações repetidas em todos os telejornais mereciam um tantinho de conexão entre si, se a TV de fato se quisesse ver como um veículo informativo, para além do entretenimento noticioso. Como a presença do apresentador-âncora, que comenta as notícias, é hoje uma constante no telejornalismo, é de causar estranheza o fato de algumas matérias abordarem um determinado fato sem contemplar jamais as relações de causa e efeito existentes em torno dele. Três exemplos de fatos amplamente abordados esta semana são o recorde de inadimplência dos brasileiros em suas finanças e a comemoração do comércio e do setor de serviços diante do estratosférico sucesso de vendas neste Natal de 2010 e a proibição legal da venda de antibióticos sem a existência e retenção da receita médica pelas farmácias.


PAPAI NOEL - Essas três notícias passaram os últimos dias grudadas em todos os telejornais, locais e nacionais. Entretanto, aspectos fundamentais a elas relacionados foram convenientemente esquecidos na abordagem. A primeira estranheza é causada pelo fato de as matérias sobre as pesquisas do mundo financeiro dando conta do recorde de inadimplência batido neste mês de dezembro pelos brasileiros e sobre o paradoxal recorde de vendas no Natal virem sempre separadas, jamais sendo relacionadas. Como uma sociedade endividada pode estar consumindo tanto e a primeira notícia ser considerada ruim e a segunda ótima? O tom dos apresentadores e repórteres ao noticiar os altos índices de inadimplência é sempre de tensão. Afinal, esse é um tipo de fenômeno, o calote dos brasileiros, que costuma literalmente personalizar o mercado financeiro ao ponto de deixá-lo 'nervoso'.

Em contrapartida, as matérias que anunciam a festa do consumo recorde nos shopping centers, nas ruas e no mercado on line, ah essas são narradas por apresentadores alegres e repórteres sorridentes geralmente em algum shopping cheio ou numa área de comércio popular com engarrafamento humano, de gente mal podendo se mexer para enfrentar o caos das compras.  É preciso ressaltar ainda o fato de que, nas matérias sobre inadimplência, fica claro que o fenômeno foi detectado porque um padrão se rompeu. O brasileiro sempre usou o décimo terceiro salário para quitar as dívidas em dezembro. Neste ano, dezembro chegou e as dívidas continuaram intocadas em lojas, bancos, financeiras, prestadoras de serviço. O telespectador da TV aberta que tiver assistido uma única matéria abordando o que diz sobre o país a simultaneidade desses dois fenômenos tão convergentes e díspares ao mesmo tempo, vai ganhar presente de Papai Noel. Quem viu um repórter questionar qualquer entrevistado, seja um consumidor ou um especialista em análise de conjuntura econômica, sobre a relação existente entre o 'brasileiro' que dá calote em suas dívidas ou não tem mesmo dinheiro para pagá-las, e esse outro personagem, o 'consumidor', que está levando o mundo para casa e pagando no cartão de crédito? E isso em um tempo em que a Europa e os Estados Unidos vivem uma crise gigantesca gerada justamente pelo crédito pessoal fácil.
Mas a TV tem um bom motivo para não relacionar o brasileiro que está devendo, não paga e deixa o mercado nervoso ao consumidor feliz que está fazendo a festa do mesmo mercado no shopping center: os anunciantes, que anseiam pelo consumidor feliz e não estariam nem um pouco dispostos a anunciar seus sonhos de consumo em emissoras cujos telejornais ficassem indiretamente assustando o telespectador consumidor, insinuando que tem algo errado se ele não está pagando as contas e ainda por cima está se endividando mais.


CADÊ OS MÉDICOS? - O outro exemplo de notícia na qual tem feito falta o aprofundamento da apuração jornalística é o da proibição das farmácias de vender antibióticos sem receita médica, que deverá ficar retida após a venda. Viram-se repórteres em trocentos balcões de farmácia e entrevistando o povo na rua, mas não se viu nenhum questionando o poder público sobre como irão garantir às pessoas que costumavam aliviar suas doenças na farmácia o acesso a médicos que lhes darão uma receita ao primeiro sinal de infecção. É louvável que um país preocupe-se com a saúde da população. E isso inclui criar mecanismos que evitem a automedicação. No entanto, como exigir receita se a população não tem acesso a médicos que possam prescrevê-las? Nos postos de saúde e emergência até mesmo os casos de urgência padecem para ser atendidos. Consultas médicas na rede pública só se marca para meses depois.

Se antes as pessoas podiam sofrer futuramente pelos efeitos colaterais do uso indiscriminado de antibióticos, o poder público antecipou o sofrimento. Fique-se com a dor imediata e sem remédios, pois não há médicos suficientes a quem os mais pobres possam recorrer. Repete-se com a exigência da receita algo parecido à falta de sincronicidade que de se dá com as cotas para vagas nas universidades públicas. Implantam-se as cotas, mas não se investe na escola pública fundamental e média para que, no futuro, as cotas tornem-se desnecessárias. Implanta-se obrigatoriedade e retenção de receita médica, mas não se dá à população o acesso a médicos para prescrever os medicamentos.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 26 de Dezembro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 12 de dezembro de 2010

Fofocas diplomáticas e camisinhas rasgadas



 


Jornalista escreve aos domingos na Revista da TV/Jornal A Tarde

TELEANÁLISE


Malu Fontes



A notícia mais veiculada nas emissoras de TV de todo o mundo foi o segundo round do estrago feito pelo australiano Julian Assange, criador do site WikeLeaks, contra a sisudez que se convencionou esperar da diplomacia internacional. Após, há poucos meses, repassar para os principais jornais do mundo, como o inglês The Guardian, e o norte-americano New York Times, documentos que escancaravam os crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Afeganistão, Paquistão, Iraque e Guantánamo (Cuba), na última semana o site de Assange lavou a alma das celebridades de todo o mundo que, mesmo quando contra suas vontades, não conseguem dar um passo ou pronunciar um A sem que isso vá parar nas manchetes dos sites, jornais, tablóides, revistas, telejornais e programas de entretenimento televisivos. As celebridades ganharam companhia na fita da invasão da privacidade.

Em tempos nos quais a vida acontece on line, desde a privada às rotinas das grandes corporações e agendas dos governos mais importantes do mundo, tudo acontece em tempo recorde. Se até ontem Assange era um desconhecido, em menos de dois meses tornou-se uma personalidade global, o fugitivo mais procurado pela Interpol até o início desta semana, quando entregou-se à Scotland Yard, na Inglaterra. Dificilmente lhe tirarão das mãos por um bom tempo a condição de responsável pelo maior vazamento de dados secretos da História. Assange anunciou aos ban ban bans da imprensa mundial ter nada menos que 250 mil documentos secretos da diplomacia dos Estados Unidos. Hillary Clinton, a prima-dona das relações internacionais do Governo Barack Obama, já se descobriu em saias justíssimas com a publicação de apenas meia dúzia deles. 

LEIS DA CAMA - A história de Assange, no entanto, avança em publicização midiática, em todo o mundo, para muito além dos segredos de Estado e de grandes corporações norte-americanas, que ele diz também possuir. Algumas das nações tidas como entre as mais civilizadas do mundo, talvez justamente por isso, por já terem resolvidos todos os seus problemas basiquinhos, debruçam-se a elaborar leis estranhíssimas, algumas delas para legislar sobre o que se pode e não pode fazer na cama, na hora do sexo, entre quatro paredes, por livre e espontânea vontade do casal. É o caso da Suécia, embora poucas emissoras de TV do mundo, em suas quinhentas mil matérias diárias no telejornalismo sobre a caçada e a a prisão de Assange, pareçam sentir-se na obrigação de explicar certas minúcias sobre o estupro à sueca. Minúcias que deixam de sê-las justamente por terem se tornado o grande álibi dos poderosos do mundo para enjaular o criador do WikiLeaks.

Na Suécia, se um homem vai para a cama com uma mulher, usa camisinha e esta se rompe durante o ato sexual, ele estará em maus lençóis e poderá ser caçado pela polícia em todo o mundo, caso não se apresente à lei imediatamente após o coito cujo desfecho incluiu um látex rasgado. A não ser que, antes do ato, o sujeito peça à parceira para assinar uma autorização, sim, escrita, dizendo que, ok, se algo do tipo acontecer, tudo bem. Infelizmente, o controle de qualidade de dois preservativos usados por Assange se mostrou falho com duas diferentes mulheres suecas,  em sessões distintas. E ele nao teve a astúcia de pedir às moças que assinassem previamente uma autorização na qual isentariam Assange da responsabilidade pela borracha rasgada. Numa viagem à Suécia, em agosto deste ano, o hoje inimigo número um dos Estados Unidos manteve relações sexuais com duas mulheres. Coincidentemente, assim que os documentos de guerra americanos estamparam páginas, sites e telas de TV, apareceu uma denúncia de ambas por conta do preservativo partido. Não, nenhuma está ou esteve grávida. Uma o acusa de abuso sexual e outra de estupro, embora a razão da queixa seja a mesma já dita, o preservativo de baixa resistência.


CANDINHAS -Por isso, sim, por camisinhas rasgadas, e não pelo vazamento dos tais documentos secretos, Julian Assange está preso por estupro, pois o estupro à sueca pode ser muito diverso da violência exigida por aqui para caracterizar o ato sexual não consentido. O vazamento das informações confidenciais surrupiadas dos seguríssimos arquivos secretos da diplomacia dos Estados Unidos, com a ajuda prestimosa e eficientíssima de um soldado americano de 22 anos, tem provocado um alvoroço sem precedentes nas redes sociais, nas universidades, nos círculos militares, na imprensa e em qualquer conversa semi-intelectualizada sobre os limites da privacidade dos governos e sobre as virtudes da transparência das rotinas governamentais. Apesar do barulho, as informações veiculadas até agora mais parecem fofocas de Candinhas diplomáticas em tardes ociosas no salão de beleza. Como caracterizar de outra forma senão dessa a informação de que Hillary Clinton mandou o serviço secreto dos Estados Unidos investigar se a presidente argentina, Cristina Kirchner, goza de boa saúde mental e se toma remédios psiquiátricos, diante da impressão que a comadre latina lhe causou de ser uma desequilibrada? Outras informações secretíssimas do mesmo naipe dão conta de que a mesma Cristina fala mal do presidente Lula para puxar o saco e se aproximar de Obama, que Hugo Chávez é doido e que os diplomatas brasileiros são paranóicos quanto aos interesses do mundo pela Amazônia.

Sobre o direito à privacidade reivindicado pelos diplomatas, estes têm a quem recorrer para uma boa consultoria: as celebridades. Se estas, que não vivem de salário pago pelo contribuinte, se não devem satisfação à opinião pública têm, mesmo quando não querem, suas vidas e rotinas avessadas ao grau zero, por que os diplomatas invocam a tese de que o acesso às suas formas de agir coloca em risco a segurança do mundo? Não é por nada, não é por nada, mas, até onde se sabe, a divulgação dos documentos americanos pelo WikiLeaks não provocou uma só morte até agora. Já as atrocidades cometidas pelas desrazões da diplomacia dos Estados Unidos deixaram pilhas de milhares de cadáveres, a maioria civis absolutamente inocentes, por todos os lugares onde passa, com sua mania de ser a polícia do mundo. O Iraque, o Afeganistão e o Paquistão que o digam.

domingo, 5 de dezembro de 2010