domingo, 30 de janeiro de 2011

TELEANÁLISE: DINHEIRO NÃO TOLERA LUTO

Malu Fontes
Malu Fontes, jornalista e professora


Um dos principais e mais repetidos bordões do telejornalismo econômico ancora-se em um termo que dota o mercado financeiro de uma certa personificação, associando-o a estados de comportamento inerentes à condição humana. Quem nunca ouviu e viu Míriam Leitão anunciar numa manhã que o mercado acordou nervoso e numa outra dizer que o tal acalmou-se? Na vida real e de viés, no entanto, a aproximação, inclusive a semântica, entre as engrenagens que movem os humores do dinheiro e o estado de espírito das pessoas de carne e osso acaba nas quase caricaturais metáforas do jornalismo econômico. A distância abissal que separa os interesses econômicos das necessidades humanas não é traduzível nem mesmo pelas metáforas acerca do nervosismo e da calmaria atribuídas ao inapreensível mercado.

TRILHA SONORA – É fato que ninguém de bom senso que consome informação pela TV possa dizer que se acostumou às imagens – e a essa altura do fato ainda há sempre uma cena inédita, em torno dos desdobramentos da tragédia – e aos relatos produzidos pelas consequências das chuvas nos municípios serranos do Rio. No entanto, é nas falas aparentemente comuns e distanciadas do choque e da tristeza gerados pelo episódio que a condição banal e efêmera da vida humana se revela em toda a crueza. A vida é uma festa para a qual todos vivem o tempo todo sendo convidados e não há tempo, tolerância nem permissão para tristeza e luto. O choro e a dor só são tolerados se em escala imediata, instantânea, pois o dono da engrenagem da vida planetária, o mercado, não tem tempo a perder com elaborações nem tempo de secagem de pranto. Que enlouqueçam todos, na festa abstrata, mas não entristeça nenhum, na tristeza real.

Diante do trágico, a voz impaciente e ameaçadora do mercado só consegue ficar muda por um brevíssimo instante, por um tempo irretocavelmente traduzido pela homenagem que se faz a mortos em grandes espetáculos midiáticos, como jogos de futebol entre times estrelares e em shows de ídolos de massa: o minuto de silêncio. O mercado dá ao homem inserido em sua lógica apenas um minuto para prantear, elaborar e abandonar o luto. Findo o minuto de silêncio, no seguinte a ordem das coisas já é outra e alguém precisa incorporar o sádico que exige o som das máquinas registradoras de cartões de crédito, a real trilha sonora da festa desse tempo contemporâneo, que não urge, mas sim ruge, literalmente.

PETRÓPOLIS TÁ LEGAL - Menos de duas semanas após a chuva diluviana que matou algo perto de mil pessoas, com trechos de vários municípios mais inóspitos ao olhar humano que a ideia que se faz do inferno, fazendo-se apenas a troca do fogo por lama, eis que em uma entrevista banal, insuspeita e despretensiosa, aparece a voz de trovão do mercado exigindo um basta a tristezas, lágrimas e, subliminarmente, às imagens de destruição, pois é preciso faturar, é preciso reiniciar o bota e tira das tarjetas magnéticas dos cartões de crédito senão uma nova tragédia se abaterá sobre os sobreviventes das cidades serranas. Poderia ser qualquer um, o avatar do mercado, e por razões que pouco importam e que não fazem diferença alguma, quem entrou em cena incorporando a ordem do mercado, travestida de apelo, foi o prefeito de Petrópolis, Paulo Mustrangi. Depois de alguns dias de choro, percebeu-se o buraco causado na economia do município pela queda na visitação turística à cidade. Imediatamente foi criada uma comissão, formada por entidades de classe empresariais e turísticas, que colocou uma campanha publicitária na rua para atrair de volta os turistas em fuga: “Petrópolis tá legal”.

CHEIRO DE MORTE - A lógica do dinheiro é o que, de fato, move o mundo. Ela é inexorável e não é dada à perda de tempo chorando sobre a lama derramada. Mas não deixa de ser curioso imaginar qual é o tipo de turista que atende à convocação de uma campanha dessa natureza. A lógica por trás da campanha é: ora, em Petrópolis mesmo morreram ‘pouquíssimas’ pessoas (67). Isso é irremediável e não pode impactar – para usar uma palavra horrenda do mundão financeiro – a economia do município. As entrevistas do prefeito às emissoras de televisão têm, certamente à revelia do desejo dele, um certo tom de ameaça. Elas centram-se na tese de que os turistas devem esquecer a tragédia, mudar de ideia quanto aos cancelamentos das diárias nos hotéis e pousadas e irem correndo para a cidade, como faziam em anos anteriores, para encher os bares e restaurantes e para comprar o estoque do pólo têxtil local. Se isso não acontecer, infelizmente, subentende-se, haverá outra tragédia para quem sobreviveu: centenas de moradores perderão seus empregos nos hotéis, no comércio, na indústria de confecções e nos bares e restaurantes.
A campanha foi deflagrada depois que 100% das reservas da rede hoteleira local foram canceladas após a noite diluviana do dia 11 de janeiro. Provar é difícil, mas é mais simples acreditar na veracidade de uma nota de R$ 15 que pressupor que as pessoas que lançam esse convite ao prazer e ao consumo, com a região ainda rescendendo o cheiro de morte e destruição, estejam felizes com o telejornalismo cotidianamente mostrando os dramas dos sobreviventes que perderam tudo e o pedido de envio dos donativos de grande necessidade.
Falta coragem, mas o que os idealizadores da campanha “Petrópolis tá legal” desejariam era pedir que as emissoras parassem de mostrar a todo o tempo as cenas pós-tusami e substituíssem os pedidos de donativos por um convitezinho mais festivo a casais para passar uns dias românticos no frio da Serra do Mar. Garantia de que não vai desabar mais nada? Não, isso não precisa, afinal a auto-confiança dos donos do poder e do dinheiro ultrapassa qualquer fronteira de bom senso. Por mais que se viva em uma cultura que convida todos, todo o tempo, para o hedonismo e o prazer individual, quantas pessoas, hoje, que compartilham o que quer que seja parecido com senso de humanidade, sentiriam-se felizes divertindo-se e consumindo num lugar onde o sofrimento ainda parece berrar?


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 30 de Janeiro de 2011 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

sábado, 29 de janeiro de 2011

De vítima a ignorante

Malu Fontes, jornalista e professora
Malu Fontes


Quando uma pesquisa revela que a população de Salvador não tem como hábito ou prioridade frequentar espetáculos culturais, certamente a primeira tentação dos bem intencionados defensores da alta cultura é adjetivar o universo dos pesquisados da maneira mais óbvia: um bando de ignorantes.
Entretanto, adjetivar negativamente uma população por seu desinteresse pelos chamados produtos da média e alta cultura equivale ao mesmo equívoco cometido quando se atribui à mocinha vestida numa microssaia a responsabilidade pelo estupro do qual foi vítima.

Uma população que não gosta de teatro, museus, artes plásticas e cinema, entre outras modalidades, nada mais é senão o produto mastigado, engolido e deglutido pelos poderes públicos que sempre lhe destinaram uma educação de péssima qualidade e também das elites econômicas que preferem ter ao seu dispor espécimes humanas de cordeiros dóceis, incapazes de refletir sobre o modo como são tratados. Sim, pois não dá para dissociar a capacidade e a habilidade de entregar-se à fruição proporcionada pela arte sem expandir a consciência de si e sem desenvolver posturas críticas diante das mazelas sociais de que se é vítima.

O fato é que a mesma elite que torce o nariz para a turba ignara que não vai ao teatro é a mesma que se regozija por as coisas serem assim, pois, se o comportamento cultural fosse diferente, isso produziria efeitos críticos devastadores nos modos desse público confrontar-se com a própria elite. A arte revolve e estimula a reflexão. Ou alguém acredita que é coincidência o fato de esta cidade investir tanto e tão somente em práticas culturais que mobilizam apenas os baixos instintos?

Já as autoridades públicas que reagem com declarações paternalistas são ainda mais perversas, pois a indiferença da população às artes é tão somente efeito colateral de uma educação de eficácia mínima que essas mesmas autoridades lhe negaram a vida inteira.

Além de ser injusto e abaixo do vulgar responsabilizar e tachar de ignorante quem não vai ao teatro, ao cinema, ao museu, vale lembrar outros detalhes tão grandes deste estado de coisas. A quase totalidade dos museus não abre aos domingos e feriados e, durante a semana, a maioria trabalha ou vai à escola (sum, para continuar sendo tábula rasa). E a que horas são encenados a maioria dos espetáculos de teatro? E onde ficam localizadas as salas de espetáculos senão em bairros  centrais? Se os trens do subúrbio não funcionam nem mesmo para levar as pessoas para o trabalho e trazê-las de volta, se o poder público não consegue, em 12 anos, colocar um metrô para funcionar, como querem que as pessoas voltem para casa à meia noite, após assistir uma peça de teatro?  Para o Muquifest, as empresas de transporte coletivo destinam um esquema especial de ônibus...


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicacão e Cultura Contemporâneas e professora da Faculdade de Comunicação da UFBA; maluzes@gmail.com; texto publicado originalmente (em versão reduzida) no jornal A Tarde deste sábado, 29 de Janeiro.

domingo, 23 de janeiro de 2011

TELEANÁLISE: Tudo de Novo Outra Vez

 Malu Fontes

Malu Fontes, jornalista e professora
“Os personagens mudam, mas os cenários são os mesmos". Esta fala da locutora Isabel Sales, entrevistada durante o resgate de três corpos mortos soterrados em deslizamentos, no início da semana passada, na cidade paulista de Mauá, foi veiculada em todos os telejornais da Rede Globo e da Globo News. No mesmo dia em que a entrevista de Isabel fora ao ar, à noite cerca de mil pessoas morreriam também por soterramento e afogamento nos municípios fluminenses localizados na região da Serra do Mar, numa tragédia cuja escala não registra precedência no Brasil.

É verdade que as mortes ocorridas na região serrana do Rio são uma exceção em tudo, mas nem por isso a fala de Isabel deixa de ser a tradução mais que perfeita para as tragédias anunciadas a cada ano, causadas pelas chuvas de verão, não apenas nas mesmas cidades brasileiras, como São Paulo e cidades do sul de Minas, por exemplo, mas a cada ano em diferentes municípios. Só para efeito comparativo, não deve ser esquecida a desproporção matemática entre todos os mortos em função de chuvas no Brasil este ano e os mortos na Austrália, por exemplo, que enfrenta as piores enchentes de sua história em um século.
É fato que as tragédias climáticas fazem e farão parte da história natural do mundo e, que, diante do fenômeno das mudanças climáticas, envolvendo secas, nevascas e enchentes, tudo leva a crer que se tornarão ainda mais frequentes do que já o são. No entanto, em um mundo dotado de tanto instrumental científico, de tanta tecnologia de ponta que permite antever desastres antes de eles acontecerem, ainda não se chega ao ponto de esperar que o domínio científico impeça a ocorrência dos fenômenos naturais. Mas a incapacidade de impedir o tamanho da catástrofe sobre centenas ou milhares de vidas já é coisa de outra ordem e que pouco e muitas vezes quase nada, tem a ver com a natureza.
RIBANCEIRA - Quando não há 'teto', o mundo dos negócios impede que pessoas embarquem em aviões rumo aos céus, em qualquer lugar do mundo. Sem teto, aviões são proibidos de sair do chão. Então, por que, para ficar no caso brasileiro, quando se sabe que índices pluviométricos diluvianos cairão sobre determinadas cidades, não há hoje nenhuma cidade do país dotada de nenhum mecanismo técnico de prevenção para, se não impedir toda e qualquer morte, pelo menos reduzir os números trágicos a algo perto de zero?

As poucas mortes ocorridas por deslizamentos e por afogamento em águas de enchentes nos bairros às margens dos rios Pinheiros e Tietê, São Paulo, por exemplo, são mais inexplicáveis e inadmissíveis que as centenas das ocorridas em Nova Friburgo. Em São Paulo, o que ocorre é a tradição do mesmo cenário com diferentes/novos personagens, ano após ano. No caso de São Paulo, é a natureza, sem nenhuma resistência do poder público, fazendo, a cada verão, tudo de novo outra vez. Já em Friburgo, por exemplo, ao contrário, nada há de rotineiro no fato de uma serra íngreme, completamente desabitada e coberta de floresta virgem, que, por excesso de água da chuva infiltrando-se num solo de topografia peculiar, desce ribanceira abaixo, a uma velocidade de 150km por hora, destruindo bairros inteiros que sequer eram localizados em área de risco e soterrando de lama até o teto o centro da cidade. Nem os cumes de serras que despejaram água, lama e árvores morro abaixo eram habitados ou devastados e nem tampouco o centro de Friburgo localizava-se em encosta. Já o Tietê, derrama-se (e mata) todos os anos.

O diabo mora é nos detalhes. O que se esconde por trás das tragédias que assolaram, antes, Santa Catarina, Alagoas, Pernambuco, Angra dos Reis, Niterói (Morro do Bumba) e, agora, Mauá, São Paulo, dezenas de cidades de Minas e que causaram uma hecatombe na serra fluminense, é a demonstração de uma tese perversa. Embora a sofisticação e a eficácia científica e tecnológica garantam hoje quase todas as conquistas e proteções para os mundos corporativos, quando se trata de prevenção para garantir vidas humanas, sobretudo em países pobres ou mesmo em passos avançados de desenvolvimento, como é o caso do Brasil, o assunto parece ser ainda algo para ser tratado no departamento do divino.
AMÉM - Avião não voa sem teto porque há leis, planos, regras e equipamentos que impedem. Mas, mesmo diante da previsão de que índices pluviométricos excepcionais cairão sobre cidades, nada é feito para impedir que pessoas morram rotineiramente e às centenas em consequência disso. Se um avião cai porque voou com ou sem teto, o mundo das corporações e as corretoras de seguros pagam indenizações milionárias às famílias dos mortos, mesmo que sob batalhas judiciais. Quanto de indenização os gestores públicos que histórica e rotineiramente não movem uma sirene para impedir dezenas de mortes numa noite de chuvas já pagaram a familiares de vítimas no Brasil? As tragédias urbanas brasileiras sempre são anotadas na cadernetinha já ensebada da vontade divina e na falta de bom senso de São Pedro para regular as torneiras das chuvas. E o próprio povo, quando sobrevive, ainda manda recado aos céus pela tela da TV: os seus morreram porque Deus quis e os salvos são os privilegiados da bondade e proteção do mesmo Deus. Amém.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 23 de Janeiro de 2011 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 16 de janeiro de 2011

TELEANÁLISE: O Ladrão de Cobre

Malu Fontes
Crédito da imagem: Globo.com
As cenas televisivas mais marcantes da semana foram as torrentes de água, terra e lama desmanchando boa parte das cidades serranas do Rio de Janeiro (Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo), somando, até a manhã de quinta-feira, mais de 350 mortes confirmadas. No entanto, antes de essa tragédia acontecer, uma cena brasileira exibida na TV merece reflexão, como tradução de uma certa (i)moralidade nacional que se espraia, cada vez a passos mais largos. Na ultima terça-feira, um repórter cinematográfico da Rede Globo registrou, com requintes de detalhes, um homem, em plena luz do dia, na Ponte da Freguesia do Ó, em São Paulo, quebrando com golpes de picareta a mureta da ponte para roubar fios de cobre da rede de iluminação pública.
O homem (depois identificado e preso graças às imagens) sai do cenário do crime após conseguir o intento, carregando uma rodilha de metros de fio sob o braço, numa bicicleta. Todo o tempo sabendo-se filmado e nem por isso interrompendo o ato criminoso, à saída dirige-se para a câmera e desafia o cinegrafista com ar provocativo: “Pode filmar. Sou ladrão, roubo cobre. Pode continuar filmando. Não roubo pai de família, só cobre. Depois manda meus 20% da imagem, viu?”. Com as devidas adaptações argumentativas, o fato é que o ar superior e de desafio do ladrão e sua quase lição de moral apresentada à câmera, ao contrapor o roubo de fios a assaltos a pais de famílias, não difere muito das reações da maioria dos pequenos e grandes infratores brasileiros, de todos os tipos e de todas as classes sociais, que, quando flagrados cometendo atos ilícitos, costumam ter na ponta da língua uma justificativa para atenuar suas infrações.  
PIRATARIA - O contingente de desonestos brasileiros, que, diga-se de passagem, parece estar tornando-se maioria, parece ter corticalizado que desonestidade mesmo é somente aquilo que é praticado pelo outro, o distante deles, preferencialmente as pessoas da classe política. Veja-se, como exemplo, a avalanche de notícias que se vê e lê sobre os políticos moralmente linchados por corrupção e o quanto o mesmo linchamento é esquecido de ser aplicado na mesma medida e intensidade contra a classe empresarial, cujo dinheiro é o que compra a abertura das portas políticas. De forma subliminar, o senso comum parece partir da prerrogativa de que os empresários estão em seu direito de serem corruptos, corruptores e desonestos para obter vantagens, enquanto quem deve ser enviado para os porões do purgatório são apenas as classes políticas. Sim, a sociedade brasileira é de uma hipocrisia e de uma leniência com o empresariado corrupto que beira a admiração.
Brasileiros de todas as classes sociais, sobretudo da classe média, que não vive sem seu pacote de jeitinhos para se dar bem, decidem todos os dias que desonestos são os outros. Eles próprios são apenas espertos que se viram para garantir uma vida mais digna às suas famílias. Argumenta-se, sempre, com o batido discurso da vítima da falta de oportunidades lutando para sobreviver com os métodos que pode. Dos pobres que vivem da pirataria, da venda de produtos roubados ou contrabandeados, aos grandes empresários que sonegam impostos, a tese da atenuação da desonestidade é um mantra comum aos dois segmentos sociais: “eu poderia estar matando, eu poderia estar roubando, mas, não; estou apenas fazendo alguma coisa para sobreviver e colocar comida em casa; estou apenas me defendendo de um Estado parasitário que esfola o empresário com o abuso de impostos".
Desonestos mesmo, segundo o senso comum (conservador, reacionário e dotado de um punhado de argumentos tortos herdados da direitona iletrada e patrimonialista), são os Sarneys, os Malufs e outros que tais. Vá perguntar ao ladrão de cobre se ele é criminoso. Ele está convencido de que não, pois, como explicou, não rouba pais de família. Dirá ser apenas um cidadão sem oportunidade lutando pela sobrevivência. Mas, pergunte sua opinião sobre os senadores, deputados... No Brasil, a ideia é sempre esta: safar-se apontando o dedo acusador para o outro, de um modo tal que o país parece ter instaurado na moralidade pública e na ética social um novo tipo de padrão de comportamento: a honestidade relativa. É-se honesto, desde que alguém, à frente, atrás ou ao lado, cometa um ato um tantinho só mais criminoso do que o cometido por quem é acusado de algo ilícito. Nessa contemporização relativizada da imoralidade e da desonestidade, a sociedade vai se esgarçando de tal modo que todos desconfiam de todos.
APOCALIPSE - Sobre o Rio, a natureza geológica e geográfica das cidades serranas destruídas pela fúria da natureza, torna mais difícil, desta vez, as acusações políticas nos moldes que se fez, no ano passado, à Prefeitura de Niterói, quando da tragédia do Morro do Bumba. Nova Friburgo, por exemplo, foi fincada num vale entranhado entre duas montanhas e com um rio cortando-a ao meio. E não foi construída ontem. Teresópolis e Petrópolis já eram o xodó de D. Pedro no Império e, desde então, sobe-se a serra não apenas para morar, mas para casas de campo de férias. Falar em ocupação desordenada e irregular, nestes casos, já não basta, mesmo porque áreas de matas intocadas caíram junto com mansões em terra plana e com casas precárias em encostas.
Há equívocos na ocupação dos morros do século XIX para cá? Sim, mas nenhum passível de personalização e de atribuição a uma gestão pública específica. É mais um padrão urbano brasileiro do improviso sobre a natureza. Se há erros contra a natureza, são literalmente erros seculares e com responsabilidades pulverizadas a perder de vista, coisas que vem da época de D. Pedro, quando a natureza não era temível e mudanças climáticas eram tão prováveis quanto o apocalipse. Hoje, sabe-se, essas mudanças obrigarão as sociedades que sempre agiram apoiadas no improviso a redefinir à força seus modos de ocupação da natureza.      









Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 16 de Janeiro de 2011 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 9 de janeiro de 2011

TELEANÁLISE: O Machismo Feminino

Malu Fontes escreve para a "Revista da TV"
Malu Fontes

Há uma semana, tomou posse a primeira mulher brasileira eleita para a Presidência da República. Nas primeiras horas do Governo Dilma Rousseff, nove mulheres assumiram ministérios, ocupando um quarto do primeiro escalão, 25% das indicações mais importantes. No entanto, a personagem feminina que mais chamou atenção dos meios de comunicação não foi nenhuma dessas mulheres, mas uma moça até então desconhecida, até mesmo para a maioria dos habituais telespectadores do noticiário público. Após ser exibida pelas câmeras de TV que transmitiam a posse para o Brasil e o mundo, Marcela Temer, uma mulher de 27 anos, bonita e casada com o vice-presidente da República, Michel Temer, tornou-se, para usar um termo usado e repetido pela imprensa durante a semana, o grande ‘furor’ da posse de Dilma Rousseff.
Para além da repercussão, sempre em tons de imprensa cor-de-rosa, gerada pela associação entre os dotes físicos de Marcela, uma ex-miss, e seu casamento com um homem poderoso e 40 anos mais velho, o que ficou escancarado em 11 de cada 10 comentários emitidos a respeito da vice-primeira dama foi a proximidade grosseira entre o machismo arraigado dos homens brasileiros e o das mulheres, de todas as idades, classes sociais e áreas de atuação. Se há um território fértil e propício, hoje, à análise das repercussões e dos desdobramentos dos fatos veiculados na TV, são as redes sociais, acompanhadas de blogs e congêneres. O que não quer dizer, de modo algum, que, neste caso, os grandes portais de notícias, tidos como mais sérios e profissionais, não tenham também mordido a maçã da maledicência e da vulgaridade e dedicado a Marcela os mesmos adjetivos e trocadilhos derrapados na condenação moral.    
Marcela tem 27 anos e há sete está casada com Michel Temer, com quem tem um filho caminhando para os dois anos. Ou seja, não deu o golpe da barriga para casar e nada a associa a uma doidivanas de ocasião que, diante do poder à vista, caiu na rede do coroa que aqui e ali sentará na Presidência da República. Nesses sete anos, pelo que se saiba, nunca foi vista expondo sua figura na Medina (sim, O Clone está de volta), nem tampouco arrastando seu sári no mercado (Glória Perez, idem, em Caminho das Índias). Mas bastou aparecer diante das câmeras no Parlatório da Posse e na Rampa do Palácio, durante a solenidade de posse de Dilma e Temer, para Marcela se tornar o alvo irresistível de um corolário de julgamentos morais para lá de demonizadores.  
FORA DE FORMA - Se durante esta semana algum brasileiro não viu ou ouviu qualquer referência a Marcela Temer, certamente estava ilhado nas enchentes da Austrália. Apareceu de tudo na TV e na Internet. De fotógrafa oportunista querendo ganhar uns trocados com fotos de desfile de concurso de beleza quando ela não passava de adolescente, a jornalistas e atrizes-modelos a destilarem veneno contra a moça. A jornalista Mônica Waldvogel, uma das papisas do tucanato ainda desconsolado, da GloboNews, escreveu em seu twitter que Marcela estava muito mal vestida e deselegante para a ocasião. Beth Lago, um tanto fora de forma para quem preza tanto a dos outros, em uma conversa de comadre com a eternamente jovem e irretocável Ana Maria Braga, levou intermináveis minutos aplicando a Marcela condenações estéticas que tornaram as de Waldvogel elogios de primeira grandeza.
Após uma semana diante da imagem de Marcela na TV, e, diga-se, de nenhuma aparente disposição inicial dela para alimentar o circo montado à sua revelia em torno de sua imagem (sim, os produtores do Fantástico devem estar negociando as mães para Patrícia Poeta ser recebida pela vice-primeira dama no Palácio do Jaburu, a residência oficial dos vices-presidentes), e diante das repercussões nos jornais e nas redes sociais, o que se tem, de concreto, é uma lição e tanto sobre os modos de manifestação do machismo masculino (era para ser redundante, mas, neste caso, não é) e feminino.
MERCADO DAS CARNES - As mulheres não perdoam Marcela por ela ser jovem, bela e casada com o um homem poderoso. Se ela tem tudo isso, claro, precisa ser automaticamente descompensada do ponto de vista moral: tem isso porque é uma vendida imoral, uma alpinista social, a típica social climber, insinuam todas, quase em uníssono. Os homens, em seus elogios sexuais de morcego (assopram e mordem), sobretudo os mais jovens e menos endinheirados, já que a desejam e não podem tê-la, a ela se referem como a gostosa, mas ao mesmo tempo como uma caçadora de velhos poderosos e, consequentemente, uma mulher do tipo comprável por um bom dinheiro idoso no mercado das carnes humanas, exclusivamente por seu potencial erótico-estético e por sua jovialidade e beleza.
As mulheres belas e jovens somente serão perdoadas e redimidas da imoralidade que o machismo imprime sobre elas, sobretudo o machismo feminino, se fizerem votos de castidade e pobreza e dedicarem-se ao borralho. Ou se elegerem como parceiros amorosos personagens bíblicos, feridentos, andarilhos e maltrapilhos, preferencialmente eunucos a quem serão fiéis por toda a vida. Ah, a inveja é um sentimento que sabe travestir-se de moralidade que é uma beleza.  
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 09 de Janeiro de 2011 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 2 de janeiro de 2011

NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESTE PAÍS...

TELEANÁLISE

Malu Fontes
Jornalista escreve aos domingos na Revista da TV/Jornal A Tarde


A partir desta semana, uma personagem inusitada na cena política recente passará a circular, independentemente de sua vontade, no palco do poder nacional: a primeira-mãe, Dilma Roussef, uma senhorinha fluminense fina, elegante, bem vestida e nos trinques, muito da bonitinha para seus 86 anos e aparentemente discreta. Sim, Dilma Roussef, a verdadeira Dilma, pois a outra, a presidente da República, a primeira mulher a ocupar esse cargo no país (e não venham com a tese imbecil da Princesa Isabel em seus dias de princesa), já foi devidamente colocada no lugar nominal pela própria primeira-mãe: "A verdadeira Dilma Roussef sou eu. A outra é Dilminha". Dona Dilma tem tudo para se tornar uma personagem televisiva e tanto.


Sim, José Sarney, quando presidente, tinha mãe viva, Dona Kiola, e Fernando Collor também, Leda Collor, que acabou sucumbindo a um derrame, ao coma e à morte diante das fortes emoções vividas com a tempestuosa descida ribanceira abaixo do filho insolente que anunciava ter o saco roxo. Mas, como a figura doméstica de fundo dos presidentes da República são as primeiras-damas, a discrição de Dona Marly Sarney e a breguice espalhafatosa e dentuça de Rosane Collor nunca deixaram um espacinho sequer para as duas mães acima citadas, a não ser quando adoeceram e morreram, já fora do tempo de poder dos respectivos rebentos.


MITO E GADJETS - Como "nunca na História deste país" houve uma mulher na Presidência da República e ainda calhar de esta ser solteira, ou seja, sem a versão do cavalheiro que ocuparia o equivalente doméstico das primeiras-damas, supõe-se que espaço para as aparições de Dilma-mãe no circo da mídia que cobre o poder, não faltará. Como a presidente tem uma filha única e esta reside em Porto Alegre, o protagonismo da primeira-mãe no Planalto tem tudo para ser um fato corriqueiro na imprensa nos próximos anos.

Após oito anos no poder e deixando-o com índices de popularidade que se aproximam da unanimidade, a estrela onipresente da semana televisiva foi Lula. Para além e aquém da empatia estrondosa junto à população ou da ojeriza que continua a causar em sua dúzia de ferozes detratores, é fato que, como personagem e mito, ‘nunca antes na História deste país’, para usar o seu bordão mor, houve um presidente-personagem como Luís Ignácio Lula da Silva, seja pela própria natureza ímpar de sua trajetória pessoal, seja pelo oportunismo histórico de estar no poder num tempo sócio, econômico e cultural em que a tecnologia dobrou uma esquina espetacular do mundo, revolucionando, amplificando e imortalizando indefinidamente a publicização, através de gadjets do mais sofisticados aos mais baratos, tudo o quanto é fala, palavra escrita, imagem, deslize, gafe, tragédia, comportamento, ato e performance, beneficiando em alta escala o volume de registros midiáticos do presidente que veio literalmente do povo.  

Não fosse a Internet, as redes sociais, os blogs e os celulares que registram, capturam, espalham e exacerbam os debates e comentários sobre tudo, o personagem Lula seria o mesmo, e do mesmo tamanho, mas não se pode dizer o mesmo de sua repercussão na cultura de massa e das leituras míticas e messiânicas que parte da população fez e faz dele. A midiatização do fenômeno Lula foi tamanho que os setores da imprensa que passaram oito anos lhe apontando defeitos, afirmam sem dó nem piedade, nos últimos balanços que fazem do seu governo, que sua gestão não passou de mais do mesmo debruçada sobre os louros do Plano Real, de Fernando Henrique Cardoso, e sustentada preponderantemente na repetição aos quatro ventos de uma reputação triunfalista de um Lula mítico ungido pela máquina de propaganda do Palácio do Planalto.

AEROLULA - Na prática, as circunstâncias sócio-econômicas foram tão dadivosas para alavancar o mito Lula que até mesmo na última semana antes de apeiar-se do poder, no apagar das luzes do mandato, a economia brasileira experimentou uma avalanche de consumo jamais vista no Natal e Ano Novo, registrando um aumento médio de vendas superior a 40% em relação ao ano passado. Enquanto as velhas e as novíssimas classes consumidoras gozavam as delícias da ida às compras sem medo de endividar-se, Lula, confortavelmente instalado na persona do salvador dos mais pobres, escalava, a bordo do AeroLula, os cinco cantos do país, incorporando o ídolo das massas despedindo-se dos súditos entre lágrimas, agradecimentos, confissões intimistas acerca da solidão imposta pelo poder e falando pelos cotovelos, sempre na língua do povo.

Para coroar a troca de poder entre Lula e a filha da primeira-mãe Dilma Jane, a marca da emoção foi exacerbada pela fragilidade da saúde de um outro mito construído ao longo deste governo: o vice-presidente e sua resistência férrea a uma via crucis marcada por um câncer que nunca cessou e o levou a submeter-se a 17 cirurgias de grande complexidade e um sem fim de sessões torturantes de quimioterapia. Se alguém deste governo merecia cenas privilegiadas na festa cívica da rampa do Palácio do Planalto que sucedeu Lula com Dilma, era José de Alencar, o amigo Zé de Lula.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 02 de Dezembro de 2011 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com