sábado, 25 de junho de 2011

Teleanálise: "Da tragédia ao escândalo"

Malu Fontes

Malu Fontes, professora e jornalista
O que era apenas uma tragédia (o que já não seria pouco) na noite da sexta-feira 17 no mar de Porto Seguro, foi se transformando, ao longo da semana, em um escândalo político com direito à multiplicação de especulações, versões e pautas nas grades dos telejornais e nas páginas jornais do país. No início da noite da fatídica sexta, um helicóptero transportando seis pessoas e pilotado pelo empresário Marcelo Mattoso de Almeida, dono de um hotel resort em Trancoso, caiu no mar, matando todos. Provavelmente a tragédia permaneceria enquadrada tão somente como tal se, entre os mortos, não estivessem um piloto com habilitação vencida há seis anos, usando o nome de outro para voar, a mulher de um dos maiores empreiteiros de obras públicas do país e a namorada de um dos filhos do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.


O diabo, como se sabe, mora nos detalhes e adora brechas para urdir tramas. Imediatamente após o anúncio de que a namorada do filho do governador estava no vôo, telejornais anunciaram que Cabral viajara a Porto Seguro para acompanhar as buscas. Ah, tá. A mentira e suas pernas curtas deveriam ter respeitado a circunstância fúnebre. Só essa informação falsa da viagem posterior à tragédia já seria capaz de causar uma calça justa. Mas, descobriu-se em seguida, que ele não apenas já estava em Porto Seguro como seria um dos próximos a embarcar na aeronave nas próximas viagens que a aeronave ainda faria naquela noite entre Porto Seguro e Trancoso, onde a família do governador ficaria hospedada no resort do piloto-empresário morto.


FAXINAÇO - Por que a mentira da assessoria do governador? Por duas razões, ambas nem um pouquinho republicanas, para usar o verbete da modinha entre a classe política: primeiro, Cabral havia viajado no super jato Legacy, emprestado por ninguém menos que o multibilionário Eike Batista (que além de ter trocentos contratos com o governo do Rio revelou-se, justamente no meio das tramas descobertas após a tragédia, beneficiário de outros trocentos incentivos fiscais no RJ); depois porque o governador havia viajado para a festa de aniversário de Fernando Cavendish, o dono da Delta Construções, a construtora com maior poder de fogo em contratos e obras sem licitação no Rio, coisa de milhões e milhões, incluindo irregularidades nas obras de reforma do Maracanã.


Por fim, Cabral iria hospedar-se na fazenda resort de Mattoso, um ex-doleiro acusado de fraude cambial e crime ambiental por sua empresa no Rio, a First Class. Portanto, amizades, circunstâncias e freqüências perigosíssimas, sobretudo para um governador que sai de casa às escondidas num fim de semana, de carona e bancado por empresários com contratos sob suspeita em sua gestão, deixando para trás o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, incumbido da nada leve tarefa de fazer mais um faxinaço de traficantes, com ampla cobertura midiática, claro, no morro da Mangueira. Enquanto as câmeras mostravam a Mangueira, a privacidade e os laços íntimos entre o governador e os empreiteiros estariam protegidos num paraíso na Bahia. Uma fatalidade pôs tudo escancarado.


QUEM MANDOU – Depois de ter saído do enquadramento de notícia trágica, migrado para as hostes dos escândalos políticos, chegado às editorias de economia (por conta das benesses fiscais de Eike Batista e do pulo do gato no volume de contratos da Delta nos últimos anos sob a gestão de Sérgio Cabral, o assunto ganhou na quinta-feira contornos judiciais. O Ministério Público da Bahia decidiu que quer porque quer saber como e porque os corpos da seis vítimas financeiramente empoderadas do acidente (a exceção foi uma babá, enterrada na Bahia) foram trasladadas para o Rio em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). Por que o custeio da missão foi feito pelos cofres públicos e não pelas famílias das vítimas, como é o padrão. O Ministério Público quer saber do Comando Aéreo Regional de onde partiram as ordens.

Diante de um folhetim desses, com contornos trágicos, policiais, econômicos, políticos e jurídicos, que seja longa a vida do jornalismo impresso. Os telespectadores de notícias não ficaram sabendo dessa missa a metade. Resta o questionamento nem um pouco impertinente: se a TV não aborda um fato como este sob todas as variáveis contidas nele, não o faz porque sua própria natureza informativa dificulta a tradução para o público médio ou por que os laços de Cabral não são fortes apenas com os Cavendishes e os Eikes da vida?  

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 26 de junho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 19 de junho de 2011

Teleanálise | "A (in)justiça nossa e a dos outros"

Malu Fontes

Malu Fontes, professora e jornalista
Menos de um mês após a TV mostrar o desfecho pífio do caso Pimenta Neves, um assassino, réu confesso, julgado, condenado e mesmo assim conseguindo viver mais de 12 anos confortavelmente em seu apartamento, graças a todas as benesses possibilitadas por incontáveis recursos jurídicos solicitados e aceitos por seus advogados em todas as instâncias do Poder Judiciário, a leniência veio à tona outra vez, agora tendo como protagonista o ex-jogador Edmundo, o animal. Uma vez animal, sempre animal. Embriagado até o último neurônio em 1995, Edmundo causou um acidente de trânsito no qual três pessoas morreram e três ficaram feridas.

  
Acusado de homicídio culposo e condenado por isso, Edmundo foi então preso e punido pelo crime por apenas 24 horas. Desde então, Edmundo vive solto e serelepe, com o processo dando mil voltas, graças à habilidade dos seus advogados. E é bom dizer que estes fazem tão somente aquilo que a lei permite que seja feito, ou seja, estão mais do que no direito de proteger até o último instante seus clientes da punição.


Esta semana, após uma montanha de recursos que já favoreceram a liberdade do acusado terem se exaurido, finalmente foram expedidos cinco mandados de prisão contra Edmundo, endereçados aos cinco endereços do atleta no Rio de Janeiro. Não encontrado em nenhum deles, supostamente por orientação advocatícia, o ex-jogador foi classificado na categoria de foragido da Justiça até ser preso em um flat em São Paulo na madrugada de quarta para quinta-feira. Enquanto isso, seu advogado, um dos mais estrelados criminalistas do país, Artur Lavigne, que tem entre seus clientes Edir Macedo, dava repetidas entrevistas onde usava sua principal tese para sustentar a prisão do animal como um equívoco: 15 anos depois, o crime/a condenação já prescreveu. Ou seja, já passou tempo demais do ocorrido para que, a essa altura, Edmundo vá para a cadeia por um acidentezinho ocorrido lá em meados dos anos 90.


ROUBAR SEXO - Como querer que um telespectador médio compreenda que a Justiça faz justiça se alguém que causa a morte de 3 pessoas pode, porque tem recursos e bons advogados, 15 anos depois, argumentar que não deve mais ir para a cadeia, cumprir pena só porque já passou tempo demais do ocorrido? As vítimas ressuscitaram? A morte delas também prescreveu, sendo um evento tão trágico que fez com que famílias tenham visto e sentido a desaparição para sempre do mundo só porque um garotão bêbado e irresponsável em seu carrão caro e possante barbarizava numa madrugada carioca baladeira?


Só para uma comparação incomparável com a Justiça dos outros, o todo poderoso boss do FMI entrou em cana em Nova York, sem direito a fiança, foi obrigado a se demitir do emprego e agora está presinho domiciliarmente nos Estados Unidos (e não em seu país, na França, com uma tornozeleira eletrônica para não fugir e com cerca de cinco milhões em bens penhorados como garantia para o caso de, mesmo assim, tentar escafeder-se). E tudo isso porque tentou roubar sexo de uma camareira de um hotel cinco estrelas.


ESTUPRO - Um caso mais ilustrativo ainda de que, na Justiça dos outros, a prescrição do crime e da pena é um palavrão comumente desprovido de sentido, é o do cineasta polonês Roman Polanski. Em 1977, sim na década de 70, Polanski teria dado umas doses de bebida e de outras cositas a uma menina de 13 anos e depois fizeram sexo. Acusado de estupro, saiu fugido dos Estados Unidos e, se colocar o pé em solo americano, será detido. Aliás, praticamente detido está, pois em 2009, ao receber um prêmio na Suiça, o cineasta foi preso e está, desde então, proibido de deixar o país, uma vez que a Suiça tem tratado de extradição com os EUA e este busca todos os dias extraditá-lo para cumprir a pena. A moça há muito já perdoou Polanski, nunca admitiu que o sexo foi forçado (a acusação foi da família, pela idade da menina), o cineasta a indenizou com alguns milhares de dólares, o processo criminal já foi extinto, mas o processo penal, enquanto ele for vivo, não prescreverá. A acusação de estupro foi feita quando Polanski tinha 43 anos. Hoje, caminha para os 78. E se vivo aos 100, não alcançará a prescrição do crime de que foi acusado nos anos 70.


A leniência da Justiça brasileira com quem tem recursos (financeiros) para comprar recursos (jurídicos) torna-se ainda mais emblemática quando se vê, sobretudo nos veículos de comunicação voltados para as pessoas de menor renda, um verdadeira convocação explícita para exterminar, seja com pena de morte, com prisão de qualquer jeito e sem julgamento ou com tiros da polícia, os infratores pretos e pardos sem sapatos sobre os quais ninguém pergunta como e por que foram parar onde pararam. Quem vai ensinar o telespectador comum, o da TV aberta, massiva, e ser crítico diante de uma TV que pouco diz de um sistema que permite que Edmundo e Pimenta Neves fiquem cerca de uma década e meia livres, mesmo quando acusados e culpados por mortes, e, ao mesmo tempo, essa mesma TV fica praticamente berrando ininterruptamente para que a Polícia vá prender restos humanos nas cracolândias e exibe sem trégua imagens de presos desdentados em fundos de camburão?  

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 19 de junho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 12 de junho de 2011

Teleanálise: "Dos Três Porquinhos para as Reinações de Narizinho"

Malu Fontes


Malu Fontes, professora e jornalista
Cinco meses após o início de um governo que, contrariando o tom da campanha eleitoral, vivia em lua de mel com a imprensa que antes lhe torcia o pescoço, e 23 dias após a Folha de S. Paulo estampar em uma manchete de domingo a multiplicação do seu patrimônio em mais de 20 vezes durante quatro anos de mandato parlamentar, o todo poderoso ministro da Casa Civil de Dilma Roussef pediu para sair. Pediu, como se sabe, é modo de dizer, eufemismo do mundo da política, pois de coração partido ou não, o fato é que foi a presidente Dilma que o demitiu. De nada adiantou o apadrinhamento do ex-presidente Lula, que daria até mais um dedo para a permanência de Palocci. Assim que as primeiras pesquisas de popularidade apontaram que o gato subira no telhado, ou seja, que o enriquecimento fenomenal de Palocci em dois tempos começara a arranhar sua imagem perante a população, Dilma sabia que era ele ou ela.

Em um país em que se perde o respeito pelas pessoas do poder e pelas instituições todos os dias, mas não se perde nunca a piada, houve quem tenha achado uma sacanagem imperdoável o fato de que, na mesma noite em que todos os telejornais deveriam se deter em anunciar a despedida de Ronaldo Fenômeno dos gramados, Palocci tenha roubado parte da cena anunciando, também, a própria despedida. O mundo da política é mesmo indecifrável para o telespectador comum. Se era para ser demitido na terça-feira, fingindo demitir-se, por que e para que, então, tanto salamaleque e postergação para dar a primeira entrevista para a televisão na sexta-feira anterior, quando supostamente explicaria seu enriquecimento? Esperou a crise explodir, a presidente ficar com pecha de que Lula será uma sombra eterna em seu mandato, falou e não disse nada para no fim sair do mesmo jeito.

CHIQUEIRO - Como se não bastasse arrastar o escândalo tanto tempo com a barriga, Palocci saiu dizendo coisas esquisitas na TV. Disse, entre outras coisas que fazem pouco sentido para quem é pego pela terceira vez de calças curtas, senão abaixadas, no exercício do poder (escândalo em licitações na Prefeitura de Ribeirão Preto, frequência a uma casa de lobby e saliências em Brasília seguida da quebra de sigilo bancário de um caseiro pobre de marré deci que o viu por lá e enriquecimento assombroso em quatro anos), que se orgulhava da própria retidão moral e ética no Governo, que saía de cabeça erguida e que o está fazendo para preservar o diálogo. Só se foi para preservar o diálogo com os seus clientes da empresa miraculosa de consultoria, em nome dos quais ele preferiu cair de pobre a revelar os nomes. E ele tem razão de erguer a cabeça, pois com tantos milhões no bolso que motivos teria, em se tratando de Brasil, para andar cabisbaixo e sorrateiro?

Embora ainda seja cedo para diagnósticos acerca do perfil de uma gestão que dura quatro anos, a queda de Palocci, uma indicação das vísceras do ex-presidente Lula, e a decisão de Dilma em nomear para substituí-lo uma mulher de perfil técnico e curta carreira política (como ela mesma), talvez seja um indicador da marca Dilma, visto que a montagem da equipe se deu sob a influência plena de Lula. Com Palocci fora do Governo, vai pelo ralo a história dos três porquinhos da equipe de transição que enchiam os olhos da presidente, responsável pelo apelido. José Eduardo Dutra, que não ganhou nenhum ministério, saiu da presidência do PT por razões de saúde. Palocci acabou de cair por ter milhões demais para quem compartilha da intimidade do chiqueiro do poder e agora resta apenas José Eduardo Cardozo, o ministro da Justiça, que outro dia demitiu ao vivo, no Fantástico, um integrante da Polícia Rodoviária Federal porque o coitado, defendendo o seu trabalho, foi exibido no Fantástico, graças ao expediente de uma fala gravada com câmera escondida, dizendo que homens de sua equipe haviam sido tirados dos postos nas estradas para fazer firula no Rio de Janeiro, durante a invasão do Complexo do Alemão. Como se isso, a firula, não fosse verdade.  

BOLERÃO - Saem os três porquinhos e entra a Narizinho de Tailleur Chanel. Gleisi Hoffmann é uma mulher do tipo que Dilma adora: nariz empinadíssimo, literalmente, técnica, pulso firme do tipo que em menos de seis meses estreando um mandato no Senado já foi apelidada de pit bull e ganhou fama de ser um trator, por, entre outras coisas, colocar o dedo em riste para mandar calar a boca senadores com caspas nas ombreiras, desses dados a defender seus argumentos aos gritos quando a interlocutora é mulher. E, para contrariar quem adora traçar características estereotipadas de mulheres poderosas, tem um casamento estável de mais de 15 anos, dois filhos pequenos, um currículo de executiva invejável, guarda-roupa impecável, é louríssima e está muitíssimo longe de ser feia e burra. Sim, e apesar de estar no PT desde criancinha, Gleisi não tem língua presa, ostenta uma dicção doce e nos trinques. As revistas femininas, que precisam de uma musa por estação, vão adorar e fazer a festa. Dá um perfil do consumidor e tanto.

Para dar uma mãozinha aos humoristas palacianos, Gleisi Hoffmann é casada com o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. Não se via um casalzinho de ministros desde o affair de péssimo gosto entre Zélia Cardoso de Melo e o adúltero Bernardo Cabral, que caíram de amores ao som do bolerão datado Besame Mucho durante o Governo Collor, aquele que, para Sarney, caiu por um acidente da História do Brasil, algo que não deveria ter acontecido. 

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 12 de junho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 5 de junho de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | A amnésia de Sarney e os arrancadores de unhas

Malu Fontes, professora e jornalista
Todas as pessoas envolvidas em estudos e pesquisas sobre as relações entre a sociedade e os meios de comunicação de massa conhecem a máxima segundo a qual um fato, para de fato acontecer, precisa ser veiculado na mídia, esse termo genérico em que cabe tudo: jornal, televisão, revista, site, blog, etc. Não há constrangimento nem pruridos para admitir que, na prática, essa máxima é mais verdadeira do que se desejaria admitir. Se algo não foi noticiado nos jornais nem veiculado na televisão, é como se nunca tivesse acontecido, exceto para os indivíduos diretamente envolvidos no fato.

EX-TUDO - No Brasil, talvez venha daí, dessa atribuição às mídias o papel de guardiã da memória, e não sem uma colaboração imensa dos níveis de escolaridade e letramento baixíssimos da população, a consequência mais danosa: a memória da sociedade brasileira parece ter a duração e a permanência de uma chamada na TV, de uma notícia no jornal. Como os escândalos, as tragédias e naturalmente todos os fatos se sucedem por novos e outros a cada instante e dia, nada parece sobreviver no imaginário social quando deixa de ser do interesse para as manchetes dos veículos de comunicação. E nesse aspecto é bom reiterar a natureza dos meios de informação: não lhes cabe repetir a cada dia o mesmo e já noticiado fato, pois o conceito de notícia equivale justamente a dar publicização ao que ainda não foi dito, visto, narrado, etc. Ou seja, se a memória da sociedade exige a tutela permanente da mídia para que só assim um fato político, trágico, social, econômico se mantenha vivo, há algo de muitíssimo esquisito ocorrendo com a percepção social e não apenas com os meios de comunicação.

Nesta semana um fato, mais uma vez protagonizado pelo já icônico José Sarney, uma espécie de ex-tudo neste país e que nunca deixou de ser o todo poderoso da vez, agora despachando na Presidência do Congresso, escancarou o respeito que se tem no Brasil à preservação da memória dos fatos. O presidente do Senado, longe de manifestar qualquer constrangimento com isso, inaugurou um painel com a linha do tempo e dos fatos mais importantes ocorridos naquela casa em sua história. Por alguma conveniência, os responsáveis por contar a história do Senado acharam por bem reescrever a História do Brasil e excluíram solemente o impeachment do ex-presidente da República Fernando Collor de Mello. A imprensa encurralou Sarney para saber da razão de tamanho despautério e, como sempre, com sua verve de coronel maranhense laureado pelo fardão da Academia Brasileira de Letras, o senador pelo Amapá foi de uma obviedade insultante. Disse que não via problema algum no fato de o impeachment ter sido excluído: “aquilo foi um acidente, algo que já passou e que não deveria ter acontecido”. Aula magna de como apagar a História com uma dose cavalar de cinismo.
  
ARRANCAR UNHAS - A imprensa, agora com um coro fortalecido pelos blogs e pelas redes sociais, fez um escarcéu em torno da amnésia apadrinhada por Sarney e, no dia seguinte, o pai de Roseana e Zequinha voltou atrás para dizer meio que, se era para a felicidade geral dos reclamantes de plantão, ok, ele engolia em seco e faria essa concessãozinha, incluindo o tal do impeachment. E, a mirar-se no exemplo de Sarney, não demorará muito a algum adorador só do presente propor que os brasileiros esqueçam que um dia houve nesse país uma ditadura militar que torturou e matou a dar com o pau, literalmente. Há dois anos um dos maiores jornais brasileiros já escreveu que a ditadura no Brasil esteve mais para uma ditabranda. E esta semana, o sempre vociferante de raiva Lobão, cada vez mais acometido por um ódio imenso contra tudo o que diz respeito à MPB, resolveu flertar em defesa da ditadura.

Numa entrevista, o cantor defendeu a tese de que está mais do que na hora de o Brasil rever seus conceitos sobre a ditadura, pois não seria, segundo ele, admissível que o país tenha anistiado os militantes de esquerda que sequestraram um embaixador e queira agora atirar às barras dos tribunais para julgamento os militares que praticaram tortura apenas porque estes arrancaram umas unhinhas (sic). Chama Sarney, Lobão, que o senador provavelmente vai dizer que arrancar unhas foi somente um incidente, que isso já passou e que é um absurdo julgar alguém porque muita gente morreu de ‘arrancamento’ de unha em sessões de tortura e a família sequer sabe onde os corpos de seus parentes foram parar.

Pelo que os telejornais mostram todos os dias (sim, porque brasileiro parece se aproximar da sua história e da dos outros somente se a televisão e a mídia proporcionarem esse encontro), no resto do mundo todos os povos desejam não apenas rever sua história, mas, sobretudo fazer justiça contra torturadores. Para citar apenas exemplos mais próximos, tem sido assim no Chile e na Argentina. No Chile, para rever a história não a favor, mas contra os ditadores, acabaram de exumar pela segunda vez o corpo de Salvador Allende, o presidente morto no Palácio de La Moneda durante o golpe de estado dado pelo general Augusto Pinochet.  Durante a semana, o mundo acompanhou o périplo do general torturador sérvio levado para julgamento na corte internacional na Holanda. Enquanto isso, aqui a história é apagada sob as benesses de um dos homens mais poderosos da República, amadíssimo, na época, pelos arrancadores de unhas, e um roqueiro rebelde, pop e moderninho se perfila voluntariamente se não defensor, mas como atenuador da prática da tortura. Brasil, esta é a tua cara.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 05 de junho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com