sábado, 29 de outubro de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "Agonizando na praça eletrônica"

No final da década de 80, a revista Veja conseguiu uma unanimidade em rejeição do público ao estampar em sua capa uma fotografia do cantor Cazuza, extremamente magro, tendo como legenda a seguinte frase: uma vítima da Aids agoniza em praça pública. Eram os tempos em que o diagnóstico de Aids equivalia praticamente a uma sentença de morte e um dos maiores artistas da música pop brasileira experimentava todas as conseqüências clínicas que o HIV então representava para o organismo, já que as pesquisas que levariam aos medicamentos que hoje garantem uma vida de qualidade aos HIV positivos estavam engatinhando.

Embora a comparação pareça grosseira, e sobretudo injusta quando se leva em conta o tipo de tratamento então dado pela Veja a Cazuza, não deve ser pecado pegar a frase emprestada para aplicá-la aos pedaços ao que aconteceu nas duas últimas semanas ao agora ex-ministro dos Esportes, Orlando Silva. Durante 12 dias, o telespectador brasileiro, seja ele de qual matriz ou matiz ideológico for, assistiu diuturnamente, como diria a presidente, até a noite da última quarta-feira (26 de outubro), e pela sexta vez consecutiva em 10 meses, mais uma via crucis, de mais um ministro do Governo Dilma, agonizando não na praça pública material, de pedra e cal, mas na praça pública eletrônica, a televisão, e nos conjuntos dos outros meios de comunicação que lhe fazem companhia no entorno.

ONGUEIROS - O calvário de Orlando Silva começou quando a revista Veja estampou em sua capa de duas semanas atrás as denúncias de um ex-policial militar e atual dono de ONG que havia se beneficiado de convênios assinados entre o Ministério dos Esportes datados do tempo em que o titular da pasta era o também comunista (do PC do B) e hoje governador distrital de Brasília, Agnelo Queiroz. Denunciado por órgãos de fiscalização do governo por ter desviado dinheiro e condenado a devolver aos cofres públicos mais de três milhões de reais, o tal acusador, amigo de séculos do partido e agora descido à condição de ‘desqualificado’, resolveu fazer o que pessoas envolvidas nesses esquemas sempre fazem: não cairia sozinho e queria uma companhia robusta. Foi à Veja e disse que o ministro Orlando Silva recebia dinheiro de ongueiros na garagem do Ministério. Provas? Embora tenha prometido, não apresentou nenhuma, muito menos imagens das cenas da garagem e assim que Silva caiu passou a repetir outro mantra: ‘agora só falo em juízo’.


BRANCA E RICA - Em meio à novela da queda, trocentas mil explicações, para o gosto de todos os pendores partidários e conspiratórios, se espalharam. Há quem acredite que Orlando Silva é um santo homem do bem e que caiu não porque um doidivanas dono de uma ONG duvidosa resolveu atirar, mas por obra e graça de Ricardo Teixeira e sua turma de velhotes da Fifa que não dão ponto sem nó e queriam o Ministério dos Esportes com o caminho livre para todas as falcatruas que pretendem montar para faturar melhor na Copa do Mundo no Brasil. Há também quem acredite piamente que tudo não passa de uma questão de racismo: o pecado mortal de Orlando Silva teria sido nascer negro, fazer dois cursos universitários, casar com uma mulher branca e rica e ousar se tornar ministro de Estado. Sim, os líderes da oposição ao Governo Dilma acreditam, ou então fazem questão de dizer em público que acreditam, na versão da garagem do ongueiro.


Para os mais sensatos, algo de podre haveria de haver no reino do ministério dos Esportes para muito antes de Orlando, lá nos tempos do ido Agnelo, pois é fato, denunciado pela Controladoria Geral da União, pelo Tribunal de Contas, pela Polícia Federal, e não inventado pela ‘histeria da mídia golpista’ conforme muita gente boa quer fazer crer, que dezenas de ONGs esquisitas embolsaram milhões de reais dizendo que iriam usar esse santo dinheirão para incluir criancinhas pobres no paradisíaco mundo abençoado dos esportes. E até as ONGs honestas, diz-se, eram convidadas a dar um dízimo das verbas que recebiam, se as quisessem receber. Há quem diga, inclusive, que Silva caiu porque interrompeu esse esquema, tentando asfixiar um dinheiroduto que escorria embaixo de sua cadeira. Quem souber a versão real, morre. Literalmente, corre-se o risco.


ALICE - Um detalhe no entanto merece atenção em tempos de ministros agonizando em praças públicas eletrônicas: os sentidos das palavras prova e condenação. Os amigos dizem que Silva foi condenado sem provas. Não é verdade. Ele não foi condenado. No Brasil, quem condena ainda é a Justiça e quem anda atrás de provas é também a Justiça, se a Polícia contribuir, quiser e deixar. Os ritos do julgamento e da condenação políticos não são da mídia, são, antes de serem dela, da própria esfera política, que se vale da imprensa para incensar os ânimos.


Quem disse que o mundo das estratégias políticas perde tempo com provas? Ele atua com a mera ideia de efeito, de aparência e, nesse contexto, não haveria Dilma no mundo que suportasse os efeitos do desgaste de um escândalo chamuscando um ministro seu, dia após dia, às vésperas de uma Copa do Mundo, mesmo que se tratasse de um homem mil vezes inocente. Ô Alice, desce desse lustre que esse mundo da política e da mídia, você bem sabe, está longe de ser essa maravilha toda... A essa altura quem ainda se importa com provas, dinheiro, ONGs, garagem? O importante, ‘o efeito’, já se deu: a queda. Tanto ninguém se importa que nesses dias todos os assessores do ministro explicavam no site da pasta uma a uma a fragilidade das acusações contra Silva, numa espécie de contra-análise do discurso dos acusadores. E... quem se interessava por aquelas respostas e explicações? Para a inocência e a culpa de Orlando Silva, diante do efeito havido, agora Inês é morta. E cremada. 

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 30 de outubro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com


sábado, 22 de outubro de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "Globo, Record e comércio de fluidos e secreções"


Malu Fontes, professora e jornalista
Recentemente, o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, disse em público aquilo que muitas autoridades e poderosos vivem dizendo longe das câmeras e microfones. Referindo-se a matérias feitas pela Rede Record sobre acusações contra ele, Teixeira disse à entrevistadora, na revista Piauí, algo do tipo: “só vou ficar preocupado, ‘meu amor’, quando sair no Jornal Nacional”. No início da última semana, a Folha de S. Paulo, referindo-se à forma como a emissora dos irmãos Marinho está se comportando em relação aos jogos Pan-Americanos, fez uma pergunta que tem tudo a ver com a resposta de Teixeira: se uma árvore cai na floresta e a Globo não mostra, será que ela caiu? E se a principal rede de televisão do país dá mais espaço para a Stock Car e o showbol é porque esses "esportes" são mais importantes que o Pan?


O fato de a Rede Record deter os direitos de transmissão dos jogos e o modo como a Globo vem se referindo ao evento diz muito sobre o que leva o jornalismo e o telejornalismo a dar um maior, menor ou nenhum destaque à cobertura de um determinado assunto. Não, não é o interesse público e nem mesmo o interesse ‘do’ público que leva uma emissora a centrar fogo na cobertura de um assunto. É, e sempre será, é bom acostumar-se, o interesse comercial da emissora. Como não tem os direitos de transmissão do Pan, a Globo praticamente o ignora.


PRINCÍPIOS EDITORIAIS - A Controle da Concorrência, que monitora as inserções publicitárias em todas as emissoras, informa que no primeiro dia das competições do Pan a Globo deu ao evento apenas 28 segundos, somando o tempo usado para falar dos jogos em todos os programas jornalísticos da emissora. Em 2007, quando detinha os direitos de transmissão, a Globo dedicou nada menos que uma hora e 38 minutos no primeiro dia, somando o tempo dado em todos os seus noticiários. Os jogos são os mesmos, as medalhas e as derrotas para os atletas brasileiros continuam tendo o mesmo peso de sucesso e fracasso. O que mudou? Mudou apenas o dono do cofre onde caem as moedas advindas da venda das cotas publicitárias de patrocínio da transmissão do Pan. Se é a Record quem lucra com o evento, a Globo praticamente o ignora como fato.


Sim, só episódios assim para mostrar que não passa de mero efeito de merchandising de umbigo todo o barulho feito pela Globo para divulgar os Princípios Editoriais das Organizações homônimas, segundo os quais “jornalismo é o conjunto de atividades que, seguindo certas regras e princípios, produz um primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas. Qualquer fato e qualquer pessoa”. O diabo se esconde é no que a linha editorial das organizações deve considerar como sinônimo de ‘certas regras’ e de ‘qualquer fato’. Pelo jeito como a TV Globo se comportou durante a semana, os Jogos Pan-Americanos de Guadalajara estão abaixo da categoria de ‘qualquer fato’ e muitos dos atletas brasileiros na competição estão abaixo de ‘qualquer pessoa’. A detenção dos direitos pela Record e a indiferença indisfarçada da Globo diante do Pan já levou as duas a trocarem sopapos verbais não apenas nos bastidores do jornalismo, pois não é do feitio da emissora do bispo falar da concorrente pelas costas. Fala e praticamente ameaça de processo diretamente da bancada dos seus telejornais.


PELEJA E PUS - A versão da Record é a de que, assim que comprou os direitos de transmissão do Pan, enviou a todas as concorrentes brasileiras, conforme determinam as regras internacionais de cessão de direitos de uso de imagens, um termo disponibilizando dois minutos diários dos jogos, o mesmo comportamento, diga-se, que a Globo adota nos eventos que são de transmissão exclusiva dela.  Ainda segundo a Record, SBT, Rede TV!, Cultura, Gazeta, TV Brasil, Band Sports e Band News assinaram o documento. Sportv, ESPN e Band não responderam e a Globo respondeu que não tinha interesse. Nesse contexto, as imagens que todas as emissoras signatárias do documento veiculassem deveriam, obrigatoriamente, ser creditadas à Record, com a exibição na tela do logo colorido da emissora. Sim, o Jornal Nacional exibiu imagens sem o logo e deu-se a guerra. A Globo argumenta que recebeu as imagens de uma agência internacional da qual é cliente. A Record diz que é mentira e o bate-boca continua. O fato, no entanto, é que, com Pan ou sem Pan, a Globo não perdeu audiência e manteve-se na liderança.

Não deixa de ser interessante para o telespectador mais astuto descobrir que mais importante do que a notícia é o interesse publicitário em jogo por parte das emissoras de TV. Mas por isso não se arregala mais os olhos nem se perde o sono, sobretudo numa semana em que o assunto que mais marcou o telejornalismo nacional, além de mais um escândalo envolvendo um ministro, foi um espasmo literal de nojo, diante do qual a peleja Globo-Record é assunto de luxo de comadres. O que a televisão trouxe de novo durante a semana foi a consciência nacional de que o Brasil, por livre e espontânea vontade, se transformou em mercado para um tipo de comércio deplorável: o país é a praça emergente da compra e venda de fluidos e secreções de lixo hospitalar. Sim, o Brasil Já pode se anunciar como o país que compra sangue, pus, secreções e dejetos. Não demora e aparece algum defensor da tese de que tal prática merece elogios, por representar uma vanguardista estratégia criativa do brasileiro em favor da causa da reciclagem, tão em moda nos discursos dos antenados.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 23 de outubro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

sábado, 15 de outubro de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "Redes e Ruas"

Malu fontes, professora e jornalista
As marchas e os protestos estão na ordem do dia em diversos países do mundo, do Oriente Médio aos quintais brasileiros, mesmo que, entre si, guardem diferenças motivacionais e de escala e etimologia abissais. Antes, muito antes, que o telejornalismo internacional corresse com suas câmeras para mostrar ao mundo o povo revolvendo-se nas ruas contra as décadas de ditadura no Egito e na Tunísia, por exemplo, no início deste ano, outra esfera midiática, as redes sociais, como o Twitter e o Facebook, e dispositivos móveis como os smartphones e os tablets, já haviam se tornado os protagonistas da chamada Primavera Árabe.


Protestos de pessoas nas ruas, longe de serem tímidos ou tranquilos, também foram registrados nas redes sociais na Espanha, um dos primeiros países da Europa cuja população esperneou contra a crise econômica e o consequente desemprego. Como aconteceu no mundo Árabe, na Grécia e viria a acontecer depois nos tumultos nas ruas de Londres, os manifestantes espanhóis utilizaram toda a potencialidade das redes sociais para amplificar os ecos das queixas contra o poder instituído ou o estado de coisas que contestavam. As estratégias de repercussão nas redes não se equivalem aos métodos correntes de uso dos meios de comunicação convencionais, como se dá, por exemplo, com os movimentos sociais que lançam mão de assessorias de imprensa e envios de releases para as redações da imprensa tradicional para divulgar suas causas e reivindicações.


O tipo de ampliação que as redes sociais causam nas vozes dos movimentos sociais e acabam por convocar a mídia tradicional é de um tipo ainda difícil de diagnosticar por parte de uma geração que se formou analisando o mundo a partir do que diziam os meios de comunicação. A circulação das informações e imagens se dá de modo anárquico, disperso, não hierarquizado, sem um epicentro publicizador de dados e de modo incontrolável, para desespero por parte dos poderosos a quem o movimento incomoda, sejam eles os ditadores egípcios ou os democráticos componentes do parlamento inglês.


WOODSTOCK - O ano de 2011 tem sido pródigo em eventos desta natureza. O evento bombado da vez, com todos esses contornos, é o "Occupy Wall Street", uma espécie de Woodstock da segunda década dos anos 2000, só que geograficamente fincado no coração financeiro dos Estados Unidos, Wall Street, em Nova York, e publicizado (e potencializado) pelas redes sociais, blogs e todos os dispositivos a serviço da mobilidade e da informação em rede. Já são milhares de pessoas envolvidas, de diferentes nichos ideológicos e de mobilização, tendo em comum apenas (como se fosse pouco) a vontade de cuspir contra o sistema financeiro dos Estados Unidos, a quem é atribuída a responsabilidade pela escala estratosférica da crise que desde 2008 vem ameaçando a estabilidade econômica do país mais poderoso do mundo.


Somente após as redes sociais já terem se tornado o mural de registro e convocação das manifestações e protestos que, em poucos dias, já saíram de Nova York e chegaram a outras cidades dos Estados Unidos, como San Francisco, Boston e até Washington, é que as emissoras de TV e a imprensa se deram conta do tamanho do imbróglio. Vale dizer que enquanto o tipo de repercussão do "Occupy" nas redes sociais se dá sob toda a sorte de diversidade de registros, nos telejornais do mundo, e nos brasileiros não tem sido diferente, aos manifestantes sempre é colada uma espécie de aura que os enquadra muito mais como web hippies, maconheiros pós-tudo, anarquistas sem bandeiras e porra-loucas maníacos por tecnologia do que como cidadãos contra um modelo econômico que empobreceu milhões de pessoas e saiu ileso, com os bolsos abarrotados de dinheiro. Para entender melhor quem são as pessoas contra quem os manifestantes do "Occupy Wall Street" vomitam, basta ver o documentário Inside Jobs, uma espécie de "tudo o que você queria saber sobre a crise da economia dos Estados Unidos e não tinha a quem perguntar".


TOCA RAUL - O fato é que, com a potencialidade de amplificação das redes sociais, a imprensa convencional, torcendo o nariz ou com câmeras sorridentes, está, sim, sendo obrigada, como se diz na Bahia, a correr atrás do prejuízo. Um outro aspecto que tem deixado o telejornalismo tonto, mais do que a imprensa escrita, pela escassez maior de possibilidades e estratégias de aprofundamento permitidos pelo modelo de produção do telejornalismo, é a indisfarçável falta de arejamento que a TV tem para abordar, no Século XXI, os significados de ideologia e política. Quando a manifestação é contra um ditador há três décadas, no Egito ou na Líbia, é um movimento político e todo santo âncora de telejornal concorda com isso.


No entanto, se são jovens londrinos barbarizando contra estabelecimentos comerciais para arrancar de lá produtos de consumo nada para matar a fome, pois não têm fome nem estão submetidos a uma ditadura política, aí, então, claro que não há nada a ver com política. Claro, todos concordam que se trata de vandalismo puro e simples, o que leva o telespectador do mundo jamais contestar o desejo manifesto do Primeiro Ministro inglês: controlar o acesso às redes sociais para impedir a organização de manifestações dos garotos-problema. Milhares de manifestantes com tablets e smarthphones nas mãos acampados em Wall Street? Ora, não passam de hippies anarquistas moderninhos que confundem militância política com cliques na web. Está na hora de a velha TV repensar seus conceitos sobre o significado das práticas e ações políticas do lado de cá da tela. Está aí uma geração que parece ter aprendido a transitar entre as redes e as ruas sem passar pelo canal informativo representado por uma televisão que sempre tem uma velha opinião formada sobre tudo. Sim, "Toca Raul" pode ser uma ação política. Por que não? Depende de contra quem se grita.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 16 de outubro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 9 de outubro de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "TV e monopólio da morbidez"

Malu Fontes, professora e jornalista
Começo de tarde em Salvador. Na tela da TV, ágil como um urubu eletrônico programado, um helicóptero da TV Record ronda, aproxima-se, sobrevoa, plaina, durante minutos que parecem eternos, sobre um corpo masculino morto, esfacelado sob o sol no asfalto de uma rodovia, após um acidente de trânsito recém-ocorrido. No estúdio, o apresentador Zé Eduardo, o Bocão, narra a tragédia ao mesmo tempo em que faz as vezes de diretor de imagem, pedindo para a câmera ir para lá, para cá, pedindo para granular a imagem aqui ou acolá. Estendido no solo, visto de cima, sob a perspectiva do olhar de gavião eletronicamente potencializado das câmeras de TV atrepadas no helicóptero, um motociclista morto, mutilado, num nível tal de desconfiguração corporal, decorrente do porte do acidente, que equivalia a cenas de filmes B de terror. Manchas vermelhas e brancas espalhadas em raios que o apresentador dizia equivaler a 30 metros. Não era ketchup.


LONA - O fato: um motociclista desequilibrara-se, caíra do veículo e, em seguida, fora atropelado, segundo a emissora, por um, dois ou mais caminhões, que seguiram viagem sem parar, sem prestar socorro. A vítima, a imprensa identificaria depois como sendo um jovem de apenas 19 anos que, no instante do acidente, dirigia-se no sentido Simões Filho-Salvador para encontrar a mulher, que lhe telefonara convidando-o para uma surpresa: acabara de descobrir que estava grávida. Enfim, uma história com todos os contornos de um drama capaz de mobilizar os telejornais populares à exaustão. No entanto, embora em meio a esse cenário macabro, dois elementos chamavam atenção para além do corpo: a insistência com que o repórter e apresentador reclamavam da presença de curiosos e o fato de praticamente todos esses ‘curiosos’ não se contentarem em ver a cena a olho nu, pois empunhavam também um telefone celular gravando a cena.


Imediatamente após o acidente, formou-se um engarrafamento monstruoso na BR-324, nos dois sentidos, pois enquanto o tráfego ficara interrompido na pista do sentido do acidente, do outro, os veículos reduziam a velocidade praticamente a zero para fazer o óbvio em contextos desta natureza: para que motoristas e passageiros de automóveis pequenos e de ônibus cheios de passageiros olhassem corpo, o que prolongaria ainda mais o cenário mórbido no local. O serviço de remoção de corpos do Instituto Médico Legal, como não dispõe da precisão alada dos helicóptero da TV, levaria horas para chegar no local. Somente cerca de uma hora depois, a primeira providência era dada para diminuir o impacto da imagem: uma lona de plástico preto fora colocada sobre o corpo pela equipe de socorro médico da rodovia.


MORTE AO VIVO - Na noite anterior, uma segunda-feira, a TV Cultura reprisara uma entrevista histórica com Ayrton Senna, realizada pelo programa Roda Viva há mais de 20 anos, em 1986, quando o piloto havia vencido a sua primeira corrida de Fórmula 1. Em um dos trechos da entrevista, o então sóbrio repórter de TV, Marcelo Rezende, pergunta a Senna sobre como ele se sente diante do resultado de uma pesquisa da época que dizia que o público de Fórmula 1 via como um dos principais atrativos mobilizadores de uma corrida a possibilidade de ver de perto um acidente grave, inclusive com desfecho fatal.


A fala de Senna caíria como uma luva para explicar o comportamento público que incomodava, no episódio narrado, as reclamações do apresentador Zé Eduardo sobre a insistente e incômoda curiosidade do público diante do corpo morto na rodovia. Claro que o mesmo interesse que o caso despertava para o gavião eletrônico televisivo que lhe sobrevoava era compartilhado pela população ao redor da cena. E com a popularização dos celulares com câmeras, cada indivíduo que parava para filmar a vítima do acidente mimetizava um pouco o que vê os telejornais fazendo dia a dia: ao seu modo, estão capturando imagens trágicas para saírem por aí narrando à sua maneira o que viram e registraram. E suprema ironia trágica: a morte espetacular de Senna se deu ao vivo, diante das câmaras, com transmissão planetária e está capturada para sempre em imagens em movimento, inapagáveis.


COFRINHO - Ou seja, a natureza mórbida dos curiosos que, para os profissionais de TV atrapalham o serviço de socorro, da Polícia ou de remoção tem exatamente a mesma explicação e a mesma origem das razões que levam o helicóptero da emissora a sobrevoar como gavião o alvo no solo. A própria TV, inclusive, só investe a esse ponto na captura desse tipo de imagem porque sabe da existência dessa atração e curiosidade mórbida do público. O programa que reclama da curiosidade popular diante de um crime ou cadáver em via pública, acaso teria a audiência que tem não fosse esse fascínio popular que move as pessoas e irrita a TV por atrapalhar a captura das imagens por helicóptero?


O desejo de consumir o mórbido que justifica motoristas pararem seus carros para ver um morto é exatamente do mesmo tipo daquele sentido pelo telespectador que vai garantir a audiência dos programas que exploram as tragédias. Como disse Ayrton Senna, é típico da natureza do homem e seu desejo ambíguo de chocar-se e fascinar-se com a dor e o sangue alheios. Não, a curiosidade mórbida pela vida extinta ou extinguindo-se não é monopólio da TV. Ao contrário, a TV alimenta-se da existência prévia dela para encher seu cofrinho. O helicóptero vai ter que lidar com esse detalhe incômodo da aglomeração popular nos cenários das tragédias.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 09 de outubro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

sábado, 1 de outubro de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "É disso que o povo gosta?"

Malu Fontes, professora doutora e jornalista
Com a popularização da Internet e, sobretudo, com o sucesso das redes sociais, hoje os telejornais têm muito mais possibilidades de mensurar o quanto determinados temas abordados sob a forma de notícia caem ou não no gosto do telespectador. Se antes da febre das redes sociais já se falava em notícias de interesse público (aquelas que se relacionam a fatos que dizem respeito à vida de todos os cidadãos) e notícias do interesse ‘do’ público (aquelas que dizem respeito à vida das celebridades e a fait divers e que só são veiculadas para inflar a audiência), hoje pode-se dizer que há um terceiro fenômeno em curso: as notícias de interesse público ou interesse ‘do’ público que passam a fazer parte de uma terceira agenda: a agenda da audiência do público específico das redes sociais.


O fato de um tema abordado nos fóruns noticiosos tradicionais ter bombado no Twitter ou no Facebook, por exemplo, não significa necessariamente que as notícias relacionadas a ele tenham tido o mesmo nível de repercussão pública na vida social off line. A audiência das redes sociais talvez venha a adquirir uma equivalência à da televisão, mas ainda não são a mesma coisa. Há, portanto, uma agenda pública e uma agenda do público das redes sociais. Entretanto, mesmo que o conceito de audiência da televisão ainda não sirva para traduzir nos mesmos termos a audiência e repercussão nas redes sociais, é fato que as redes são, sim, um poderoso instrumento de aferição do que ganha repercussão.


SOVACO - Com as time lines das redes sociais, muito da incredulidade de parte dos telespectadores sobre as razões de algumas emissoras darem destaque a esse ou aquele tema pode, agora, encontrar algumas respostas diante do tamanho da repercussão desses nas redes. Recentemente, por exemplo, uma matéria produzida por Patrícia Nobre pela TV Bahia e exibida no Jornal Hoje em poucas horas estava nos trend topics do Twitter, comentada por milhares de pessoas no país inteiro. O tema? Esmaltes. Sim: cores da moda, dicas de conservação para não fazer bolinhas, fórmulas para durar na unha, etc. Naquele dia essa foi a matéria que mais repercussão gerou. Ou seja, enquanto muito telespectador que faz o tipo profundo deve ter achado o Ó uma matéria grandona sobre esmaltes e mulherzinhas, um exército de gente foi ao paraíso com a abordagem e a emissora teve como ficar sabendo disso.     

Um outro exemplo recente de que há muito mais razões entre as notícias que caem na boca do povo e o nível de interesse que elas possam conter do ponto de vista do interesse público foi a estrondosa repercussão adquirida pelo caso da Mulher-Ketchup, o episódio ocorrido no interior da Bahia, em Pindobaçu, em que Erenildes Aguiar Araújo, 32 anos, forjou a própria morte lambuzando-se de ketchup e posando para fotos passando-se por um cadáver com uma peixeira embaixo do sovaco. O objetivo foi dividir o cachê como o matador contratado para eliminá-la e, de sobra, divertir-se aparecendo viva para a mandante do crime, a amante de seu marido.


BELISCO - Soube-se que, em Salvador, ao dar pela primeira vez a notícia da Mulher-Ketchup, alguns âncoras de telejornais tiveram que beliscar-se com força sob a bancada para não cair na gargalhada. Do lado de cá da tela, certamente muita gente deve ter se perguntado por que tamanha bizarrice mereceria destaque no telejornal local. Menos de uma semana depois, no entanto, o caso não havia adquirido uma superdimensão apenas local, mas nacional, internacional. Foi parar na capa de portais de grandes jornais internacionais, como o Guardian, o Daily Mail e abriu a edição do Fantástico do último domingo, com direito ao envio a Pindobaçu, pela Rede Globo, do repórter de rede, o grifado José Raimundo, para entrevistar os principais personagens da trama. Como ocorre sempre que se trata da Globo, é claro que em dois tempos a produção convenceu todo mundo a falar diante das lentes globais do Fantástico, até mesmo a envergonhada mandante. Coisa rara é achar quem não aceite falar com a Globo.

A moral da história é que, como veículos comerciais que são, eivados de todo o talento do mundo para ganhar dinheiro à custa da venda dos olhos dos telespectadores para os anunciantes, as emissoras de televisão podem até desagradar os mais exigentes ao colocar bandas rastaqueras nos estúdios dos seus  telejornais, ao eleger temas ocos para suas matérias e ao mandar um ex-jogador de futebol negro pular muro para ‘invadir’ casa de famosos do esporte. Mas que elas sabem o que estão fazendo, ah, como sabem...


O MUNDO É RASO - Os telespectadores que fazem o tipo profundo podem até fazer muxoxo com as formas das coisas televisivas como elas são, mas é bom registrar e corticalizar: “Edilson que o povo gosta, Edilson que o povo quer”. Não é, TV Bahia? Sim: a audiência pauta o conteúdo. Simples assim. E numa prova de que a superioridade está sempre na vida do vizinho, o caso Ketchup atingiu o posto de assunto mais lido do Guardian no dia em que foi veiculado. Ou seja, nem os ingleses estão tão a fim assim de profundidades. O mundo é cada vez mais dos rasos.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 02 de outubro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com