sábado, 30 de junho de 2012

Teleanálise | "Urubu doméstico, cabra adestrada e galinha humana" (versão integral)

Malu Fontes


Este título é apenas uma tentativa, que já nasce frustrada, de traduzir o circo de horrores em que se tornou a televisão. E o que é pior: para tudo o que aparece de muito ruim ou muito raso, hoje, na TV brasileira, os profissionais das emissoras, devidamente emprenhados pelo ouvido pelos colegas dos departamentos comerciais e de marketing, vomitam um argumento que já vive pronto na ponta da língua: é isso o que a Classe C quer ver.

Custa a crer que nenhuma entidade tenha, até agora, se apresentado disposta a se queixar juridicamente contra esse estigma de burrice, ignorância e preguiça intelectual que vem sendo colado pelos meios de comunicação aos integrantes da nova Classe C, recentemente endinheirada. Quem é louco para ter uma ONG para chamar de sua, fica a dica, como diz a gíria: corra e crie urgente uma ONG para pedir indenização por danos morais à mídia brasileira argumentando que esta vem atribuindo de forma ostensiva e preconceituosa à classe C a condição de burrice extrema e de consumidora das piores coisas que se tem feito na indústria cultural.

CLASSE BÁRBARA - Sobre essa burrice associada pelos meios de comunicação de um modo geral à Classe C, o professor Muniz Sodré, baiano de São Gonçalo dos Campos, hoje professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos maiores intelectuais brasileiros, deu, na última segunda-feira, no centro do programa Roda Viva, da TV Cultura, uma aula sobre o assunto. Comemorando 70 anos e no auge da maturidade intelectual, questionou que Classe C é essa, inexistente da forma como vem sendo representada pela imprensa e pelas emissoras de TV, incluindo, principalmente, a teledramaturgia, que agora a adotou como protagonista, vestida de outras cores, mas se comportando sempre como uma classe bárbara.

Durante a semana, um dos programas locais de TV em Salvador realizou a fantasia de um voyeur da periferia que registrou imagens da fantasia sexual de um casal de classe média que resolveu fazer sexo de madrugada em um lugar insólito: entre os vagões de um trem na periferia da cidade. O apresentador do programa onde as imagens do ato sexual foram parar achou por bem considerar a coisa mais normal do mundo, já que empoderado por sua turba de seguidores alfabetizados exclusivamente pela mídia eletrônica sem nunca ter (podido) passar pelo livro e pela reflexão crítica, chamar a mulher da cena de galinha. Anunciando a profissão da moça, médica, ameaçava revelar sua identidade e reiterava o quanto ela estaria, a partir de agora, desmoralizada.
  
GALINHA - Numa cidade onde a média de assassinatos por fim de semana só raramente não ultrapassa as duas dezenas, crime bárbaro mesmo, para uma mulher, parece ser fazer sexo com seu companheiro num lugar inóspito. Sim, só ela, nas palavras repetidas na TV, está desmoralizada, “porque ele é homem” (sic). Diante disso, é mesmo de se estranhar que oito bárbaros espanquem com paralelepípedos na cabeça (até a morte de um) dois irmãos gêmeos que andavam abraçados numa rua em Camaçari (BA)? O julgamento dos assassinos diante de dois homens abraçados na rua é semelhante ao da TV diante de uma mulher flagrada por uma câmera fazendo sexo com seu companheiro. Para os primeiros, eles devem apanhar porque são ‘mulherzinhas’ (sic). Para a segunda, a mulher deve ser desmoralizada porque ‘é uma galinha’ (sic).

Em tempos caleidoscópicos em que marchas feministas se auto-batizam de marcha das vadias, lésbicas protestam mostrado os peitos e ficam furiosas por serem rotuladas de musas nas manchetes e em que, pela primeira vez, uma mulher conduz o país e é elogiada pela firmeza de opiniões e gestão, é uma volta à idade média e à inquisição ver num programa de TV uma campanha de desmoralização de uma mulher por ter sido flagrada por uma câmera escondida fazendo sexo numa estação de trem. E o medievalismo está menos na reação diante da cena e mais no fato de se defender a tese de que a desmoralizada é ela, porque, como creem os medievalistas, ‘em homem não pega nada’. Essa tese foi dita, mal dita e reverberada ao vivo, na TV, e reiterada nas redes sociais pela audiência bombada dos alfabetizados televisuais.        
        
Nesse contexto, em que mulheres são xingadas de galinhas, reclamar do quê se vez ou outra o telejornal concorrente lança mão de atrações animais reais? Diante de uma mulher sendo chamada de galinha pela sanha moralista de uma turba ignara, porque fez com seu corpo e seu companheiro o que bem quis, como reclamar se um dia o principal programa local do telejornalismo classicão exibe um urubu tornado bicho doméstico ultra-mega-super amigo de um surdo mudo lavador de carros da periferia e no outro uma cabra que mora e se comporta como cachorros e é adestrada como tal por um profissional que anuncia para os próximos dias a presença de um porco com as mesmas habilidades?
          
TETAS - Para fechar com chave de ouro a descrição freak da programação da TV, vista neste texto a partir da ótica de Salvador, destaca-se a farra publicitária da Prefeitura de Salvador com a exibição, sempre em horário nobre, quando o custo de cada segundo é altíssimo, com um jingle que, estivesse Chacrinha vivo, deveria ser premiado com o Troféu Abacaxi. Sem obras para mostrar e ancorado em um slogan torto que nomeia Salvador como ‘Cidade Sede do Trabalho’, o anúncio institucional repete o versinho tolo ‘eu amo amar Salvador’. Quem vive na cidade sabe que, se há coisas que os gestores dessa cidade não fazem, é trabalhar. Sabe também que o verso seria melhor tradutor das coisas se o verbo amar usado de forma falsa e melosa fosse substituído por mamar. Ah, quão generosas para os gestores têm sido as tetas de Salvador...

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 01 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

domingo, 24 de junho de 2012

Teleanálise | "O teste do sofá e o garoto de Maluf"

Malu Fontes

Poucas imagens do jornalismo causaram tanto alvoroço e repercussão nos últimos tempos quanto as fotografias e cenas exibindo em multiplicidades de poses o ex-presidente Lula, seu candidato à Prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, e o nome mais associado à corrupção no Brasil nas últimas quatro décadas: Paulo Maluf. A cena soava pornográfica até mesmo para quem acredita mais em duende que em coerência política. Lula e Maluf felizes e sorridentes, tendo ao meio um Haddad aparentemente constrangido de riso amarelado. Os três abraçados, nos jardins imperiais da mansão de Maluf, para onde o anfitrião os atraiu sob o álibi de selar e anunciar seu apoio eleitoral à chapa petista. Ofereceu uma feijoada e fez questão de encerrá-la na área verde externa do seu bunker malufista, sob o olhar de fotógrafos e cinegrafistas convocados para imortalizar o tão inusitado encontro na memória política do país.  

Junto a Lula, Maluf afaga o candidato Fernando Haddad. Foto: Balaio do Kotscho
TESTE DO SOFÁ – Pragmático e sempre ancorado nos argumentos do cinismo que são peculiares à média da classe política brasileira, Maluf deu a tônica da essência das coisas quando perguntado sobre onde teriam ido parar os resquícios ideológicos partidários que separavam esquerda e direita. Segundo anunciou-se no jornalismo político, a sua resposta teria sido algo do tipo: já não existe nem direita, nem esquerda. O que existe são segundos na TV. Ou seja, os abraços, os tapinhas, a feijoada com direito a cenas públicas de afagos nos jardins impostos a (e imediatamente aceitos por) Lula em troca do apoio de Maluf à candidatura de Haddad seriam uma versão eleitoral do teste do sofá.

Há quem diga que, ao longo da história da televisão brasileira (quiçá do mundo, quiçá do cinema internacional), muitas mulheres lindas, com ou sem talento, precisaram submeter-se ao famoso teste do sofá, oferecendo seus encantos a algum diretor ou chairman poderoso das emissoras para, assim, obter oportunidade e espaço na telinha. Pois bem, esta campanha eleitoral que se aproxima será uma campanha antecedida e marcada pelo ‘teste do sofá’, onde alhos e bugalhos estão se misturando sem qualquer pudor desde que sentar no sofá do ex-opositor signifique uns segundinhos a mais no horário eleitoral gratuito.

CINISMO - Foi isso que Lula foi fazer com Haddad na mansão de Maluf: o teste do sofá. Em troca dos preciosos tempinhos do partido de Maluf na TV no horário eleitoral gratuito. Do mesmo modo, por aqui, na Bahia, o DEM também apelou para a mesma estratégia assediando o Partido Verde e uma militante dos movimentos sociais da periferia e do movimento negro. Se um dia o DEM de ACM Neto já contestou juridicamente as cotas raciais na universidade e agora tem como vice Célia Sacramento, uma árdua defensora das cotas, os antagonismos entre ambos, como diria Maluf, não mais importam. O que importa são os preciosos segundos na TV que o casamento político do DEM com o PV proporciona à campanha eleitoral.

E na onda do teste, o cinismo se espraia sem qualquer resquício de pudor. O próprio ex-presidente Lula, ao posar com a presidente Dilma durante a Rio+20, dois dias após posar com Maluf e um dia após a ressaca política de ver a vice do seu candidato, a ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, recuar da chapa alegando repulsa às imagens da véspera, saiu-se com um trocadilho infame. Referiu-se à foto com Dilma como sendo ambientalmente correta, numa oposição à politicamente incorreta, literal, com Maluf. No mesmo evento, o governador da Bahia, Jaques Wagner, também se sentindo confortável no posto de piadista experimental disse que em tempos de Rio+20 era preciso ver a aliança com Maluf num contexto em que sustentabilidade pressupõe não exterminar qualquer espécie [política]. Muito engraçado, governador. Além disso, para Wagner, para vencer as eleições em São Paulo vale o esforço de aliar-se a Maluf.  

‘MEU GAROTO’! - Entre o teste do sofá visando a campanha eleitoral na TV, que logo entrará nos lares brasileiros assustando o telespectador que tiver estômago para assisti-lo, e as imagens de Lula no bunker malufista, a cena mais tradutora da canastrice bufa do encontro talvez seja a de Paulo Maluf passando a mão nos cabelos recém-cortadinhos de Haddad. Vista na TV e nos jornais a imagem parecia pedir desesperadamente uma legenda. Poderiam ter tomado-a emprestada do bordão de um dos personagens antológicos de Chico Anísio. Quem não lembra da dupla de palhaços Cascata (Chico) e Cascatinha (Castrinho), cujo bordão era: ‘meu pai-pai!; meu garoto!’? À luz da imagem, Maluf transformou Haddad no garoto de Maluf.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 24 de junho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 16 de junho de 2012

Teleanálise | "Jornalismo prescritivo: dicas para não morrer nunca"

Malu Fontes

Alguns dos espaços antes ocupados, no jornalismo impresso e no telejornalismo, por um subgênero chamado de jornalismo de serviço, serviam para informar aos leitores e telespectadores o que abriria e fecharia nos feriados, cotação de preços de produtos alimentícios básicos em períodos especiais ou estações, onde encontrar atendimento para uma série de demandas sociais, dicas de emprego e de outras oportunidades, foram, aos poucos sendo substituídos pela tendência da auto-ajuda. Nos últimos anos tal tendência virou febre e a televisão embarcou nessa onda sem nenhum comedimento.

Das bancas de revistas, aos jornais impressos e nos programas de TV matutinos e vespertinos é impossível contar a quantidade de produtos voltados para dizer às pessoas como elas devem viver, comer, dormir, fazer sexo. Enfim, para qualquer ponto que se olhe da indústria cultural há um texto, um apresentador, um especialista ou, na maioria das vezes, um picareta de plantão na televisão, dizendo o que as pessoas devem fazer para serem felizes e viverem bem todos os dias da vida. O fenômeno é tão alarmante que basta ler, ouvir ou assistir as falas desses conselheiros de plantão, personais de tudo, para deduzir que o enunciado dos seus discursos, no conjunto, não diz outra coisa senão: se vocês fizerem tudo o que a gente manda, comerem tudo o que a gente aconselha, fizerem os exercícios certos, usarem os produtos que recomendamos, nunca morrerão, pois as causas da morte ou os riscos de esta acontecer desaparecerão de suas vidas.

VASSOURA - A televisão aberta vive hoje uma febre em suas grades de um gênero que pode ser chamado ironicamente de telejornalismo prescritivo, caracterizado como um discurso de papagaio treinado que repete sem parar tudo o que o cidadão deve fazer: de quanto em quanto tempo deve trocar os travesseiros e por quais para não ser acometido de síndromes alérgicas irreversíveis a como pegar direito na vassoura e manejá-la para limpar a casa sem que a coluna vertebral um dia se desmonte e para, de quebra, perca-se algumas calorias e ganhe-se massa muscular. Sim, a faxina de casa é apresentada à dona de casa como uma irresistível forma de exercitar o corpo. Desde que seja feita, é claro, com muito prazer e com movimentos mais articulados e coreografados diante da vassoura, do balde d’água e do pano de chão do que os de um corpo de baile de um grupo de dança premiado por suas coreografias.

Se o Fantástico, no quadro Medida Certa, já colocou seus apresentadores, Zeca Camargo e Renata Ceribelli a fazer diante do público todos os esforços do mundo para ensinarem aos telespectadores como entrar em forma, agora é a vez de ensinar a mesma coisa às crianças. Recrutou algumas, todas gordinhas, exceto um garoto, para fazer o mesmo no Medidinha Certa, ensinando-os (e aos pais) a comer e ter um corpo bom. No mesmo Fantástico, não faz muito tempo o Doutor Bactéria ensinava o tempo certo para trocar a esponja de lavar pratos. Mas se todo programa de TV que se preze hoje tenha embutido em seu formato um quadro dizendo o que alguém deve fazer e o que evitar, o prêmio vip da categoria fica com o global matinal Bem Estar. No programa se aprende de tudo. É o formato mais redondo do que já se pode chamar de jornalismo prescritivo, um jornalismo que tem como mote prescrever receitas cotidianas de como viver da maneira certa.     

VIVARINA - Assim como há algum tempo todo mundo se perguntava se as facas Ginsu (anunciadas como capazes de cortar até pedra) cortariam as meias Vivarina (uma meia fina feminina à prova de qualquer dano, de unha de gato a escoriações em chão árido), hoje já se pode perguntar do que morrerão as pessoas se elas cumprirem todas as prescrições que os especialistas de plantão desfiam nos programas de TV. Todas as doenças parecem ser passíveis de serem evitadas e até mesmo a violência parece ser coisa da ordem da escolha das vítimas. Rodrigo Pimentel, o Capitão Nascimento de carne e osso, está todos os dias na Globo ensinando todos como fazer para evitar assalto e repetindo pela enésima vez como uma mulher deve carregar uma bolsa para que esta não seja levada pelo ladrão.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 17 de junho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 9 de junho de 2012

Teleanálise | "As malas de Elize salvaram Ronaldinho"

Malu Fontes


Não fosse a bela, rica e loura Elize Matsunaga dar um tiro na cabeça do marido, esperar horas e horas para o sangue do corpo morto coagular e, assim, evitar sangramento para então esquartejá-lo até fazer caber os pedaços em três malas e carregá-las sob o olhar sempre vigilante das câmeras onipresentes de um elevador, Ronaldinho Gaúcho é quem teria ocupado o posto de grande réu da semana nas manchetes da telejornais. A semana televisiva começou com mais uma bomba de vento jornalístico.


Todas as emissoras foram atrás da sanha de Patrícia Amorim, a moça meio sem sorte ou norte do Flamengo, que, com o propósito de ganhar um round numa batalha milionária trabalhista orçada em 40 milhões movida pelo jogador contra o time, tirou da cartola imagens mostrando uma mulher entrando com uma mala num dos quartos do hotel onde a equipe estava concentrada, em janeiro deste ano, em Londrina. As câmeras, assim como denunciaram o esquartejamento até então inconfessado de Elize Matsunaga, também mostram o que parece que nem os torcedores mirins têm dúvida. Nove entre 10 (e há quem diga que são 11 a cada 10) jogadores de futebol fazem sexo ou outras coisas nas concentrações. As câmeras mostram Ronaldinho entrando e saindo do quarto da moça da mala e saindo cedinho, todo vestido para o treino.

MORTES - O detalhe jornalístico surpreendente do episódio não é o que as imagens mostram, mas a forma como a imprensa é pautada ao gosto e ao sabor dos discursos dos donos da notícia em cada área, seja esporte, política, celebridades, etc. Todas as emissoras, sem exceção, mostravam Ronaldinho praticamente como um criminoso flagrado durante o ato. Desde quando a maioria dos grandes astros do futebol brasileiro tem como característica exatamente traços como contenção, bom mocismo, bom comportamento, sobriedade e fidelidade (no caso dos casados)?


Da história inteira de álcool e mulheres de Garrincha ao bafafá entre Ronaldão e os travestis, passando por Romário, Renato Gaúcho e os trocentos casos envolvendo Edmundo, embriaguez e até mortes, em que aspecto Ronaldinho Gaúcho representa uma evolução para pior? A única diferença parece ser a câmera de um hotel. E se Patrícia Amorim acha isso tão grave e transgressor assim, com a anuência da imprensa de um modo geral, que deu à coisa o tamanho da repercussão que deu, por que não tomou providências em janeiro?


JUMENTOS - E por que o Flamengo contratou Ronaldinho sabendo que na Espanha o jogador já era uma figura do balacobaco? E por que ninguém do Flamengo nunca ouviu os lamentos dos moradores do condomínio onde o moço morava e dava baladas que só não perdiam para as de Adriano? Se nas festas de Ronaldinho o traço era a desproporção infinitamente superior entre a quantidade de mulheres e o barulho da música, a marca Adriano era dar um toque de Calígula aos seus eventos. Qualquer busca no Google mostra que em suas festas eram comuns a junção de ex-bbbs, anões e, sim: jumentos. Não causará estranhamento se a qualquer momento a direção do Flamengo acusar o gaúcho, com a anuência da imprensa para a divulgação, de infração contratual no quesito estética, sob a alegação de que comprou um galã e recebeu um Shreck Black e dentuço de chuteiras. 


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 10 de junho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

domingo, 3 de junho de 2012

Teleanálise | "Quem se importa com o futuro alheio?"


Malu Fontes


Doze dias de greve dos policiais na Bahia foram capazes de revolver diversos segmentos da sociedade baiana, não apenas na negociação diária em busca de saídas para o impasse entre grevistas e o governo do estado, mas, sobretudo no debate irado que se travou nos meios de comunicação em torno do argumento do desamparo ao qual a população estava submetida e dos prejuízos gerados à economia pela redução da circulação de pessoas no comércio.


Os telejornais locais e os nacionais deram ampla cobertura ao fato e o barulho social gerado pela paralisação tinha força de um urro, ora acusando o governador de omisso e irresponsável por não negociar com os policiais, ora acusando os policiais de bandidos, irresponsáveis e até de contribuírem diretamente para o aumento do número de homicídios. Em outras palavras, parte da imprensa disse com muito prazer que uma certa polícia miliciana andou executando gente durante a greve a torto e a direito.

METRÔ – Há pouco mais de uma semana a maior cidade do País, São Paulo, acordou com os metroviários de braços cruzados e mesmo quem vive no Amapá foi bombardeado o dia inteiro por imagens televisivas de todas as emissoras mostrando do alto a cidade caótica, cena, aliás, que nem precisa de paralisação de metrô para ser capturada por câmeras de TV, em se tratando de São Paulo. A greve não durou um dia. O poder político e o poder econômico, diante do prejuízo que se desenhou, arranjaram uma solução urgente e 24 horas depois tudo estava resolvido, com conquistas para os metroviários.


Em Salvador, que nunca pôde contar com o luxo de ter um metrô, no mesmo dia quem cruzou os braços foram os motoristas e cobradores de ônibus, deixando cerca de um milhão de pessoas sem transporte e reduzindo radicalmente a circulação de dinheiro no comércio. Como quem anda de ônibus em Salvador está em muita desvantagem social e econômica em relação a quem anda de metrô em São Paulo, a coisa demorou um pouquinho mais que lá para se resolver, mas a greve não se estendeu nem até o fim de semana.


RENITENTE - Enquanto isso, na Bahia, numa outra dimensão da vida, para um grupo de pessoas que de certo modo carregam nas costas a única idéia de futuro que este país pode ter, os professores, uma greve se arrasta caminhando para dois meses, 60 dias, e a impressão que se tem na capital, em Salvador, é que nada está acontecendo, que nada está fora do lugar ou da ordem. Milhares de alunos sem aula há praticamente 60 dias, um discurso renitente do governo que contesta até as decisões judiciais sobre o pagamento dos salários dos professores e com exceções de uma reportagem de TV aqui e ali ou de um comentário de apresentador, quem parece socialmente incomodado com a greve e suas consequências.

Quando a polícia para e todo mundo fica com medo de sair às ruas e deixa de fazer compras, a economia do país e o medo da violência crescer ainda mais fazem a população comum sair do silêncio, mesmo que seja para dizer absurdos. Quando o transporte público para e os empregados não podem ir trabalhar e o comércio e a indústria veem essas ausências transformadas em perda concreta de dinheiro, dá-se um jeito de forçar o poder público a se virar nos 30, negociar o que quer que seja para a ordem das coisas se restabelecer. E a cidade vazia, os shopping centers vazios e a paisagem das ruas sem polícia ou sem ônibus geram excelentes imagens de TV.

OFENDIDOS - Já milhares de meninos e meninas pobres, sem aula, cada um em sua casa, sem poder nenhum, que imagem haverão de gerar para o telespectador? A lógica parece simples e não é da televisão, mas, antes, da sociedade. Quando os policiais ou os metroviários e rodoviários cruzam os braços, a sociedade compreende imediatamente que o seu presente, o imediato, o aqui e o agora estão comprometidos. E como pode o direito de ir e vir do cidadão ser assim cerceado, pensa a maioria e aponta a metralhadora de pressão para os governantes descansados, obrigando-os a reagir.


Já os professores da rede pública, se cruzam os braços, quem se importa? Isso não diz respeito ao presente de ninguém, somente ao futuro, e mesmo assim já incerto, de um universo de jovens pobres para quem a greve, cada vez mais silenciosa socialmente, é apenas mais um elemento de consolidação da falta de acesso à cultura, à informação e à formação que os habilitariam a entrar na universidade sem serem ofendidos porque precisam de cotas. A greve dos professores quase não passa na TV porque diz respeito ao futuro alheio.



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 03 de junho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com