sábado, 11 de novembro de 2017

A Fita Branca - Malu Fontes

Três acontecimentos bárbaros e tradutores do grau incompreensível a que pode chegar a intolerância de pessoas tidas socialmente como normais foram amplamente noticiados nos telejornais durante a semana. Nos três, a marca do ódio cego, burro, animalesco e indistinto por um outro a quem sequer o agressor conhece, sabe de quem se trata, se tem nome, passado, futuro, sonhos, planos, memórias, família, afetos, enfim, uma vida para trás e para a frente.

No fim de semana, em São Paulo, três rapazes foram brutalmente agredidos. Foram chutados, espancados e tiveram os rostos talhados por cacos pontiagudos de lâmpadas fluorescentes retiradas do lixo por cinco adolescentes, em plena Avenida Paulista. Os agredidos: rapazes em quem os agressores enxergaram signos de homossexualidade, razão considerada suficiente para despertar as agressões; os agressores: cinco garotos bem nascidos, o mais velho com 19 anos, bem criados, alunos de boas escolas privadas e com ódio a homossexuais, sentimento declarado explicitamente durante os ataques, sem motivos, segundo testemunhas.  

FAXINA DE GENTE - No Rio de Janeiro, dois rapazes homossexuais na faixa de 20 anos foram abordados, após a Parada Gay que ocorreu na cidade, por homens com farda do Exército e que se identificaram como militares. Foram ofendidos, xingados, agredidos e um deles levou um tiro na barriga só por ser quem era, por estar onde estava, pois não cometera uma infração sequer. Os militares simplesmente argumentaram que odiavam essa ‘raça’, referindo-se aos gays. Em Maceió, foi executado o 32º morador de rua, em menos de um ano. Ninguém foi preso ou está respondendo a processo pela faxina de gente que vem sendo feita nas ruas da cidade.  


O cardápio de manifestações de ódio chega aos borbotões pela TV: um garoto não gostou da nota baixa, no Rio Grande do Sul, e literalmente, quebrou a professora inteira. No trânsito, em Salvador, o motorista de uma BMW, ao ver os fundos amassados por um caminhão, encarnou o acertador de contas e, com uma daquelas pedras que a Prefeitura adora mandar pintar de branco para contrastar com a grama verde, enfrentou o caminhoneiro estilhaçando-lhe o vidro. O tal, por sua vez, desceu armado de um facão, perseguindo o opositor, produzindo cenas inverossímeis para a TV, captadas por câmeras de segurança existentes nas imediações do conflito. 

O mundo evolui financeiramente, cientificamente, tecnologicamente, mas o mau e velho homem continua o mesmo, entupido de conhecimentos e saberes, mas explodindo de ódio pelo semelhante. Diante das narrativas de violência por intolerância ao ‘outro’ difuso e do desrespeito por o outro que escolhe para a sua vida algo diferente daquilo que os fiscais da moralidade alheia apregoam como certo, o filme A Fita Branca, de Michael Heneke (quem gosta de narrativas óbvias e previsíveis, nem tente), ilustra como um clima de ódio pode fermentar-se entre uma sociedade até explodir, lá na frente, em manifestações bélicas explícitas. Não, não se está falando de violência urbana, do assaltante drogado, dos tiroteios entre Polícia e bandido, mas do ódio indiscriminado e primitivo, de gente contra gente, por razões as mais incompreensíveis, de gente contra gente apenas por não tolerar que o outro tenha modos diferentes dos seus de ser, estar e circular no mundo. É bom não banalizar a onda de preconceitos manifestada, sobretudo nas redes sociais na Web, por grupos de eleitores do sul e do sudeste contra os nordestinos, em consequência dos resultados das eleições presidenciais.


Pôster do filme A Fita Branca. Fonte: AdoroCinema


SARIGA E MERENDA - E por falar em eleições, no campo político dois episódios locais merecem ser associados: o presidente da União das Prefeituras da Bahia, Roberto Maia, advertiu durante a semana, em entrevistas, à imprensa, que, se o salário mínimo continuar a subir acima da inflação, conforme o governo está anunciando, isso levará as pobres prefeituras baianas a comprometer seus investimentos em favor de melhorias para a população, pois o reajuste inviabilizará o poder de gastos dos prefeitos nos municípios, nesses termos. Não diga, prefeito, que o problema que leva a quase totalidade dos municípios brasileiros e baianos a ter péssimas gestões é conseqüência do valor alto do salário mínimo... Além de soar incompreensível para quem o ganha para sobreviver e não ser acusado de parasitar o país via bolsas de distribuição de renda, nem os melhores marqueteiros ou lavadores de imagens podres do mundo poderão convencer a população a crer nisso, sobretudo quando dito em uma mesma semana em que mais de meia dúzia de prefeitos baianos foram presos na Operação Carcará (a ave que pega, mata e come) por roubar, sim, roubar, cerca de R$ 300 milhões que deveriam ter sido usados em merenda escolar. 


Não há reajuste de salário mínimo que faça o senso comum acreditar em falas políticas dessa natureza, quando o que se vê na TV é uma quadrilha de prefeitos presos por, literalmente, roubar comida de criancinha. Nesta mesma semana, um ser humano, desescolarizado desde sempre, animalizado pelo uso de crack e que atende pelo sonoro e inspirador nome de Sariga, ao roubar um relógio, empurrou para a morte por atropelamento um homem no centro de Salvador, fato registrado por câmeras de um circuito de segurança. Não custa lembrar que quantos mais prefeitos ladrões de merenda e de oportunidade escolar existirem, maiores as chances de produção de centenas, milhares de Sarigas, multiplicando-se pelas ruas do país. A diferença é que Sariga foi preso e vai apodrecer na cadeia. Os prefeitos presos? Foram todos soltos nas horas seguintes às prisões, o que significa que novos Sarigas, sem escola e sem merenda, virão por aí, para matar e serem mortos, como o de Salvador e como os sem teto de Maceió, produzindo cenários que fermentam e fomentam intolerância, ódio, medo e violência.  



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 21 de Novembro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Veveta e a imprensa fã clube

Texto publicado originalmente em www.facebook.com/malu.fontes.39 , em 13 de dezembro.

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Malu Fontes*

Foto: reprodução/divulgação

Entre as milhares de frases deixadas como legado pelo brilhante Millôr Fernandes, uma delas é especialmente cara aos jornalistas que respeitam informação: "Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados". Diante do show de comemoração dos 20 anos de carreira de Ivete Sangalo, esta semana, impressiona perceber, sobretudo nos posts aqui, o quanto os jornalistas da terra precisam puxar explicitamente o saco da cantora e de sua assessoria. Ok, se é para falar da estrutura, onde mora a dificuldade de falar disso sem parecer que, na Bahia, o jornalismo que cobre qualquer coisa parecida com um novo disco ou um show de um artista local tem que se confundir com uma grande ovação típica de um grande fã clube? Por que não se consegue ler um post que seja de um jornalista falando dos bastidores e da estrutura da festa, dos seus números, sem parecer que quem escreveu está de joelhos porque recebeu um ingresso de cortesia ou precisa aproveitar a oportunidade para divinizar o show de uma para espinafrar o livro da outra? A coisa tá ficando tão feia e exagerada que, mesmo se tratando de uma mulher linda como Ivete, a deformação da imprensa local chega ao ponto de publicar na capa de cadernos de cultura imagens tão fotoshopadas da cantora que fazem o leitor sensato (ou esse tipo de gente inexiste entre quem lê jornal em Salvador?) arregalar o olho. Para que fotoshopar Ivete? Na foto, nem joelho Ivete tem. Sim, até as divas (ainda) têm joelho... Se ainda fosse numa página de publicidade... Mas é justamente aí que mora a coisa: quando se trata da música local, na imprensa local, processos tão distintos como informação, divulgação e publicidade há muito se tornaram uma coisa só.

Tantos elogios de forma tão "fã clube way of writting" serão motivados pelo medo dos jornalistas de que o entourage do marketing da cantora puna quem não elogie tudo, não enviando no próximo evento outra credencial? Calma, minha gente, o esquema de assessoria da cantora é profissional e não usaria esse tipo de artifício, tão primário. Como diria Lula, na hora de babar ovo, para usar uma expressão local, menas, minha gente, menas...

E para arrematar, uma frase entreouvida dia desses num grupo formado por gente dessa categoria social que se auto-intitulou em Salvador como GENTE BONITA. Alguém do grupo se queixava ao saber que a "pista" do show, no gramado da Fonte Nova, seria acessível aos fãs comuns, aqueles mortais que não ganham credencial, ingresso para o camarote top com direito a um head phone branco com a marca IS20 e nem podem pagar uns mil caramanguás por um lugar privilegiado atrepado do estádio, reservado à "gente bonita". O naipe da queixa merece uma tese acadêmica: "É claro que isso não pode ser verdade. Imagine se uma artista nacional como Ivete iria fazer um show de gravação de DVD dando acesso à pista a quem não comprou camarote! Imagina se ela iria permitir que as câmeras filmassem, na frente do palco, um monte de gente feia, desarrumada e sem dente que não tem dinheiro pra comparar camarote..." Apois!

P. S.: Há uma falha neste post. Parte da imprensa baiana acha quase uma heresia chamar a cantora de Ivete. Íntimos como são, só os estranhos não sabem que o nome dela é Veveta. E ela não dá mais entrevistas: chama a imprensa para um bate-papo.

*Malu Fontes é jornalista e professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia

“Fim”, o livro de Fernanda Torres – (Ou, um post inviável para quem não gosta de ler)

Texto publicado originalmente em www.facebook.com/malu.fontes.39 , em 5 de dezembro.

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Malu Fontes*

Prescrição: não curtir 1 minuto após a postagem, pois ninguém consegue ler três páginas de word neste tempo. E é isso que torna tanta curtição pouco verossímil. Um avatar posta um texto looongo e, em segundos, há 100 curtidas. Como, se não houve tempo hábil para ninguém ler aquilo?
"Fim"/Foto: divulgação


Sim, talvez eu sequer tocasse em "Fim" para folheá-lo numa prateleira de livraria, mesmo que sua capa criativa seja uma atração à parte, não fosse o nome da autora: Fernanda Torres. Não, a atração também não se deveu apenas à curiosidade por se tratar da atriz global, sempre em evidência, a Fernandinha cria da Fernandona, imagem íntima de quem cresceu vendo TV. A atração pelo livro, sim, se deu pelo fato de a autora ser Fernanda, a Torres, mas por motivos outros. Por gostar do estilo do texto na coluna que ela escreve na Folha de S. Paulo, talvez. Ou, quem sabe, tenha lançado o primeiro olhar sobre o livro por outros percursos do imaginário... O fato de, durante tanto tempo, por exemplo, ter me identificado hilariamente com as histerias e comicidades de sua Vani dentro de suas calcinhas box. Quem nunca gargalhou com uma cena de Os Normais, bom sujeito não é.

Assim, desarmada de intenções óbvias - ler um livro de ficção da atriz da Globo para depois dizer frases feitas do tipo "ah, duvido que, se fosse uma desconhecida, a editora publicasse isso", ou "como não teme se expor, arriscando-se no mundo incerto da escrita ficcional, já tendo os pés tão bem fincados na dramaturgia?" - comprei "Fim" e li suas exatas 200 páginas de uma sentada, num domingo. E tenho dito: o livro contém um grau alarmante de surpresa para o leitor. É deslumbrante.

Como, para quem gosta de literatura, é impossível ler um romance sem buscar ou encontrar nele referências outras, literárias ou não, sem esforço esbarra-se talvez na mais facilmente encontrável em “Fim”: a comédia de costumes. Mas, no livro, talvez seja mais correto ou adequado renomeá-la como tragédia de costumes. Nessa primeira percepção, o leitor escorrega numa casca de banana que o leva a revisitar um quê dos tipos cariocas de Nélson Rodrigues, mas em um Rio de Janeiro de outras décadas, quando os modos de vida amorosa e sexual já não eram ditados pela bolinação, ora frígida ora culpada, das engraçadinhas da vida e, tampouco, pela sonsidão brejeira e perversa das cunhadas virgens ou dos maridos cafajestes encharcados de álcool. O tempo de Fernanda Torres é outro: sexo, drogas e nem tanto rock'n roll assim: a loucura que veio com os anos 60, teve seu apogeu nos anos 70 e morreu de overdose ou Aids nos anos 80. O tempo dos tipos de Fernanda já estavam na fase da ressaca saudosista, melancólica e solitária nos anos 80 e são o que hoje os cariocas identificam fácil como os velhinhos e as velhinhas de Copacabana. Ah, o buraco da fechadura desvelado por "Fim" revela o que os respeitáveis senhores e as curiosas senhoras que hoje claudicam nas calçadas da Cidade Maravilhosa foram capazes de fazer nos verões passados.

Não, não se compara a aqui Fernanda com Nélson, nem os tipos de uma com os tipos do outro, afinal não é porque as redes sociais existem - e servem para que qualquer um publique um texto como este - que a gente pode se autorizar sem pudor a sair por aqui dizendo asneiras. Mas quem leu Nélson percebeu que Fernanda também o leu e que seus personagens também são, como os dele, besuntados em metade comédia e metade tragédia.

Mas "Fim" tem prenhez em série de referências, todas elogiáveis e dessas que fazem bem para o alargamento da consciência que vamos adquirindo na vida e que pode até nos deixar mais sorumbáticos, mas mal não faz, nunca. Fernanda, em seu livro de estreia, tripudia das fronteiras estabelecidas no mundo pela ideologia da correção política e fala com autoridade e absolutamente nenhuma sisudez de temas que são caros a todos nós, mulheres e homens, jovens e velhos, solteiros e casados. Sim, é boa além da conta e do esperado quando ironiza, e mesmo assim emociona, narrando as dores e delícias da condição feminina, do peso insustentável que o homem de qualquer tempo sempre se impôs carregar para, falsamente, convencer a si mesmo que é o tal, descrevendo o horror, o humor, a euforia, a alegria trágica e o luto certeiro que sempre rondam uma das mais perversas e indescritíveis formas de pacto social que a humanidade inventou: o casamento.

Também, para quem viu os filmes do canadense Denys Arcand, "O declínio do império americano" e "Invasões bárbaras", é impossível dissociar a rota de vida dos personagens dos dois filmes da rota traçada pelos dos de "Fim". O nó dramático da narrativa é o mesmo: a velha pergunta para a qual só os ingênuos acham que já têm ou encontrarão a resposta. O que fizemos ou faremos de nossas vidas e em que ponto exato delas escolhemos a esquina errada que nos levou ou levará ao fim? Sim, pois só os auto-santificados ou auto-enganados vivem certos de que fizeram ou estão fazendo a escolha certa. A única certeza possível é: duvidar é preciso. Nos filmes de Arcand, a pergunta aparece, no primeiro, entre um grupo de jovens amigos intelectualizados reunidos em clima de euforia. No segundo, no reencontro dos mesmos amigos, anos depois, agora em torno de um deles moribundo, irreversivelmente à beira da morte.

"Fim" reúne cinco homens à beira da morte - todos, exceto um, septuagenários ou octogenários, levados da vida pelos males inerentes da velhice; um único por um câncer desses que não permitem sequer tempo para refletir sobre o diagnostico. Nisso, no fato de ser uma narrativa em retrospectiva, um flash back sobre a contabilidade da vida, surge algo de Machado em Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas um “algo” de responsa, com tanta picardia quanto. Se mulheres não podem narrar suas vidas eclipsando os homens que por ela passaram, com os velhinhos morrentes da zona sul do Rio as coisas não são diferentes. A história do livro se dá no cruzamento da vida deles com as mulheres que lhes marcaram ou foram marcadas, em meio à loucura que era a vida da classe média que colocou em prática a revolução sexual pós pílula e o culto às drogas como quase uma religião que dava à vida o sentido que a sobriedade e a abstinência em relação a elas parecia negar.

Há poucos dias, embora falando de outra coisa, o sempre bom e velho Ney Matogrosso reduziu e definiu em entrevista no Programa do Jô o que acontecia nas surubas do Rio de Janeiro, orgias que a geração dele pegou do ápice à rebarba (o medo da ou a morte pela Aids) e das quais 15 era o número médio de participantes. "Nada, Jô. Não acontecia nada", respondeu Ney gargalhando, descrevendo que, enquanto se tentava beijar a boca de um, a perna de outro atrapalhava, a bunda de um terceiro já escapulia por sobre a cabeça de um quarto e assim o bolo de gente inviabilizava tudo. Caetano, embora falando de outra coisa, na canção "Odeio você", também descreve como oca, ao final, a busca desmesurada de prazer sexual com deus e o diabo: "veio a maior cornucópia de mulheres/todas mucosas pra mim/o mar se abriu pelo meio dos prazeres/dunas de ouro e marfim/foi assim, é assim, mas assim é demais também".

Sim, como me dizem sempre pessoas que parecem gostar de mim (ou assim o dizem), talvez a minha descrição de "Fim" seja melhor que o livro em si. Tenho esse aleijão da hipérbole diante das coisas que me encantam e elas as vezes me traem. Mas, como escreveu Pirandello, “assim é, se lhe parece”. “Fim”, então, me parece um excelente presente para quem gosta de leitura. Se assim o for, para quem me lê agora e já leu o livro, ou o fizer movido pela curiosidade despertada por minha opinião, não há de ser nada. Peço desculpas. Sigamos adiante. Na próxima, quem sabe, eu me aproximo de algo mais consensual, quem sabe... Mas, como essa não é uma resenha comercial, ou seja, não fui paga pela editora ou por quem quer que seja para escrevê-la, e esse é um período do ano em que as pessoas adoram escrever coisas com o sentido de compartilhamento, etc. e tal, resolvi escrever sobre "Fim", antes que passasse o impulso, ainda sob o impacto das primeiras impressões pós leitura, enquanto os capítulos e personagens ainda estão frescos e o livro não foi parar na lista dos mais vendidos das vejas da vida. Escrevo, acho, por três razões: de fato achei-o incrível e o recomendo sem restrições; as redes sociais são esse quadro em branco onde se pode escrever quase tudo (quem não tem bom senso esquece sempre o quase); e, por fim, escrevo porque é dezembro.

Em dezembro, o povo desperta uma vontade adormecida de escrever e sai por aí desejando felicidade a todo mundo. Não só felicidade, mas, sobretudo prosperidade, essa palavra morta, mas ressuscitada nessa época do ano. As redes sociais assassinaram os cartões de Natal e Feliz Ano, mas não a febre de manifestações de desejos supérfluos dessa natureza. Preparem-se para ver e ler aqui, “no feice”, as coisas mais insanas e fora de propósito, desejadas a você e por pessoas que, no fundo, não fariam a menor diferença se desaparecem de vez de nossas vidas, os típicos amigos que podemos chamar de bola de sabão: vivem explodindo e sumindo no ar. Quando aparecem, ou reaparecem, uma vez por ano e olhe lá, dando algum sinal de vida, dizem que nos adoram, nos admiram, amam, blá blá blá, que somos foda. Mas, se um dia você tiver um infarto, um avc, fraturar uma vértebra cervical, amputar um pé ou tiver um diagnóstico de tumor maligno no centro do cérebro, não espere uma visita dos bolas de sabão. Sequer um telefonema. Conte com um whatspp insosso e pouco original, no máximo. Mas aí, vindo deles, não vale, porque o mérito é todo da tecnologia, of course. Sim, sou daquelas que riem de quase tudo e com quase todos, mas acho graça, aqui com meus botões, de, com e em muito poucos. Admiro profundamente os inteligentes e os afetuosos, a ponto de praticamente situá-los na mesma categoria. Não falo dos pegajosos. Esses não fazem parte da categoria humana e só fazem sentido para quem crê em karma. Sou dessas capazes de dar, literalmente, uma córnea ou um rim para quem um dia atravessou a cidade para encontrar um hidratante sem álcool na botica mais antiga e charmosa de Salvador porque sabia que eu precisava mesmo de um e não era por estética. Reconheço de longe um gesto amoroso e, principalmente, gentil e delicado. Mas, na mesma proporção, vou ao subsolo do inferno, sem escada e no escuro, só para dar um sorrisinho de canto de boca ao me certificar que um desafeto está lá e vai demorar a sair. Se sair.

Ou seja, enquanto a Bamor, Os Imbatíveis, os militantes do PSOL e as amigas velhinhas de Monsenhor Sadoc serão inundados simultaneamente pelo espírito natalino e novidadeiro pró 2014 e sairão por aqui nos próximos dias postando desenhos de árvores, frases australianas traduzidas de cartões retirados do mercado e desejando a todos nós uma infinitude de coisas que não vão nos acontecer, eu, do centro da minha fé curtinha nas coisas e no semelhante, quero apenas desejar que as pessoas leiam um livro. É um desejo razoável. Eu acho.

*Malu Fontes é jornalista e professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia

sábado, 28 de julho de 2012

Teleanálise | "Batman e o vizinho: Hasta la vista, baby"

Malu Fontes

Durante a semana, notícias tendo como elemento central a banalização da morte nortearam as principais manchetes dos telejornais internacionais, nacionais e locais. Sim, esses fenômenos são uma constante no jornalismo, mas aqui e acolá episódios nos quais essa banalidade se manifesta os hierarquizam de tal modo numa ordem de horror e non sense que ainda surpreendem. Partindo do global para o local, nos Estados Unidos, no estado do Colorado, na cidadezinha de Aurora, uma plateia de batmaníacos esfregava as mãos de ansiedade para uma sessão de estreia do filme à meia noite, quando, no escuro, irrompeu o imponderável. Uma saraivada de tiros. 12 mortos, 58 feridos e um país de novo boquiaberto.
MARKETING - Num país, os EUA, onde todas as naturezas de ações de marketing são possíveis, numa cultura local do culto às armas de fogo na qual qualquer moleque consegue comprar um arsenal de guerra sem qualquer dificuldade e numa sucessão de casos em que adolescentes ou adultos jovens perturbados já inscreveram uma longa história de violência, primeiro achou-se que os tiros não passavam uma ação de marketing associada à estreia. Depois, houve uma correria às lojas de armas da cidade para comprar mais e mais exemplares delas e, simultaneamente, a imprensa do mundo repetiu a pergunta que faz sempre e para a qual nunca se tem resposta objetiva e diante da qual todas as especulações malucas disputam um lugar entre as possibilidades de explicação: por que esse fenômeno se repete tanto nos Estados Unidos e como evitá-lo, já que a população não abre mão do seu culto quase passional às armas e à liberdade de comprá-las sem restrições?
RATO - No Brasil, a Polícia Militar de São Paulo chocou o país ao executar (pelo menos) dois inocentes: um publicitário que não parou o carro à noite quando ordenado a fazer isso e um jovem que fugiu com medo porque a carteira de habilitação estava vencida. Além disso, matadores que não se sabe quem vêm barbarizando na cidade nas últimas semanas, executando e chacinando sem que se saiba de quaisquer razões e desfechos para tais crimes. Num outro episódio noticiado na imprensa internacional, um jovem italiano que chegou à mesma São Paulo em um dia, para morar e trabalhar, foi assassinado no dia seguinte, numa tentativa de assalto frustrada no trânsito, em uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Veio para o Brasil e morreu como um rato perseguido por exterminadores dispostos a explodir o primeiro cérebro que encontram pela frente troca de um relógio ou um celular.
FASCÍNIO - Sim, o mundo, Brasil incluído, choca-se com jovens como o estudante de medicina James Holmes, o auto-intitulado Coringa da sessão noturna de Aurora, mas pouco se esforça para lembrar que a natureza da banalização da violência pode até ser de ordem diferente, mas a nossa é tão banal e brutal quanto. Quando contados os cadáveres de um em um, aqui mata-se/morre-se muito mais que lá. A Polícia Militar de São Paulo, por exemplo, mata mais que toda a Polícia dos Estados Unidos (e nos Estados Unidos). Por que o espanto com a matança dos outros é maior do que com a nossa, a doméstica incluída? Por que a matança de lá é a de um homem só, que, em surto assassino, revolve interromper a vida de dezenas? Aqui, de um em um, os matadores matam muito mais, enquanto o brasileiro olha horrorizado para a violência americana coletiva desses episódios, talvez porque encontre neles um quê de fascínio hollywoodiano. Violência é violência, assassinato é assassinato e cada país tem a sua forma banal de matar seus cidadãos. O que faz de James Holmes um sujeito mais assustador que um assassino anônimo que explode a cabeça de um motorista numa rua de São Paulo, querendo apenas levar um objetinho para casa? Lá é loucura e aqui é pobreza e desigualdade? Esses fenômenos não justificam a banalização da morte do outro. Nem lá, nem aqui.
VIZINHO - No terreiro local, uma quadrilha inicialmente descrita como formada por quatro jovens de classe média e um deles considerado rico em qualquer sociedade, divertiam-se roubando mansões num condomínio de luxo nos arredores de Salvador, onde cada uma das cerca de 400 mansões custam entre um e 10 milhões. Entravam no espaço privilegiado e supostamente protegido por grades, câmeras e seguranças graças ao apoio logístico de um dos integrantes da quadrilha, morador do oásis desde criancinha. A razão dos assaltos, que incluíam seqüestros relâmpagos e torturas psicológicas nas 10 famílias de moradores vitimadas desde 2011, era banal: gastar o dinheiro com noitadas. Segundo o delegado, os rapazes pagavam contas de até 15 mil numa única balada. Os rapazes negam os cálculos. Dizem que eram só cinco mil por noite, em média.
Lá e cá, portanto, o que há em comum na violência cometida é a gratuidade da ação, do comportamento de quem mata, tortura, violenta, persegue e achaca, Polícia Militar incluída. No caso dos condomínios horizontais de luxo, não deixa de ser curioso que 10 em cada 10 pesquisas feitas por pesquisadores do campo das ciências sociais apontam para um detalhe que deveria intrigar quem investe milhões nessas mansões em nome do sonho de viver feliz sob dois guarda-chuvas: a segurança e a liberdade. Um estudo recente feito por uma pesquisadora da Universidade de Brasília mostra por A mais B que praticamente a totalidade de atos delituosos, conflituosos e de insegurança registrados em condomínios tem como autoria os próprios moradores. A leitura dessas pesquisas deixaria boquiaberto quem sonha com os gramados, as crianças brincando com portas abertas e a confiança plena nos vizinhos nos condomínios de classe alta.
HASTA LA VISTA - A banalização do mal se concretiza quando se come uma pipoca no cinema e um sujeito arranca-lhe da poltrona para lhe matar; quando seu vizinho de porta do condomínio chama os amigos para lhe seqüestrar apenas em nome do desejo de sair para entornar 10 mil em uísque, como repetiram os telejornais de Salvador durante a semana. É como se esses sujeitos vissem nisso tudo uma brincadeira, como se quase piscassem o olho após cruzar a fronteira do intolerável e dissessem às suas vítimas, como vingadores ocos de um futuro bestial: ‘hasta la vista, baby’. E a referência aqui não é o disco homônimo do U2, mas puro Schwarzenegger.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 29 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com





 

sábado, 21 de julho de 2012

Teleanálise | "Carminha, a professorinha e o professor de ponta"

Malu Fontes

Esta semana Avenida Brasil chegou ao 100º capítulo levando ao ar uma trama que há muito não prendia tanto o telespectador, ancorada em ganchos sucessivos e não deixando saudades do tempo em que o público de novelas tinha que esperar 180 capítulos para ver o desfecho central se realizar ou para ver um mistério anunciado no primeiro capítulo ser revelado. Do lado de cá da tela, no caso do telespectador de Salvador, outros 100 capítulos sem nenhuma atratividade e nenhum desfecho também foram ao ar na mesma semana: a greve dos professores da rede pública estadual, há 100 dias fora da sala de aula.
BISPO - Enquanto em Avenida Brasil Adriana Esteves vem dando um banho de interpretação, sobretudo em se tratando da TV, um veículo que deixa pouquíssimo espaço para o ator crescer em seus personagens a ponto de explodir em talento numa tela tão pequena, na chanchada da greve baiana não houve espaço para outra coisa senão para a explosão do grotesco. Do lado do Governo, além do já tradicional modus operandi lentíssimo do governador Jaques Wagner de só negociar conflito quando nem mesmo o bispo, literalmente (no caso, o Cardeal Arcebispo Primaz de Salvador, Don Murilo Kirieger, que sempre tenta ajudar em negociações entre grevistas e Governo do Estado) suporta mais tanto imobilismo, mais duas cenas grotescas marcaram essa greve para nunca mais saírem da história da (péssima) educação na Bahia.
SHOW - A primeira partiu do próprio Governo, que parecendo acreditar que educação e fast food são uma coisa só, deu a deixa para que a população incorporasse em seu repertório uma expressão ímpar: professor de ponta. Não, não se fala de cornos, chifres ou algo do gênero, como inicialmente a expressão sugere, mas de uma suposta elite eleita por um professor-empresário-privilegiado cuja empresa foi contratada pelo Estado por milhões, sem licitação, para que seu dono pagasse uns caraminguás pequenininhos a professores tidos pelo próprio ‘professores de ponta’ e os colocasse para dar uns aulões, aulas do tipo que qualquer pessoa de bom senso acha uma ribanceira intelectual: juntar trocentos alunos em grandes espaços, como ginásios de esportes e conchas acústicas e oferecer-lhes como aula substitutiva às interrompidas pela greve uns tais aulões. Os cursinhos estão cheios desses aulões, né? Professores cantam, rebolam, dão show e, nos vestibulares que importam os alunos dançam. Ou são aprovados nas faculdades capengas e 10 anos depois não conseguem ter uma carteira da OAB porque mal sabem ler e escrever.
NINA COVER - Quando o Governo parecia ser o único dono da cereja do bolo, por vender aos alunos das escolas em greve bugalhos (estrelados por professores de ponta) por alhos, dando-lhes aulões ao invés do processo educacional que a Constituição garante, foi a vez de uma professorinha sem talento resolver incorporar a Carminha má da greve, transformando uma auxiliar de limpeza da Assembléia Legislativa em uma Nina cover atirada ao lixão da ofensa. A senhorinha letrada (sim, já não era nenhuma jovem inexperiente imberbe) achou por bem acocorar-se no chão de um dos banheiros da Assembléia e jorrou com gosto sua uréia, mesmo com dois sanitários com vaso branco, água limpa e portas bem à sua frente. Flagrada em cena tão educativa por auxiliar de limpeza, que lhe questionou a razão do ato, dona professora não titubeou. Disse-lhe, com ares de quem se sente a bala que matou Kennedy, que fez, sim, o nº 1, e se a moça a importunasse, ela iria fazer o nº 2. Disse mais: a auxiliar teria obrigação limpar os dois, pois quem mandou não estudar?
SENTA LÁ - No mesmo dia em que o depoimento em vídeo da auxiliar de limpeza com esse conteúdo assombrava em alguns telejornais de Salvador, a Globo local exibiu uma entrevista com um aluno da rede pública, há 100 dias sem aula. Perguntado sobre o que estaria fazendo nesse período, o garoto resumiu sua condição no que se refere àquilo que o estado lhe oferece. Disse que ficava olhando o caderno, com a mente vazia. Resumo da ópera: na Bahia, bem remunerado pelo Estado é o professor de ponta, professora faz nº 1 e nº 2 no chão de órgão público e considera que auxiliares de limpeza são subalternas e têm obrigação de limpar seus detritos e os jovens, se depender da educação que recebem, não passarão de zumbis com mentes vazias. E os marxistas embolorados certamente acham que a culpa disso tudo é da Carminha global, que aliena as massas e não as estimula a pensar e a emprenhar a mente. Ah, tá. Senta lá, professor de ponta.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 22 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 14 de julho de 2012

Teleanálise | "Por que opção de criança pobre ao trabalho é roubo ou prostituição?"

Malu Fontes

Diferentemente do ‘Na moral’, de Bial, anunciado com estardalhaço pela Globo como um programa inteligente e na prática um saco de vento chinfrim, o já consolidado Profissão Repórter, conduzido por uma das unanimidades da casa, Caco Barcelos, embora espremido na grade, pouco ou nada divulgado e sem tempo, sempre consegue em meio a todas as essas agruras, tirar leite de pedra. Duas edições recentes do programas foram aulas de bom jornalismo sobre temas invisíveis, aqueles que a imprensa pouco dá atenção e o telespectador menos ainda.  

Criança transportando carrinho na feira. Crédito: Reprodução G1/Profissão Repórter

Logo após a confissão do assassinato do empresário Marcos Matsunaga pela mulher, Elize, e com o propósito de evidenciar o quanto a cobertura de crimes passionais e de gênero, ou de quaisquer formas de violência doméstica, por parte da imprensa, obedece, sim, sempre, a vieses de gênero e de classe, o Profissão Repórter levou ao ar um programa sobre casos semelhantes e invisíveis na imprensa de homens e mulheres que mataram ou que morreram em circunstâncias de passionalidade semelhante e não mereceram uma linha nos jornais nem um segundo na TV. Ou seja, se os envolvidos são ricos, de classe média, brancos, famosos ou apenas se vivem em grandes centros urbanos e desfrutam de modos de vida privilegiados, a garantia de uma cobertura ampla, irrestrita e que dura dias nos telejornais é certa. Já se os envolvidos são homens e mulheres pobres que vivem como ratazanas escondidos na pobreza de suas vidas de quinta e habitando favelas aonde as câmeras não chegam ou em zonas rurais do chamado Brasil profundo, a televisão sequer toma conhecimento.
ESQUARTEJAMENTO - O tema desse programa específico era ilustrar quão dessemelhante é a cobertura dos crimes tidos como com grande potencial de midiatização e aqueles envolvendo casais miseráveis, independentemente do que dizia ou diz a legislação após a Lei Maria da Penha. Barcelos e seus pupilos mostravam que, na mesma semana do esquartejamento na mansão suspensa de luxo dos Matsunaga, inúmeras marias e josés pobres de marré deci na periferia de São Paulo também mataram e morreram em circunstâncias passionais. Mulheres pobres que mataram companheiros ainda mais lenhados mofavam nas delegacias encarceradas sem sequer terem tido ainda a possibilidade de contato com um parente e muito menos com um defensor público, já que advogado para ouvi-las e às suas razões nunca terão.
CASTANHA QUENTE - Outra edição digna de aplausos foi ao ar na última terça-feira, abordando o drama de milhares de crianças brasileiras que trabalham trocentas horas por dia para sustentar suas famílias, a si mesmas e sob o aplauso, principalmente da sociedade que as cerca. Um dos elementos que sempre chama àtenção nas abordagens jornalísticas sobre o trabalho de crianças é o bordão repetido por pais que defendem a importância do trabalho de seus filhos e, coincidentemente, também repetido por muita gente boa que vive muito bem e que não sabe o que é colocar seus rebentos para trabalhar descascando castanhas torradas ainda quentes, catando mariscos ou arrastando pesados carrinhos de compras em feiras livres, cenas comuns na infância pobre do Nordeste. Todos têm um argumento de defesa na ponta da língua: ‘ah, mas é melhor a criança estar trabalhando do que roubando, do que pegando no que é alheio ou se prostituindo’.
Ora, como bem enfatizou o Profissão Repórter da última terça, quem foi que estabeleceu esta lógica perversa segundo a qual toda e qualquer criança pobre só tem essas duas escolhas: o trabalho ou o roubo, no caso dos meninos, ou a prostituição, no caso das meninas? O discurso, incorporado acriticamente pelos pais, para quem colocar os filhos para trabalhar nos primeiros anos de vida é prêmio e proteção, não permite compreender que crianças tratadas com normalidade pelo mundo não precisam trabalhar cedo e nem por isso se tornam ladrões nem prostitutas. Vão para a escola.
 
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 15 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

domingo, 8 de julho de 2012

Teleanálise | "Na moral? Desligue a TV e vá ler um livro. Mas volte."

Malu Fontes

Nas últimas semanas, não apenas o telespectador, mas o leitor de jornais, de sites, o dono de qualquer conta de e-mail, usuário de redes sociais e qualquer brasileiro que não esteja em Marte vem sendo bombardeado com saraivadas de informação emitidas com potência de míssil publicitário pela Rede Globo sobre as estreias de Gabriela, Fátima Bernardes e Pedro Bial. A divulgação é tão massiva que o público fica sabendo delas mesmo involuntariamente, mesmo que não tenha o menor interesse em ver tais atrações. E a Globo, quando se trata de jornalismo de umbigo, ou seja, de transformar em pauta seu próprios produtos, é mais eficiente que milagreiro.


Programa "Na moral", que estreou na Globo no último dia 5. Foto: Artigolandia
SACO DE VENTO - Nesta quinta, Bial estreou o seu “Na Moral’, anunciado aos quatro ventos como um programete cabeça, para discutir em profundidade temas decolados e com convidados e atrações idem. A primeira edição foi um assombro do que a TV é capaz de dizer e fazer para convencer o público médio de que usa verniz quando, na verdade, oferece madeira de demolição corroída de cupim. O programa, antes de tudo, exige uma maratona de teimosia do público, pois, para chegar a ele, era preciso esperar as peripécias peripatéticas do casamento do parlapatão Cadinho em Avenida Brasil, passar pela Grande Família, arranhar os ouvidos com a baianidade caricata prosódica do elenco de Gabriela e finalmente deparar-se com o saco de vento de Bial.
NO PAU DO GATO - Dizendo-se um programa de debate, Na Moral é, como se deve esperar de debates na TV aberta, pílula de farinha fast food disfarçada de conversa cabeça. Na estreia, o programa já disse o quanto está disposto a brincar de circo. Num tapete com ares de persa fake da 25 de março, colocou um elenco improvável mas apropriadíssimo para esse tipo de atração: um professor de filosofia, Luiz Felipe Pondé, hoje o intelectual mais badalado da mídia eletrônica e de revistas ditas antenadas, e já chamado no Twitter de Caco Antibes da filosofia, por suas posições arrasadoras sobre o politicamente correto e sobre tudo o que diz respeitos aos ditos fracos e oprimidos. Ou frascos e comprimidos, como prefere Rita Lee; uma gostosa, desbocada e decotadíssima, Maria Paula, agora se reivindicando psicóloga, com nada a dizer sobre tudo a partir do seu batom carmim (a sua pérola da noite foi confessar que, ao invés de cantar ‘atirei o pau no gato’, prefere mesmo é se atirar no pau do gato (sic)) e um professor com trejeitos de cientista maluco para fazer exatamente o papel do freak circense: Antonio Carlos Queiroz, o autor da Cartilha do Politicamente Correto, segundo ele censurada pelo então presidente Lula. Queiroz usava uma boina quadriculada que não ficaria bem na TV nem na cabeça de um inglês com cachimbo e parecia, com uma caneta baratinha na mão, estar em cima de um caixote na praça, vociferando contra os impropérios cometidos contra Tia Nastácia, o Saci e não sei mais quem.
Aliado a isso, Alexandre Pires bancando um DJ que não tocava nada, instalado num cenário hype, ilustrado com grafismos, objetos vintage e um livro vermelho de arquitetura, para dar um ar descolado, claro. Ah, e tinha ainda um ineditismo: a primeira platéia completamente muda da TV Brasileira. Mas é preciso confessar: mesmo muda e imóvel, fica mil vezes melhor na fita que a espalhafatosa e inacreditável platéia collor block desocupada de Fátima Bernardes. Já Bial, cada vez que aparecia e começava a falar em close, dava a nítida impressão que iria anunciar com os teasers de sempre o eliminado do dia do BBB. E o mais engraçado: com tanta gente e um assunto anunciado como tão sério, a ditadura do politicamente correto e o assédio sexual e moral no trabalho, o tempo era inexistente: meia hora. Descontado o tempo dos intervalos comerciais, o tempo de um cochilo, já que passava da meia noite.
AÇOUGUE - Sim, na TV aberta, a receita para um debate profundo e cabeça é juntar uma fauna, um apresentador fazendo o tipo gatão de meia idade, durar meia hora, não deixar ninguém dizer nada que ultrapasse a faixa dos segundos e terminar como tudo termina na cultura de massa: no mercado das carnes. Ao final, atores vestidos de macaco e um açougue de mulheres de biquínis exíguos, metros de bunda, trocentos mililitros de peitos e coxas que fazem as mulheres horti-fruti parecerem sílfides, pagodeavam rebolizantes no vídeo.
O melhor do primeiro Na Moral foi a deixa possibilitada pela trilha sonora de encerramento. Os créditos do programa subiram ao som de Falcão, o ícone pop do brega kitsch, entoando ‘homem é homem, menino é menino e viado é viado”. É mesmo. E TV é TV, entretenimento em pílulas aceleradas que divertem anunciando que debatem. Quer debater ou aprender alguma coisa? Recupere o mantra engraçadinho que a MTV tinha há tempos: desliga essa TV e vai ler um livro. Mas volte, pois, na moral, quem gosta de profundidade é escafandrista ou os interessados nas técnicas de propulsão do Pré-Sal.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 07 de julho de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com