Diferentemente do ‘Na moral’, de
Bial, anunciado com estardalhaço pela Globo como um programa inteligente e na
prática um saco de vento chinfrim, o já consolidado Profissão Repórter,
conduzido por uma das unanimidades da casa, Caco Barcelos, embora espremido na
grade, pouco ou nada divulgado e sem tempo, sempre consegue em meio a todas as
essas agruras, tirar leite de pedra. Duas edições recentes do programas foram
aulas de bom jornalismo sobre temas invisíveis, aqueles que a imprensa pouco dá
atenção e o telespectador menos ainda.
Criança transportando carrinho na feira. Crédito: Reprodução G1/Profissão Repórter |
Logo após a confissão do
assassinato do empresário Marcos Matsunaga pela mulher, Elize, e com o
propósito de evidenciar o quanto a cobertura de crimes passionais e de gênero,
ou de quaisquer formas de violência doméstica, por parte da imprensa, obedece, sim,
sempre, a vieses de gênero e de classe, o Profissão Repórter levou ao ar um
programa sobre casos semelhantes e invisíveis na imprensa de homens e mulheres
que mataram ou que morreram em circunstâncias de passionalidade semelhante e
não mereceram uma linha nos jornais nem um segundo na TV. Ou seja, se os
envolvidos são ricos, de classe média, brancos, famosos ou apenas se vivem em
grandes centros urbanos e desfrutam de modos de vida privilegiados, a garantia
de uma cobertura ampla, irrestrita e que dura dias nos telejornais é certa. Já
se os envolvidos são homens e mulheres pobres que vivem como ratazanas
escondidos na pobreza de suas vidas de quinta e habitando favelas aonde as
câmeras não chegam ou em zonas rurais do chamado Brasil profundo, a televisão sequer
toma conhecimento.
ESQUARTEJAMENTO - O tema desse programa específico era ilustrar quão dessemelhante é
a cobertura dos crimes tidos como com grande potencial de midiatização e
aqueles envolvendo casais miseráveis, independentemente do que dizia ou diz a
legislação após a Lei Maria da Penha. Barcelos e seus pupilos mostravam que, na
mesma semana do esquartejamento na mansão suspensa de luxo dos Matsunaga,
inúmeras marias e josés pobres de marré deci na periferia de São Paulo também
mataram e morreram em circunstâncias passionais. Mulheres pobres que mataram
companheiros ainda mais lenhados mofavam nas delegacias encarceradas sem sequer
terem tido ainda a possibilidade de contato com um parente e muito menos com um
defensor público, já que advogado para ouvi-las e às suas razões nunca terão.
CASTANHA QUENTE - Outra edição digna de aplausos foi ao ar na última terça-feira,
abordando o drama de milhares de crianças brasileiras que trabalham trocentas
horas por dia para sustentar suas famílias, a si mesmas e sob o aplauso, principalmente
da sociedade que as cerca. Um dos elementos que sempre chama àtenção nas
abordagens jornalísticas sobre o trabalho de crianças é o bordão repetido por
pais que defendem a importância do trabalho de seus filhos e, coincidentemente,
também repetido por muita gente boa que vive muito bem e que não sabe o que é
colocar seus rebentos para trabalhar descascando castanhas torradas ainda
quentes, catando mariscos ou arrastando pesados carrinhos de compras em feiras livres,
cenas comuns na infância pobre do Nordeste. Todos têm um argumento de defesa na
ponta da língua: ‘ah, mas é melhor a criança estar trabalhando do que roubando,
do que pegando no que é alheio ou se prostituindo’.
Ora, como bem enfatizou o Profissão Repórter da última terça, quem
foi que estabeleceu esta lógica perversa segundo a qual toda e qualquer criança
pobre só tem essas duas escolhas: o trabalho ou o roubo, no caso dos meninos, ou
a prostituição, no caso das meninas? O discurso, incorporado acriticamente pelos
pais, para quem colocar os filhos para trabalhar nos primeiros anos de vida é
prêmio e proteção, não permite compreender que crianças tratadas com
normalidade pelo mundo não precisam trabalhar cedo e nem por isso se tornam
ladrões nem prostitutas. Vão para a escola.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e
Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 15 de julho
de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com
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