sábado, 30 de julho de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "As bestas, suas causas e a imprensa na encruzilhada"

Malu Fontes


Malu Fontes, professora e jornalista
Quando um homem psiquicamente perturbado entrou naturalmente em uma escola pública do Rio de Janeiro e, lá dentro, disparou durante minutos intermináveis, matando 12 crianças/adolescentes e suicidando-se em seguida, viu-se, ouviu-se e leu-se, nos e sobre os meios de comunicação, toda a sorte de avaliações sobre o fato e sua cobertura. Em relação à televisão, a crítica mais frequente feita por parte do senso comum era a de que, dando tanta publicização ao caso, veiculando sem parar tantos aspectos do caso, equivalia a estimular que outros desatinados transformassem suas fantasias de morte em ato, pois, no fundo, mais do que a crueldade insana que praticam, o que os move é o desejo de se tornarem personagem midiáticos pelo fato. E ninguém há de negar a publicidade 'espontânea' que a cobertura do 11 de setembro representou para a Al Qaeda e seu líder, Osama Bin Laden.


islamista - Há uma semana, quando o norueguês Anders Behring Breivik explodiu prédios do governo no Centro de Oslo, e com toda a facilidade e tranquilidade do mundo seguiu imediatamente para uma ilha nas proximidades e fuzilou mais de 100 jovens, matando 76, um lettering da CNN na Europa anunciava repetidamente, como num cartaz luminoso na Times Square, as duas palavras malditas preferidas hoje pelo mundo dito civilizado, associando-as a um possível suspeito: terrorista islâmico. O ocidente parece ter corticalizado a equação de que, se hay terror e morte, hay um islâmico envolvido. O assassino não era o outro islâmico, mas um cidadão norueguês, um cidadão típico do país, um terrorista cristão que não está sozinho no que pensa em sua ideologia de extrema direita. 


No caso de Realengo, como os terroristas islâmicos ainda não andaram circulando por aqui e fazem parte de um imaginário alheio e distante, a equação corticalizada, nas ruas e na imprensa, é outra. Sempre com uma tendência irrefreada a politizar tudo o que é trágico e depositar na conta abissal e sem fundos da (in)segurança pública, o que não faltaram foram jornalistas, imediatamente após o assassinato coletivo na escola, a lançar diagnósticos de efeito em manchetes impressas e nas escaladas dos telejornais: 'massacre traz à luz a falta de segurança nas escolas'. Como se um radical de qualquer causa medonha disposto a matar coletivamente fosse algo previsível na rotina de qualquer política pública de segurança no mundo. Embora se saiba muito bem o tamanho do buraco da segurança pública no Brasil, dizer que o massacre de Realengo traz à tona a falta de segurança nas escolas do país é tão sensato quanto seria afirmar, agora, que o assassinato coletivo na Noruega trouxe à tona a insegurança pública nas ruas de Oslo. Casos como esses se vinculam muito mais à complexidade e imprevisibilidade do comportamento humano e quase nada à temática da segurança pública.


DATENA E CNN - A questão, no que se refere à imprensa diante de casos como o de Oslo, de Realengo ou de outro semelhante em qualquer lugar do mundo, em que homens impulsionados por comportamentos de bestas decidem transformar em ato suas causas mais irracionais, vai muito além das interpretações ligeiras que confundem o terror com islamismo, por  exemplo, ou impulsos psicopatas com falta de segurança pública. Nesse aspecto, o lettering inicial da CNN sobre o suspeito do massacre em Oslo e a indignação gritada de Datena contra a falta de segurança na escola de Realengo se equivalem, ambos filhos do mesmo diagnóstico precipitado de planície.


O lugar da imprensa em casos como esses, é delicadíssimo, sob perspectivas éticas, sociais e filosóficas. Nos dois casos, os assassinos tinham uma causa prévia, manifestos de páginas e páginas que não dizem coisa com coisa e durante anos investiram suas energias, vidas e dinheiro em um projeto de assassinato coletivo. A função da imprensa é informar, narrar para a opinião pública, tudo o que ocorre no espaço social, dando-lhe o máximo de informações para que esta possa formar seu próprio ponto de vista. Pelo menos deveria seria assim em condições ideais. Mas, por outro lado, os autores desses episódios deixam claro que seus atos só fazem sentido, para eles próprios, se forem divulgados, anunciados, narrados e inscritos em escala midiática. Uma vez que a transformação das causas tortas desses insanos em publicidade em escala global, quando transformadas em ato, matando pessoas, pode estimular seguidores igualmente doentes, qual deve ser o lugar da imprensa para além da encruzilhada ética entre mostrar e omitir? Resposta mais fácil será apontar quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha.


PERUCA - Não muito longe dessa encruzilhada, situa-se a cobertura da morte,
praticamente anunciada de véspera, de Amy Winehouse. Pais zelosos ficam fulos de raiva com a cobertura da vida e da morte da cantora inglesa, por considerar que ela é um péssimo exemplo para os jovens e acusam a mídia de glamourizar a dependência química, ao dizer que a moça era uma romântica desamparada que não se conformava com o mundo fútil da fama e das aparências. De novo, a Geni que atende pelo nome de imprensa, fica na berlinda, um lugar do qual não sairá nunca. Mesmo porque, quase sempre quando sai, é por força de governos ditatoriais que tutelam suas populações decidindo previamente o que elas devem saber. Bem ou mal, genericamente, o que a imprensa diz todos os dias é mais ou menos o seguinte, numa tradução pra lá de rasa: o mundo é hostil. Bem vindo a ele, pois é o que tem pra hoje. E cada um tem medo do que pode: eu, por exemplo, tenho medo, e muito, é da imagem de Ana Maria Braga usando uma peruca para travestir-se de Amy e chamando-a, por desinformação mesmo, de Amy Whitehouse.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 31 de julho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 24 de julho de 2011

Teleanálise | "A turma de Bolsonaro contra o quiosque de Sueli"

Malu Fontes

Malu Fontes, professora e jornalista
Acabou a festa e a alegria no quiosque de praia de Sueli, em Insensato Coração. Lá, todos os gays do Rio de Janeiro são lindos, jovens, malhados, bem sucedidos, felizes e tanto moram quanto trabalham a poucos metros da praia, com expedientes de trabalho que parecem começar só após as 10 e terminar antes das 16, pois só assim para todos eles encontrarem-se todas as manhãs e fins de tarde para tomar sol, bater uma bolinha e paquerar no quiosque, todo decorado com bandeirinhas do arco-íris gay. Tudo ia muito bem, tanto com a clientela segmentada de Sueli quanto com o merchandising social da causa anti-homofóbica adotada pelos autores da novela, capitaneados por Gilberto Braga, ele mesmo homossexual do tipo que nunca viveu em armários e que mantém há décadas um casamento sólido com o fotógrafo Edgar Moura Brasil.

Há muito tempo que todo novelão das oito que se preza tem que ter um merchandising social, uma bandeira ativista em favor de algum tipo de vítima, pois a indústria do bem está cada vez mais na moda, apesar de as criacinhas pobres da África continuarem com fome mesmo com tanta gente boníssima querendo ser igual ou santificar  Angelina Jolie e Bono Vox. No campo das causas sociais adotadas pelas novelas, a própria Globo já passeou por dependência de drogas, alcoolismo, racismo, violência contra a mulher, imigração clandestina, pedofilia, violência contra idosos e inúmeros outros temas. Em Insensato Coração, era a vez da bandeira anti-homofóbica, o que vinha mais do que em boa hora, pois o povo parece se informar mais com telenovela do que com livros e revistas, já que não os lê, e o Brasil continua com índices alarmantes de assassinatos e agressões físicas e morais contra homossexuais. E bastou a um pai do interior de São Paulo abraçar um filho de 18 anos para ter a orelha decepada por talibãs locais que viram na cena um diagnóstico de homossexualidade.


DENTADURA - Quem, afinal, poderia ser contra o levantamento de bandeiras a favor de causas e grupos sociais que são vítimas de preconceito, violência, sofrimento ou tudo isso junto? Quando se trata de abordar a questão homossexual, parece que muita gente é contra, sim. Quisera o otimismo dos defensores da diversidade que Jair Bolsonoro fosse uma exceção. Ele é tão somente o mais barulhento e falastrão. Talvez mais danosos que o deputado caricato sejam aqueles que escondem sua intolerância com o silencio, pois sequer têm coragem de dar a cara a tapa para serem confrontados.

Pois bem. Parece que a entidade que atende genericamente pelo termo família brasileira, representada majoritariamente tanto pela nova quanto pela velha classe média, ainda não está disposta a trazer para a sala de casa, nem sob a forma superficial de narrativa ficcional teledramatúrgica, a questão homossexual. Como a Rede Globo precisa manter a liderança de audiência para continuar vendendo para essa familia anúncios publicitários de selante de dentadura, leite em pó, geladeira, carro e absorventes, uma luz vermelha foi acesa para os autores de Insensato Coração. E por falar em anúncio, a mocinha dessa novela, a pretexto de divulgar um absorvente que causaria menos reação à vagina, o anuncia como um produto que faz "bem à pele" e o exibe com uma fluidíssima lavanda verde metaforizando o fluxo sanguíneo menstrual. Sim, é verdade também que, antes deste que optou pelo verde, todos os outros absorventes mostram na TV que o fluxo menstrual é azul. E sim, a família brasileira há anos acha natural ver na TV que a mulher publicitária menstrue azul. Mas duas pessoas do mesmo sexo namorando?! Ora, isso não é nem um pouco natural. E quem há de lhe contrariar?

BEIJO GAY- Daqui para a frente, não se verá mais viv'alma gay no quiosque de Sueli ou gays sendo gays em qualquer outro lugar de Insensato Coraçao, muito menos qualquer personagem criticando violência  contra homossexuais. De gayzice, só sobrarão as gagues de Ronie, o fiel escudeiro, confidente e personal tudo da doidinha Natalie Lamour. Mas gay caricato na TV é redundância, chuva no molhado, todo mundo sabe.

A ordem para fazer desaparecer de uma vez tanto a bandeira colorida quanto a discursiva da causa gay da novela das nove  foi dada diretamente pelo alto comando da Globo aos autores e diretores há uma semana, conforme noticiou em primeira mão a Folha de S. Paulo. Aos autores, diretores e elenco foi pedido ainda silêncio absoluto sobre as novas diretrizes em entrevistas à imprensa. Como parte dos telespectadores brasileiros desenvolveu uma fixação em torno da perspectiva de ver em uma telenovela o primeiro beijo gay masculino, a frustração foi antecipada. Nesse aspecto, merece destaque uma aparente contradição, carregada de significados culturais, ocorrida recentemente na cena jurídica brasileira. Coube ao Poder Judiciário, especificamente ao Supremo Tribunal Federal, comumente considerada como uma esfera atrasadíssima em relação aos comportamentos sociais do seu tempo, permitir que fosse ao ar, no programa mais canônico e um dos mais engessados da TV brasileira, o primeiro beijo gay masculino da televisão brasileira.

O fenômeno, para quem não se deu conta, foi veiculado em um telejornal, e não em uma telenovela, considerada como um produto de maior flexibilidade para a abordagem de temas delicados ou cercados de tabus. Desta vez, quem diria, a novela ganhou bolor e o Supremo agiu com arejamento e adequação à vida como ela é do lado de fora dos cenários do Projac. Goste-se ou não, o fato é que a turma de Bolsonaro parece mil vezes menos hipócrita que o pedido feito pelo comando da Globo aos autores de Insensato Coração. Essa rodada, os bolsonarianos venceram. E a Rede Globo, com seu Big Brother onde se pode tudo e mais um pouco, mostra, assim, que continua a mesma senhora hipocritamente austera dos tempos em que mandou explodir um shopping center na novela Torre Babel só para matar e excluir da trama um casal de lésbicas. Como agora, a emissora o fez também a pedido da família brasileira e para preservar a audiência conservadora pela qual seus anunciantes lhe pagam volumes astronômicos de dinheiro. Gilberto Braga deve estar em cólicas.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 24 de julho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA;maluzes@gmail.com

domingo, 17 de julho de 2011

Teleanálise | "O telefone da menina morta"

MALU FONTES


Aqui e em outros espaços, não são poucas as críticas que circulam diariamente sobre os efeitos produzidos e pretendidos pela comunicação de massa. No que se refere à televisão brasileira, parece haver consenso quanto ao fato que a qualidade da produção é de um esmero técnico inquestionável, sobretudo quando comparada à de outros países. E em termos de promover o entretenimento do público, pode-se dizer que a TV brazuca bate um bolão. Entretanto, como entretenimento e qualidade de conteúdo jamais serão obrigatoriamente sinônimos, não são poucos os produtos da televisão brasileira que, embora tenham bom desempenho de público, têm uma estrutura estética (e até ética e moral) que ora beira o freak, ora a mediocridade sensacionalista repetitiva e tediosa que parece inspirar-se na idade da pedra do veículo.


Embora se diga isso e mais um pouco da televisão brasileira e de outros suportes que compõem a mídia nacional, incluindo jornais impressos, revistas, sites e afins, é fato que raríssimas vezes um deles foi flagrado fazendo algo irremediavelmente feio e grave em nome da alavancagem da audiência e da venda. Quem tem uma memória razoável deve lembrar vagamente que Gugu Liberato um dia inventou um falso líder do PCC, organização criminosa de São Paulo, e enfiou-lhe um capuz preto de tricô, a pretexto de dar um furo de “showrnalismo”. Era mentira, mas os únicos prejudicados com a invenção foram o programa e o apresentador, ridicularizados.


FURO - Mais recentemente, em 2009, um deputado estadual do Amazonas que tinha um desses programas mundo cão na TV em Manaus foi denunciado por encomendar mortes, para exibir corpos em sua atração televisiva. Fazia isso, ao que se apurou, para não perder audiência nos dias em que ocorria a fatalidade de não haver um único cadáver em Manaus. Encomendava a morte de traficantes. Foi julgado, condenado, saiu do ar e depois morreu, mas de morte morrida. E agorinha mesmo uma caricatura dessas que dizem tudo sobre nada na TV inventou e mandou anunciar, dizem, a própria morte de mentira, como uma estratégia para dar ibope a si mesmo em um quadro de fofoca que estava prestes a estrear na emissora para a qual trabalha e que, inclusive, deu ‘o furo’ da falsa morte.


Fora isso, apenas casos isolados e tão bizarros quanto estes citados marcam mais pela picardia e pelo amadorismo das besteiras que são ditas, publicadas ou mostradas do que pelas consequências nefastas que produziram sobre a história da imprensa e dos sistemas de mídia no Brasil. Referindo-se à mídia do outro lado do mundo, no entanto, durante as duas últimas semanas, a televisão e a imprensa escrita no Brasil acompanharam um marco vergonhoso e a um só tempo comemorável envolvendo um mesmo veículo de comunicação.


Pelas razões que já se sabe, entre elas que televisão gosta mesmo é de fluxo, velocidade e superfície e tende a não levar muito jeito com profundidade e complexidade quando se trata da cobertura de assuntos que não falem muito de perto ou diretamente aos intestinos e às vísceras do senso comum, as emissoras de TV aberta no país cobriram de forma sucinta o fechamento do jornal impresso inglês The News of The World, após uma existência de 168 anos. O fechamento, após um escândalo causado pela descoberta de que o jornal grampeou, ao longo dos últimos anos, centenas de telefones de gente famosa, vítimas de crimes, criminosos, famílias de ambos e até dos soldados mortos na Guerra do Iraque e de suas famílias, escancarou aquilo que quem se interessa por informação há muito já sabia: a Inglaterra é capaz de produzir a pior e a melhor imprensa do mundo.


LIXO - O jornal, que vendia como pão quente apostando todas as fichas na revelação da vida privada de autoridades, criminosos, vítimas, famosos e nem tanto, um dos braços mais rentáveis de um dos mais influentes e poderosos barões da mídia no mundo, o australiano Rupert Murdoch, caiu em desgraça com a Justiça e o Governo quando se descobriu que seus repórteres violaram a caixa postal do telefone celular de Milly Dowler, uma menina de 13 anos, assassinada. Com a revelação, pela imprensa concorrente, do crime de violação e espionagem do telefone da garota, abriu-se para Murdoch uma caixa de pandora de onde não param de sair desgraças e prejuízos financeiros de milhões de dólares, envolvendo não apenas o fechamento do jornal, mas perda de receita publicitária em outros veículos de seu grupo e impedimentos de aquisição de ações da maior empresa de TV a cabo inglesa.

A questão, portanto, é: embora a vida do vizinho pareça ser sempre boa, do seu lixo saem coisas tão podres quanto a de quem o inveja. O complexo de mídias no Brasil tem seus defeitos e não são poucos, mas a ribanceira de Rupert escancara a velha tese de que não somos nem melhores nem piores que os outros. Especificamente sobre a televisão brasileira, isso não resolve o problema da qualidade do conteúdo brasileiro, mas para quem diz que sequer consegue vê-la por esta razão, talvez valha pensar que o buraco nem é tão mais fundo assim: quem tem ou teve oportunidade de ver a TV dos outros sabe que lixo é lixo em qualquer lugar, mas está longe de ser privilégio da TV brasileira.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e
professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 17 de julho
de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 9 de julho de 2011

Teleanálise: "A queda da vez"

Malu Fontes                     


Nem bem o humor da presidente da República tivera tempo para restabelecer-se da queda de Antônio Palocci de seu ministério no primeiro semestre de governo, eis que outra comédia de erros tem lugar no Planalto, e com cores ainda mais fortes e poluídas. Com uma cabeleira literalmente mais negra que a asa da graúna, emerge na tela nossa de cada dia a figura soturna do ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, um tipo de aparência semelhante à dos vilões de meia idade das novelas mexicanas no SBT. Perto do lamaçal em que Nascimento e seus comparsas de partido submergiram em menos de uma semana, as águas turvas de Palocci parecem agora equivaler a um lago de cisnes.


Se o país se assustou com a geometria do aumento patrimonial de Palocci, de 20 vezes em quatro anos, o que dizer da matemática miraculosa que se operou sobre o patrimônio de Gustavo de Morais Pereira, que aumentou 86.500% em dois anos, conforme repetiam em coro todos os jornais e telejornais da semana? Comparado ao de Gustavo, o ritmo da multiplicação do patrimônio de Palocci parece um punhado de moedas guardáveis em um cofrinho de barro em forma de porco.
Apenas dois anos após a criação, com um capital de apenas R$ 60 mil, a empresa Forma Construções, do rebento do ministro, acumulou um patrimônio de R$ 50 milhões.


CANASTRÃO - Em um país em que as estradas ou são como queijo suíço, a ameaçar a vida dos motoristas, ou estão sendo pedagiadas a intervalos geográficos cada vez mais curtos, o fato de uma farra de corrupção e cobrança de taxa de sucesso a empreiteiras operar dentro do Ministério dos Transportes torna o escândalo político da vez ainda mais abjeto. Como se fosse pouco ler toda a sorte de desmandos atribuídos ao senador-ministro agora caído da segunda função, na quarta-feira aparece uma cereja no bolo: um vídeo obtido pela revista Istoé, compartilhado com todas as emissoras de TV e postado no site da revista, mostra a conversa mole de Nascimento negociando obras com um deputado do Maranhão, antes deste oficializar sua mudança de partido, do PDT para o PR, o partido do ministro, um das bases de apoio do governo no Congresso.


O tom mafioso da conversa é claro: é só mudar de partido que haverá mais dinheiro, travestido de orçamento de obras milionárias de interesse público mas que dificilmente saem do papel. E, quando saem, custam 10 vezes mais e cumprem 10 vezes menos das promessas constantes no orçamento inicial. Para tornar a cena ainda mais politicamente pornográfica, quem intermediava a negociação da compra de novos parlamentares para o PR, na cena do vídeo e na rotina do Ministério dos Transportes, era o impagável Valdemar Costa Neto, outro canastrão de vida e fôlego longos na história recente da corrupção brasileira, um dos réus do mensalão e cujo enriquecimento com dinheiro público já obteve a proeza até de ir parar nas colunas sociais, quando sua ex-mulher, uma socialite paulista, Maria Cristina Mendes Caldeira, num desses acessos de ex, contou o que sabia e mais um pouco. Neto acabou renunciando ao mandato para não perder os direitos políticos e, claro, na próxima eleição conquistou o mandato de volta, graças à benevolência dessa categoria sempre tão compreensiva da sociedade brasileira, o eleitorado.


MAFALDA E O PIG - O fato é que a queda do segundo ministro em menos de um mês não soa nem um pouco agradável para Dilma Roussef, sobretudo porque é bom não esquecer que ambos caíram de podre não por iniciativa, mão firme ou vigilância bem sucedida do próprio governo, mas porque a imprensa denunciou. A multiplicação dos dinheiros de Palocci veio à tona em manchete da Folha de S. Paulo em maio e os episódios de corrupção explícita foram tornados públicos pela revista Veja da semana passada.


Como diz a precoce Mafalda em uma das tirinhas geniais de Quino, deve ser “horrível bater em alguém que tem razão”. Ou seja, a parte do governo e da própria imprensa que reivindica para si a alcunha de blogueiros progressitas podem até repetir a cantilena de que a Veja e a Folha fazem parte do Partido da Imprensa Golpista, o tal PIG, mas não há como negar que a ribanceira em que Palocci e Nascimento colocaram o Governo Dilma não foi invenção de porquinhos nas redações dos dois veículos para desestabilizar o governo.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 10 de julho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 3 de julho de 2011

Teleanálise | "A morte inventada"

Malu Fontes



Nesse cenário e nessa escala jamais experimentados de multiplicação de produtores de informação, somente os ingênuos correm o risco de acreditar que, em boa parte do que se publica haja qualquer coisa parecida com comprometimento, ética, apuração e checagem, seja sobre fatos, pessoas ou coisas. Se até bem pouco tempo tinha-se um aspecto que pode ser considerado negativo, em que poucos polos produtores de informação diziam poucas coisas para muita gente, hoje a lógica invertida não gera apenas louros a serem comemorados.


Ao mesmo tempo em que é verdade que os velhos polos de emissão e recepção da informação se desmancharam e que isso não é ruim, é também fato que, hoje, todo e qualquer um diz o que quer e como quer. Qualquer um reivindica para si o status de produtor de conteúdo e informação e, se, do outro lado se tem uma recepção e um leitorado pouco crítico e advertido diante do que vê e lê, tudo, ou quase tudo, corre o risco de virar um circo de invencionices e espetáculos perecíveis, quase um lixo informativo.


A velocidade com que a convergência dos meios informativos parece querer convencer seu telespectador, leitor, receptor a crer que fatos importantes não param de acontecer nos quatro cantos do mundo e que o sistema de mídias está ali justamente para contar e mostrar tudo o que é importante e que todos devem saber, não passa de um saco de vento. Não há informação suficiente, de qualidade e relevância, para abastecer tantos suportes informativos na velocidade do tipo ininterrupta e em tempo real que os suportes de informação falsamente prometem.


ANTAS QUE PINTAM - Assim sendo, como todos os espaços devem ser preenchidos, preferencialmente com coisas facinhas para prender o telespectador mediano e não perdê-lo para a leitura rápida dos portais (inventou-se também que texto na internet tem que ser muuuuito curto, embora não se saiba com quem isso foi combinado), a televisão, para ficar só no exemplo dela aqui (embora os jornais impressos estejam indo cada vez mais atrás da mesma fórmula, a da forma que mais desinforma que informa), tira da sua cartola oca coisas do outro mundo: um polvo premonitório especializado em placar de futebol, uma gambá vesga, bundas com vida própria, mulheres horti-fruti, gente que chora sangue, e até, acredite-se, antas que pintam quadros e expõem em museus e galerias (antas aqui equivale a animais que pintam e não a artistas plásticos antas, que fique claro), conforme anunciaram Sandra Anemberg e Evaristo Costa no meigo Jornal Hoje.


Mas como tudo sempre pode piorar e piora, a cereja do bolo podre da televisão brasileira foi ao ar na última semana, quando um desses tipos que se multiplicam como erva daninha no subsolo do mundo das celebridades de quinta teve sua morte anunciada com pesar pela própria emissora para a qual trabalha e, pasme-se, um dia antes da estreia de um quadro do tal fulano no programa que teve a (in)felicidade de dar o furo da morte de tão grande talento do jornalismo de entretenimento brasileiro. Sim, esse segmento existe e é fortíssimo. Na esfera regional, aqueles que se arriscam nessa especialidade não têm muito futuro, pela estreiteza do cenário, e têm como risco ficar para sempre condenados a noticiar em sites pouco acessados as estripulias nada interessantes dos chamados ‘famosos do bairro’, aqueles subfamosos que frequentam colunas sociais impressas e eletrônicas, se acham, mas ninguém além de suas rodinhas sabe quem é.


SEBORREIA - Na terça-feira, a caricatura que atende pelo nome de Amin Khader, um tipo exemplar do ‘ famoso quem’, famoso por ser amigo de Romário, das mulheres frutas e de meia dúzia de celebridades que batem ponto nos programas de auditório e no elenco de apoio das novelas, foi anunciada como morta pela Rede Record. O curioso da notícia, falsa, e, diz-se, inventada pelo próprio não-morto e pela emissora para promover um quadro de fofocas do dito cujo, foi o fato de boa parte do consumidor de informação de TV, e sobretudo das redes sociais, só ter tomado conhecimento da existência do sujeito justamente quando o próprio resolveu inventar que morrera.


Na idade mídia é assim: a subcelebridade precisa tão desesperadamente de álibi para aparecer que, sem nenhum talento ou trabalho para mostrar, tem que adotar as estratégias mais insanas. Inventar e anunciar a própria morte elevou Khader ao estrelato por um dia em todos os programas de TV especializados em transmitir direto da seborreia do mundo, nas redes sociais, no ranking mundial do twitter e multiplicou os resultados de busca com seu nome no Google de 20 mil para mais de 200 mil. E a coisa dá tão estranhamente certo que até quem desconhecia o tão ilustre personagem e sua história bizarra até a leitura deste texto acaba de ser apresentado ao tal.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 03 de julho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com