domingo, 26 de fevereiro de 2012

Teleanálise | "Nostalgia, saudosismo e pragmatismo"

Malu Fontes

O tempo passa, o tempo voa e o Carnaval de Salvador, contrariando os prognósticos dos pessimistas, continua numa boa. Todos os anos, nos meses, semanas e dias que antecedem a festa, os pessimistas começam a espalhar seus diagnósticos de corvo, sempre ancorados na tese de que será uma carnificina de violência, coisa de deixar os bárbaros com complexo de inferioridade. Para sorte geral de todos, costumam errar feio.  Esse ano, a campanha do medo ganhou contornos colossais e não foi por falta de razão. A greve da Polícia Militar deixou um rastro de quase 180 mortos. Em qualquer cidade do mundo que não esteja em guerra, esse é um número assustador.

Na televisão, uma outra cantilena também se repete, embora com um outro roteiro. A maioria dos artistas estrelados promete novidade do tipo reinventar a roda, as personalidades mais rodadas e com vez e voz na imprensa parecem sofrer de uma dor crônica por não terem mais as festas seguras e perfumadas do Baiano de Tênis e sempre há alguém defendendo um projeto maravilhoso de um carnaval democrático, onde todos voltem a ser pierrôs e colombinas numa avenida sem mijo e violência. Sente-se muito, claro, mas o passado não se reinventa e projetos que tais nunca sairão do papel, pois quem os defende só tem um elemento, que, em tempo de indústria cultural, pouco ou nada vale: o desejo.

ARTISTAGEM

Como os saudosistas e melancólicos dos carnavais cujos formatos não voltam não têm bala na agulha para mudar a engrenagem do Carnaval como parecem desejar e as autoridades incumbidas de formular políticas culturais públicas para o Estado e para cidade estão mais preocupadas é com o abadá colorido que ganham de brinde da artistagem cinco estrelas, se há atores sociais capazes de mudar o Carnaval, seja lá o que isso signifique, são os donos do negócio: os artistas mais poderosos, os empresários de blocos de trio e os patrocinadores, cujo poder de fogo está concentrado basicamente nas cervejarias. E como perguntar não ofende... Por que esses segmentos estariam interessados em fazer um Carnaval muito diferente desse que está aí se esse modelo está a anos luz de dar prejuízo?

Neste sentido, a televisão, na transmissão do Carnaval, é mais ilustrativa do modo como as coisas funcionam do que no jornalismo cotidiano. Coisa rara é ver, seja na transmissão da própria festa ou nas edições dos telejornais das emissoras no período, alguém reclamando ou insatisfeito. Diante dos debates que costumam acontecer sobre os rumos da festa nos dias que a antecedem e logo após o término, há de se perguntar: onde estão os insatisfeitos entrevistados nas ruas com o formato da festa? Parece ser mais difícil uma emissora de televisão encontrar um deles do que um mortal comum encontrar-se com alguém que tenha em casa um aparelhinho do Ibope, desses que medem a audiência.

ENCURRALADAS -  E por falar em formato, quem está no sal diante do Carnaval e sua transmissão são as emissoras de TV. Com o surgimento e o crescimento do You Tube fica cada vez mais claro que as emissoras terão que se reinventar para transmitir a festa, encurraladas que estão em formatos há muito engessados. Ora com gente da cidade que parece amigo íntimo dos artistas mandando beijinho ou quase pedindo, ora importando elencos célebres do Rio-São Paulo que, se por um lado podem alavancar a audiência, por outro dizem coisas capazes de causar vergonha alheia na audiência local. Mas, quem se importa. As quartas-feiras de cinzas estão aí para mostrar que todos saíram ganhando.



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 26 de fevereiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Teleálise | "O caso Eloá e o lugar da imprensa"

MAlu Fontes

Alguns programas sensacionalistas de televisão cometeram tanto estardalhaço diante de crimes ocorridos no Brasil nos últimos anos que acabaram por encurralar não apenas a si ou os seus corvos travestidos de apresentadores e repórteres. Encurralaram toda a imprensa, colocando-a praticamente como cúmplice de alguns crimes cometidos com grande repercussão e agora, por conta desse fenômeno, há grandes chances de a imprensa ser responsabilizada, a levar em conta algumas teses que se esboçam no Senado para o próximo Código Penal Brasileiro, pelo tamanho da pena que venha a ser aplicada em alguns julgamentos de pessoas cujos crimes tiveram ampla repercussão midiática. 
Imprensa X Caso Eloá. Foto: Dono da Notícia

Não deve ser tratado como coisa à toa o detalhe importantíssimo, sobretudo para o cruzamento entre crime e imprensa no Brasil, que foi o fato de a advogada de defesa do assassino de Eloá Pimentel, Lindemberg Alves, de convocar seis jornalistas para comparecer como testemunhas durante o julgamento do rapaz. A estratégia, amplamente divulgada na imprensa, era a de desviar pelo menos parte da culpa do rapaz pelo crime e pulverizá-la sobre a imprensa, por ter dado ampla cobertura ao episódio.
CATIVEIRO E TELEFONE - Se no caso Von Richthofen e no caso Nardoni, apenas para citar dois episódios espetacularizados, boa parte dos programas televisivos que cobrem essa natureza de fatos por pouco não incitavam a população a fazer justiça com as próprias mãos contra os acusados logo após os crimes, no caso Eloá Pimentel a coisa foi ainda mais grave, com largos passos ribanceira abaixo na ética jornalística. Ok, ok, podem dizer que Sonia Abraão não é exatamente um exemplo do que se pode considerar como representante da imprensa. Mas o fato é que a apresentadora, seja lá se em nome do jornalismo ou do que quer que seja, entrevistou Lindemberg Alves em pleno cativeiro, ao vivo, por telefone, enquanto o rapaz mantinha quatro pessoas em cárcere privado, armado, ameaçando matar a todos.

A cena nada tem de jornalismo policial. E embora pareça ficção, nem na novela das nove seria crível. Na novela, aliás, há um repórter intrépido de um tal Diário de Notícias que vive apenas para cobrir o subsolo dos tapetes da vilã Teresa Cristina, uma moça rica malvada até a medula e cujo segredo que norteava a trama era uma coisa do outro mundo: a moça, riquérrima, é filha de uma empregada doméstica. Daí a tornar-se assassina para esconder esse segredo, foi um pulo. Mas, voltando a Sônia Abrão, os coleguinhas e Lindemberg: a imprensa, na época, se aproximou tanto do cenário do crime e da interlocução com o criminoso que durante a semana os jornalistas envolvidos na parte feia daquela cobertura devem, ou deveriam, ter se sentido um pouco no banco dos réus junto com o assassino, independentemente de terem sido convocados ou não pela defesa do rapaz e de terem comparecido ou não, já que não eram obrigados por lei.

ESQUISITA - O fato é que Abraão inaugurou esse formato fofo de entrevistar ao vivo criminoso durante a prática do crime. Ao mesmo tempo em que era entrevistado, o tal via-se na televisão da casa onde mantinha quatro pessoas em cárcere privado, ameaçadas de morte todo o tempo sob a mira de um revólver e cujo desfecho o país inteiro acompanhou literalmente ao vivo. O criminoso teve acesso a tudo, até a entrevistas de especialistas em segurança pública dando orientações e consultoria sobre como a polícia deveria agir. Que a advogada do rapaz no julgamento é meio esquisita, todo mundo que acompanhou do caso durante a semana mais que desconfia. Mas dizer que a imprensa comportou-se como uma dama ética no caso Eloá são outros quinhentos.

Parte da imprensa brasileira tem exagerado tanto na cobertura de crimes ainda na fase de denúncia, processo, inquérito que o feitiço já ameaça virar-se contra o feiticeiro. Imbuída do aprimoramento do Código Penal Brasileiro, visando criar leis adaptadas às mudanças sociais, sempre muito mais rápidas e dinâmicas que o mundo lento das leis, uma comissão de juristas notáveis criada pelo Senado está discutindo se a cobertura “abusiva e degradante” feita pela imprensa poderá reduzir a pena de réus condenados, como forma de compensação moral.

VANGUARDISMO - O que a comissão discute é o seguinte: se o acusado já foi tão linchado pela imprensa, então a Justiça pode dar um desconto e reduzir a pena, já que parte já foi expurgada no primeiro julgamento, o da imprensa justiceira. Em linguagem jurídica e bonita, a justiça poderá levar em consideração se o abuso à imagem do acusado não lhe representou uma sanção moral tão grande que merece um atenuante no momento de fixação da pena.

Pelo jeito, a defesa de Lindemberg ao tentar responsabilizar a imprensa, junto com Lindemberg, pela morte de Eloá, teve foi um quê de vanguardismo. Sua advogada está só um pouquinho adiantada em querer dividir a culpa do crime do seu cliente com os jornalistas corvos que lhe deram régua e compasso durante toda a ação criminosa, atrapalhando completamente a ação policial e interferindo na confusão mental de quem já demonstrava estar longe do equilíbrio e do bom senso. No julgamento, a defesa apresentou nada menos que um total de duas horas de imagens e abordagens de programas telejornalísticos da época, para refrescar a memória de quem adora fazer malabarismo sobre a tragédia alheia.

PRECEDENTES - A tese da possibilidade de redução da pena nos casos de exagero da imprensa, apresentada à comissão de notáveis do Senado, formada por 17 juristas e discutida sem nenhuma rejeição, é mais ou menos a seguinte: o juiz poderá considerar a cobertura da imprensa para determinar uma pena, assim como na legislação vigente já se considera a motivação do crime e a conduta do acusado. Sobre o tema de sempre, a censura, os notáveis juram que está longe deles querer cercear a imprensa em sua liberdade de abordar o que quer que seja da forma como quiser. Sim, mas não vamos nos queixar depois dos usos feitos dessa abordagem. O caso Eloá deve criar precedentes.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 19 de fevereiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Teleanálise | "O Partido da Imprensa Golpista (PIG) tornou-se aliado"

Malu Fontes

O Jornal Nacional acabou com a liderança de Marco Prisco sobre a paralisação da Polícia Militar da Bahia em seu 9º dia de greve e redefiniu radicalmente os rumos do movimento. Imediatamente após o telejornal de maior audiência do país, em sua edição da noite de quarta-feira, veicular gravações de ligações grampeadas, obtidas com exclusividade via governo, ressalte-se, entre o líder da greve, Marco Prisco, e outras lideranças do interior do Estado articulando o fechamento de rodovias baianas, e de policiais do Rio de Janeiro com lideranças políticas cariocas sobre a estratégia de usar a greve da Bahia como mecanismo de deflagração de uma paralisação nacional, a greve, o motim, a paralisação, ou seja lá que nome seja dado ao impasse que escancarou a violência em toda a Bahia, mudou completamente de feições.


Diante do movimento em si, das suas consequências políticas (para o Governo do Estado e para a imagem da Polícia Militar da Bahia), e, sobretudo das consequências sociais, com cerca de 140 homicídios em pouco mais de uma semana, saltava aos olhos algumas avaliações de autoridades sobre o começo do desfecho na quinta-feira. Não foram nem dois nem três parlamentares e autoridades públicas a elogiar o desfecho do imbróglio e a afirmar em bom som diante dos microfones dos telejornais o quanto todas as negociações foram conduzidas com sensatez, fazendo com que tudo terminasse bem e sem derramamento de sangue (sic).


OS ‘BAIRROS MAIS...’ - Como assim, ‘sem derramamento de sangue’? Ou estão todos completamente imbuídos de um esforço político cínico de negar o que se assemelha a tons de uma chacina de grandes proporções e estão banalizando índices de violência inaceitáveis, ou a expressão derramamento de sangue só teria sido digna desse nome se o sangue fosse dos militares, dos mais favorecidos ou se desse-se em bairros de classe média? O que houve senão um oceano de sangue quando uma cidade matou em menos de uma semana mais de 14 dezenas de pessoas?


Embora os telejornais tenham veiculado e atualizado cotidianamente essa contabilidade macabra durante a greve, poucas dessas vítimas parecem ter nome, endereço, profissão. São os sempre PPPs assassinados de sempre, só que em escala aumentada durante a greve: os pretos, pobres, da periferia. Nesse contexto, também foram ilustrativas as entrevistas publicadas na Folha de S. Paulo quinta-feira, no mesmo espaço, de Fátima Mendonça, a primeira dama do estado, e de Cláudia Leitte. Não é que a sensatez estava mais presente nas falas da segunda? Para Fátima, os assassinatos foram todos nos bairros ‘mais...’. Assim mesmo, com reticências. Para o resto, ou os bairros ‘menos...’ a palavra usada foi ‘tranquilo’.


LABORATÓRIO - Diante desses números, custa a crer, mas houve uma parcela da classe média que se considera do bem, amiga da pobreza, que, sentada, abancou-se nas redes sociais e protestou contra o sensacionalismo da imprensa por divulgar números tão alarmantes, como se estes fossem inventados nas redações. Achando pouco, anunciaram que fizeram uma espécie de antropologia participativa na periferia, um laboratório, diga-se. Pegaram seus carros e anunciaram superiores que fizeram rondas, da orla ao subúrbio ferroviário, da Graça à Suburbana, e nada de anormal viram, além de muita tranquilidade, é claro.


Ô, mas para essa observação participativa ser crível, já que para essas pessoas a TV não é crível por preferir sensacionalizar, não seria mais honesto pegar um buzu na Estação da Lapa, na Estação Pirajá ou um trem no Terminal da Calçada? Sim, pois as pessoas intranquilas, assustadas, assassinadas, primeiro, não ‘passam’ de carro por esses lugares onde os antenados fizeram seus laboratórios de observação: ficam lá, moram lá; segundo, suas casas não estão assentadas sobre os trechos de fluxo do trânsito onde trafegam os carros. A população amedrontada não mora na faixa de tráfego da Suburbana, mas em ruas internas onde os observadores não entraram, em becos, vielas, casas e barracos sem muro ou proteção, a maioria com portas frágeis e não raro têm na vizinhança pequenos mas ferozes exércitos armados em guerra uns contra os outros por pontos de drogas.


PIG - O outro aspecto ilustrativo da greve foi a observação dos modos como giram as engrenagens do poder e da política partidária antes e depois de conquistarem o poder. Todo e qualquer brasileiro sabe que o Partido dos Trabalhadores construiu boa parte de sua história atuando com estardalhaço nos bastidores de greves. Na Bahia, essa foi a primeira que o partido experimentou um movimento de grandes proporções e consequências estando no lugar de vidraça. Todo e qualquer leitor bem informado também sabe que, desde que chegou ao poder, o PT e seus seguidores que pensam e agem com o fígado e transformam toda e qualquer notícia envolvendo alguém do partido em coisa pessoal, em corpo a corpo desqualificador de quem fala ou escreve, dividiram a imprensa brasileira em duas categorias separadas por um grand canyon moral, ético e ideológico: a imprensa progressista, santa, ética, de um lado e o PIG, o partido da imprensa golpista, do outro, com os diabos que manipulam informações e só publicam mentiras para desestabilizar as lideranças petistas. Sim, os bastiões do PIG para quem divide a imprensa sob essa clivagem são a revista Veja e a Rede Globo de Televisão e, nesse contexto, o Jornal Nacional é tido como o legítimo filho do diabo.


É ou não é ironia que, tendo em mãos a nitroglicerina que eram as gravações feitas via grampos autorizados pela Justiça nas quais as lideranças da paralisação da Polícia na Bahia articulam o fechamento de rodovias, a inteligência dos órgãos de segurança de um governo do PT tenha preferido entregar de bandeja o furo nacional justamente para o mais autêntico dos produtos, tido como o filho legítimo do PIG? Nos bastidores das notícias, a emissora do bispo, e mais ainda os blogueiros bem abençoados chamados de progressistas, devem ter se sentido feridos n’alma com essa traição. Ou seja, audiência é audiência e desde que o PIG possa ser transformado em um baita aliado para tirar governos ditos de esquerda do desconfortabilíssimo lugar de vidraça, nos unamos a ele. Mas que a pergunta é válida, ah é: se a Globo é tão amaldiçoada pela esquerda, que chega à patetice de viver pregando ‘Um dia sem Globo’ nas redes sociais, por que justo a ela foi dada a primazia e o privilégio do furo das conversas grampeadas de Marco Prisco? Democratização da informação, entrevista coletiva, mesmo sob embargo de algumas horas que fosse... Para quê, se o que se quer mesmo é a audiência segura?

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 12 de Fevereiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Teleanálise de Malu Fontes

JOÃO E O ‘METRÔZINHO’ DA ALEGRIA
Enquanto o prefeito se diverte, a cidade sofre com o descaso. Foto: Correio24 horas

A pouquíssimos dias do Carnaval e com a cidade em plena alta temporada turística de verão, com múltiplas festas e ensaios a cada esquina, paradoxalmente Salvador poucas vezes esteve tão feia, mal cuidada e pouco receptiva para os milhares de turistas que recebe. A infra-estrutura da orla, antes acusada de estar mais para uma estética favelizada, desandou de vez após a derrubada de todas as estruturas que ofereciam algum serviço aos banhistas nas praias sem que absolutamente nada tenha sido colocado no lugar.

As emissoras locais de televisão não cansam de mostrar, a cada matéria que veiculam sobre as praias em Salvador, os níveis de improviso que hoje imperam na orla. Se as velhas barracas de praia eram acusadas de serem feias, sujas e poluentes, agora a coisa está tão medonha quanto. Ou pior. O que se vê, para além de mesas de plástico encardidas, sombreiros puídos e lanches preparados e servidos em circunstâncias que fazem o diabo revolver as vísceras, são toneladas de lixo espalhadas por todas as praias de Salvador, enfeiando até mesmo um dos principais cartões postais da cidade, a praia do Porto da Barra, onde até um riacho de esgoto recentemente fez companhia ao lixo na areia. Sem falar no lixo jogado ao mar que se acumula no fundo da água.

UM CONSULADO - Simultaneamente à feiúra vista na cidade, seja a olho nu ou através das matérias que diariamente a imprensa impressa e televisiva veicula, um fenômeno político chama atenção: a decadência da gestão do prefeito João Henrique Carneiro, um saltador de partidos políticos que em seu segundo mandato resolveu abrir mão oficiosamente do cargo e se transformar em um dublê de muito mau gosto. 

O dar de ombros do prefeito é tamanho que há muito deixou de dar entrevistas sobre os problemas da cidade e quando aparece é com factóides que merecem mais ovos que os atirados contra o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, quando da ida à missa pelo aniversário de 458 anos da cidade de São Paulo. Recentemente o prefeito faz-de-conta resolveu fazer um barulhinho na imprensa com uma iniciativa risível se ele não fosse tão desprovido de graça: escreveu uma carta a Hillary Clinton, secretária de estado dos Estados Unidos no Governo Barack Obama pedindo nada menos que um consulado dos Estados Unidos em Salvador. Se isso não é factóide, o que seria? Enquanto isso, os serviços públicos mais básicos, como assistência à saúde, limpeza urbana, transportes e educação parecem estar sob colapso e o prefeito finge não ter nada a ver com isso. Quando a imprensa questiona o caos, o prefeito escala seus subalternos doublês para dizer asneiras solenemente.

A desaparição do prefeito das questões graves e feias que a cidade enfrente é tão absoluta que ele sequer se deu à obrigação de cumprir um dos compromissos mais formais do mandato: abrir os trabalhos da Câmara de Vereadores para 2012 na última quarta-feira. Uma Câmara, aliás, composta de tantos ausentes quanto o próprio prefeito. Uma vereadora que atende pelo nome fofo de ‘Tia' Eron, apontada como a mais ausente da legislatura, preferiu, no dia da reabertura, tomar um cafezinho esperto na sala destinada a esse fim, quem sabe para testar o poder de ressurreição física da cafeína para o trabalho. 

Outra vereadora famosa, Léo Kret, esteve ausente, mas por um motivo que seu eleitorado deve considerar razoável: está confinada num trio elétrico onde se encena o primeiro reality show genuinamente baiano. Para quem não viu o Trio Reality, na TV Aratu/SBT, recomendam-se nervos estéticos fortes. Especula-se, inclusive, que a equipe de produção do programa tem de trabalhar mais que dobrado, pois se 10% do que a vereadora do sexo masculino diz no reality for ao ar, o mandato da moça-moço vai para as cucuias por falta de decoro. E vale lembrar que, para perder um mandato de vereança em Salvador por falta de decoro, a indecorosidade deve ser do arco da velha. Diz-se também que para além e aquém de Léo Kret, as estripulias sexuais cometidas (e jamais mostradas, por conta do horário) pelo povo do Trio Reality fazem a casa do BBB parecer o Castelo Ratimbum.

GATALHO - Quanto ao prefeito e sua indisfarçável decisão de cruzar braços e pernas quanto aos problemas da cidade muito antes do fim do seu mandato, sua última aparição digna de registro se deu em um vídeo singelo que há uma semana circula nas redes sociais, mostrando-o animadérrimo com a mulher recém-conquistada, Mrs. Paraíso, formando um trenzinho, ou melhor, um metrozinho da alegria (para não perder a piada com o inacabável metrô de Salvador) para lá de constrangedor ao som de uma trilha sonora que, para a população, tem tudo a ver com os personagens envolvidos na dancinha: ao som de um dos hits de Cláudia Leite cujo versinho singelo entoa “safado, cachorro, sem-vergonha”, o prefeito e a consorte Paraíso encenavam um animado trenzinho bailante no Festival de Verão na semana passada. Sim, prefeito, a imagem é uma preciosidade, sobretudo levando em conta seu novo figurino, composto por camisas justérrimas, algo meio slim, no melhor do melhor da linha ‘gatalho’.

Enquanto isso, a TV exibe e repete trocentas vezes por dia campanhas publicitárias institucionais da Prefeitura de Salvador, com um refrão cínico dando conta de que, durante a gestão atual, essa mesma, a de João versão Paraíso no trenzinho, dá para ver o que mudou na cidade. Para melhor, claro. Um chefe de Executivo municipal que leva a terceira capital do país para a decadência que Carneiro levou deveria ser proibido por lei de mentir publicitariamente em anúncios dando conta das qualidades de sua gestão. Que mudança, cara pálida? Que as coisas mudaram, mudaram, mas para pior. Recomenda-se ao prefeito um luau com a nova primeira dama no Terminal Marítimo de Plataforma, onde há uma semana uma equipe da TV Bahia foi surpreendida com um roubo. Enquanto jornalistas da emissora gravavam uma matéria sobre a insegurança, a decadência e a completa falta de estrutura do lugar, o motoboy que leva a fita para a emissora com o material gravado teve o capacete roubado. Dá pra ver que mudou, né? Se isso é estar na melhor, pô, o que é estar na pior, né Salvador? 

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 05 de Fevereiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com