domingo, 29 de janeiro de 2012

Teleanálise | "Pinheirinho e o alçapão de pobres"

 MALU FONTES 
Famílias expulsas do Pinheirinho. Foto: Carta Capital
 
No mês em que a cidade de São Paulo comemorou 458 anos, as cenas vistas na TV associadas à mais rica metrópole brasileira não foram de festa. As imagens vinculadas a São Paulo em janeiro, nos telejornais, foram as dos rotos e esfarrapados em confronto com a Polícia na Cracolândia, região Central da cidade, e as cenas de guerrilha urbana de milhares de famílias na favela de Pinheirinho, na Grande São Paulo, embora já em São José dos Campos. Sim, também houve imagens da chuva de ovos atirados contra o prefeito, Gilberto Kassab, na ida à missa de aniversário da cidade.

Pinheirinho abrigava cerca de 6.000 pessoas em um terreno de 1,3 milhão de metros quadrados, pertencente à massa falida de Naji Najas e invadida em 2004. Independemente das questões de justiça e injustiça que podem ser invocadas em relação à decisão judicial de reintegrar a posse do terreno, expulsando os moradores e destruindo absolutamente todas as moradias, três aspectos chamaram àtenção na cobertura telejornalística durante a semana. Uma delas é repetida à exaustação sempre que uma calamidade atinge contingentes populacionais pobres no Brasil, o que equivale a dizer que é algo rotineiro nas manchetes jornalísticas: o que acontece com o exército de gente pobre 24h após as hecatombes que acontecem em suas vidas?


CUSPIDOS - Onde estão, hoje, os desabrigados do Morro do Bumba, em Niterói (RJ), dos deslizamentos da região serrana, também no estado do Rio, das enchentes do ano passado em Alagoas, das dezenas de favelas coincidentemente incendiadas em São Paulo ao longo de 2010 e 2011? Do mesmo modo, onde estarão no futuro as seis mil pessoas expulsas de Pinheirinho, sem tempo de sequer pegar roupas e documentos? Levando-se em conta as multidões de pobres que praticamente todos os meses são notícia na condição de vítimas de contingências, a maioria delas vinculadas à sua condição sócio-econômica, associada ao crônico desmando político no país, tem-se a impressão que o Brasil dispõe de um alçapão para fazer desaparecer os pobres que são cuspidos ainda mais radicalmente da fronteira mínima da dignidade em que vivem quando são vítimas de uma tragédia.


No telejornalismo, o roteiro é o mesmo: o contingente de desamparados é mostrado, as lideranças políticas são entrevistadas e garantias do poder público são dadas, anunciando que toda a assistência será dada às vítimas. O telespectador já sabe que isso não é verdade. Pouquíssimos dias depois é como se essas pessoas  desaparecessem por mágica, no tal alçapão de pobres, e são substituídas logo a seguir nas manchetes por outro grupo em situação ainda pior. No episódio de Pinheirinho, um segundo aspecto a chamar àtenção, e que também costuma se repetir em casos semelhantes de desocupação por ordem judicial e força policial, são as razões que levam o poder público a permitir ou fazer vista grossa à formação de um bairro durante oito anos e, quando milhares de pessoas estão com suas vidas aparentemente estruturadas, arranca-se do chão em menos de 24 horas tudo o que foi permitido em quase uma década.


MULHERES RICAS - Por fim, tanto quanto a pancadaria entre moradores e policiais na favela e no entorno de Pinheirinho, sooaram mais que cínicas as declarações de representantes do poder público aos repórteres de TV diante das acusações dos moradores de que a Polícia derrubou as casas com todos os móveis dentro, não permitindo que os donos retirassem seus pertences. Os argumentos dados à imprensa para que isso possa ter acontecido fazem as Mulheres Ricas soarem como samaritanas humanitárias da Cruz Vermelha: foi oferecida a todos os moradores a possibilidade de lacrar e etiquetar todos os seus móveis e dar um endereço para onde se queria que eles fossem enviados por um serviço da Prefeitura de São José dos Campos. Se não pediram o serviço nem deram o endereço de entrega...  Ah, tá! Certamente disponibilizariam um depósito privado e cuidadoso de móveis, talvez localizado nas cercanias de Alphaville, com garantias anti-cupim e anti-ferrugem.


Se fosse mesmo real a oferta desse serviço tão cuidadoso de etiquetagem e depósito oferecido pela Prefeitura para os pertences existentes dentro da casa dos expulsos, por que, então, a mesma Prefeitura deixaria milhares de pessoas, incluindo velhos, crianças e doentes amontoados em abrigos insalubres, improvisados em escolas públicas cheias de cocô de pombo e sem condições de higiene? E milhares de pessoas abrigadas por um padre numa igreja sem estrutura de banheiros, cozinha e vazos sanitários?


CACHORRO - Esse país ou esse mundo andam mesmo muito estranhos. Uma população fica revoltada e quer pena de morte para uma histérica que agride um cachorro, uma prefeitura oferece etiquetagem mentirosa de móveis para milhares de pessoas que têm suas casas destruídas pela Polícia e, ao mesmo tempo, ninguém parece se importar com gente apanhando e morrendo na rua de qualquer metrópole e muito menos com famílias que perdem tudo e são obrigadas a viver como formigas, esmagadas umas sobre as outras em depósitos improvisados de gente.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 29 de Janeiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 22 de janeiro de 2012

Teleanálise | "A Polícia no Projac"

MALU FONTEs

Nem bem estreou e o Big Brother Brasil 12 já chegou dizendo a que veio: convocou todo o país para falar de um suposto estupro na tal casa e todo mundo atendeu à convocação, a imprensa junto, é claro. Há uma semana que não se fala em outra coisa no País. Daniel estuprou ou não estuprou Monique? Pouco importa saber quem é um ou outro. Basta saber que são BBBs para que aquilo que um fez com o outro, ou contra o outro, passe a ter relevância nacional. Quiçá, internacional, visto que o formato BBB é globalizado, vale lembrar.

Para se chegar a essa convocação  atendida majoritariamente por uma sociedade inteira, não se pode perder de vista, mais do que o assunto em si, a força desprogramada e incontrolável do fenômeno que já atende pelo nome de informação compulsória ou jornalismo compulsório. O fenômeno consiste no seguinte: mesmo que um determinado leitor não tenha absolutamente nenhum interesse num tipo específico de notícia, geralmente relacionada ao mundo das celebridades, ele saberá dessa notícia.


MORTO- Exemplos claros de notícias compulsórias: seja você quem for, se nas últimas semanas não tiver lido ou ouvido nada sobre o estupro do BBB, Luiza no Canadá e sobre Michel Teló, muito cuidado. Belisque-se, pois você deve estar morto. A consequência imediata da noticia compulsória é transformar o país num Fla-Flu, num Ba-Vi: uns são mortalmente contra o personagem objeto da notícia, outros doentiamente a favor e uma dúzia de silenciosos querem se mostrar intelectualmete superiores por se acreditarem fora do estádio apenas por ficarem rondando-o de soslaio na porta taxando os outros de imbecis.

Se houve estupro ou não na casa do BBB, exibido pela Globo apenas para os telespectadores que têm TV por assinatura e compraram o Big Brother 12 pay per view, a emissora, a Polícia, a Justiça e os envolvidos que deem ao episódio o tratamento que a lei determina. Estupro é crime e até onde de sabe o Código Penal não é flexível para contextualizações como o fato de ambos estarem trêbados com a anuência e estímulo de uma atração televisiva e do ato ter acontecido diante de trocentas câmeras. Embora Boninho, o eterno diretor do programa tenha insinuado queixas à lei que enquadra o estupro, considerando-a como "muito ampla", o fato é que estupro é estupro e não há meio termo.


Para além do que quer que seja que tenha ocorrido nas barbas da Globo e de sua tipificação ou não como crime, impressionou a flora e a fauna que vieram a público 'enriquecer' o debate. De 'blogueiros progressistas' que aproveitaram o coito global para puxar o saco do patrão atual e lavar mágoas com os Marinho, pedindo que o Governo Dilma cassasse imediatamente a concessão da Rede Globo como emissora de TV até empresários e agentes dos dois personagens envolvidos trocando acusações moralistas, racistas e sexistas, nenhum nicho de protestantes deixou de dar seu depoimento nas redes sociais desde o imbróglio do edredon.


POVO NEGRO - Sim, a repercussão se tornou maior que o fato e por mais que no dia do ocorrido Pedro Bial tenha resumido o que pode ter sido um crime sexual com um "o amor é lindo” e tenha explicado ao público a expulsão do acusado de estupro com um vago "comportamento inadequado", durma-se a Globo e os patrocinadores do BBB com um barulho desses feito pela fauna e flora na web. Quem quiser que acredite que os principais patrocinadores do programa fiquem extamente tranquilos com sua imagem junto ao público tendo investido mais de 100 milhões de reais e vendo suas marcas associadas a estupro. A emissora, por sua vez, teve um consolo e tanto. Se antes do 'estupro' a audiência do BBB 12 patinava na faixa dos 20 pontos, a pior de todas as edições, após o sexo supostamente não consentido o Ibope registrou um crescimento de 80% na audiência, que passou dos 36 pontos. Na fauna e flora já há o nicho que garante que o estupro foi forçado para inflar a audiência e que Daniel não passa de um vendido traidor do povo negro.



E já convocando o diabo para refestelar-se nos detalhes, vale lembrar que, tendo sido estupro de vulnerável, abuso sexual ou relação sexual consentida, é fato que, dado o estado de perturbação alcoólica do casal, jamais cogitou-se convidar a camisinha para meter-se sob o fatídico edredon. Aliado a isso sabe-se que fazer sexo sem proteção com um parceiro que nunca se viu na vida e cuja responsabilidade com o par é zero, sempre pode acabar, no mínimo, em duas roubadas: na contaminação por uma DST (Doença Sexualmente Transmissível) dessas que se tem que carregar para sempre, Aids incluída, ou numa gravidez indesejada.


ABORTO - Como perguntar não ofende, vale uma interrogação:  se foi mesmo estupro e a moça tivesse ficado grávida, o público, em se tratando do BBB, seria convocado a participar da decisão a ser tomada sobre o destino do feto? Sim, pois em caso de estupro o direito de abortar é assegurado por lei no Brasil. E as igrejas, evangélicas e católicas, já que agora são todas amigas do tipo unha&cutícula com a Globo, iriam todas se manifestar contra a opção do aborto,  como fizeram durante a campanha eleitoral? Ou quem sabe Boninho, o eterno diretor do programa, poderia encampar o nascimento do rebento para, uma vez nascido, mantê-lo para sempre aprisionado na 'Casa' e inaugurar outro reality na linha Truman Show?


Outra pergunta cabível em tempos de estupro transmitido ao vivo por pay per view: que tal nas próximas edições do BBB chamar o consultor e comentarista da Globo, Rodrigo Pimentel, para ensinar aos brothers e sisters como fazer para tomar todas e não correr o risco de estuprar nem ser estuprado na 'Casa' do Projac? Se ele vai até para a Rodoviária do Tietê no Natal ensinar aos nordestinos como não descuidarem-se das mochilas de costas para não atrair ladrão e às ruas para ensinar como as mulheres devem proteger a bolsa ao carregá-las... Convoca o Rodrigo Pimentel, Bial.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Teleanálise | "Dispersa, Cracolândia, que as eleições vêm aí"

Malu Fontes
  
Policiais e usuários em conflito na Cracolândia. Crédito: Nilton Fukuda/AE/R7
Depois de cerca de duas décadas tolerando ou fingindo não ver a multiplicação de usuários de crack e de outras drogas em seu centro, a cidade de São Paulo resolveu enfrentar o exército de morimbundos da cracolândia de uma hora para a outra e de uma maneira pouco eficente. E pelo andar da carrugem e do tamanho do barulho que se viu nos telejornais nas últimas semanas sobre o assunto, o enfrentamento continua não dando muito certo. Ao invés de prender os traficantes que abastecem a região e de oferecer tratamento para os zumbis humanos que circulam por lá, o que se fez foi tão somente deflagrar uma operação de dispersão dos chapados.

Ninguém em sã consciência e sem hipocrisia pode discordar de que o Centro de São Paulo há muito tempo vem requerendo alguma ação política, sanitária, de segurança pública e preferencialmente várias ações dessa natureza coordenadas para impedir que um pedaço urbano do país continuasse a viver sob um sistema de exceção quanto ao tráfico e ao uso de drogas. Ou seja, embora o trafico de drogas seja crime e seja, inclusive, responsável por um percentual gigantesco da população carcerária brasileira, na Cracolândia o tráfico é, há anos, praticado 24 horas por dia, sob a vista omissa de todas as autoridades, de todas as esferas.

FESTA DO CACHIMBO – No entanto, um dado importante e que parece não caber na cobertura dos telejornais acerca da ação da polícia na Cracolândia é a grande coincidência que há entre o fato de se ter adotado agora a tal dispersão dos usuários de drogas do local e a proximidade das eleições. Sim, as eleições para prefeito se aproximam e três personagens protagonistas da sucessão paulistana dariam um rim para poderem anunciar primeiro para os eleitores algo do tipo: quem acabou com a festa do cachimbo fui eu. Para Geraldo Alckmin, o atual governador do Estado de S. Paulo, do PSDB e Gilberto Kassab, o atual prefeito da cidade, do PSD, chegar às vésperas das eleições sem uma solução, maquidada e superficial que seja, para a Cracolândia, equivale a colocar azeitona na candidatura de Fernando Haddad, a carta do PT, de Lula, Dilma e de quem mais reza pela cartilha do grupo para o cargo de prefeito de São Paulo.

Diante da iminência de que o Governo Federal planejava, através do Ministério da Saúde, uma ação para implantar na Cracolândia, com o objetivo de turbinar o nome de Haddad como candidato à Prefeitura, o governador e o prefeito atuais precisavam correr, não necessariamente juntos, já que têm interesses diferentes no processo eleitoral, para não correrem o risco de deixar no eleitorado a impressão de omissão, caso o ministro Alexandre Padilha anunciasse antes algum plano para os usuários.

A pressa de Alkmin e Kassab foi tanta que a coisa se transformou numa tradução do dito popular segundo o qual o apressado come cru. Movidos pela astúcia de sair na frente do Governo Federal, fosse como fosse, as autoridades paulistanas colocaram de uma maneira desordenada a polícia na rua, sem nenhuma estratégia sobre o que fazer com os dispersos no momento seguinte, já que não tinha para onde encaminhá-los nem como tratá-los, dado o volume do grupo e o nível de complexidade do vício em crack. Sequer esperaram a inauguração do abrigo que estava sendo preparado pela Prefeitura para acolher os usuários, oferecendo-lhes tratamento, assistência social, psicológica e psiquiátrica durante o processo de abstinência e de ressocialização. A previsão de inauguração era a primeira semana de fevereiro. Agora, o carro já foi para a frente dos bois.

FRACASSO - Embora a TV não consiga mostrar e contar ao telespectador todos os detalhes envolvendo a operação na Cracolândia, os jornais impressos vêm contando todos os dias detalhes do arco da velha sobre os bastidores da ação, o que explica o considerado fracasso da medida. A venda de drogas na região continua a ocorrer, quem quis se internar não achou vaga no serviço público e boa parte não deixou de consumir, traficar ou viver na rua. Simplesmente o contingente se dispersou pelos bairros da imediações, o que mais arranhou a imagem dos governantes junto à população. Uma solução mesmo que mediana para o problema continua longe. De concreta mesmo, uma evidência: a medida foi tomada agora e desse modo apenas por conta das eleições para a Prefeitura de São Paulo, porque três partidos estavam um com medo de o outro fazer algo antes para ficar bem na fita com o eleitorado.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 15 de Janeiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com