Durante a semana, notícias tendo
como elemento central a banalização da morte nortearam as principais manchetes
dos telejornais internacionais, nacionais e locais. Sim, esses fenômenos são uma
constante no jornalismo, mas aqui e acolá episódios nos quais essa banalidade
se manifesta os hierarquizam de tal modo numa ordem de horror e non sense que ainda surpreendem.
Partindo do global para o local, nos Estados Unidos, no estado do Colorado, na
cidadezinha de Aurora, uma plateia de batmaníacos esfregava as mãos de
ansiedade para uma sessão de estreia do filme à meia noite, quando, no escuro,
irrompeu o imponderável. Uma saraivada de tiros. 12 mortos, 58 feridos e um
país de novo boquiaberto.
MARKETING
- Num país, os EUA, onde todas as naturezas de ações de marketing são
possíveis, numa cultura local do culto às armas de fogo na qual qualquer
moleque consegue comprar um arsenal de guerra sem qualquer dificuldade e numa
sucessão de casos em que adolescentes ou adultos jovens perturbados já inscreveram
uma longa história de violência, primeiro achou-se que os tiros não passavam
uma ação de marketing associada à estreia. Depois, houve uma correria às lojas
de armas da cidade para comprar mais e mais exemplares delas e, simultaneamente,
a imprensa do mundo repetiu a pergunta que faz sempre e para a qual nunca se
tem resposta objetiva e diante da qual todas as especulações malucas disputam
um lugar entre as possibilidades de explicação: por que esse fenômeno se repete
tanto nos Estados Unidos e como evitá-lo, já que a população não abre mão do
seu culto quase passional às armas e à liberdade de comprá-las sem restrições?
RATO - No
Brasil, a Polícia Militar de São Paulo chocou o país ao executar (pelo menos)
dois inocentes: um publicitário que não parou o carro à noite quando ordenado a
fazer isso e um jovem que fugiu com medo porque a carteira de habilitação
estava vencida. Além disso, matadores que não se sabe quem vêm barbarizando na
cidade nas últimas semanas, executando e chacinando sem que se saiba de quaisquer
razões e desfechos para tais crimes. Num outro episódio noticiado na imprensa
internacional, um jovem italiano que chegou à mesma São Paulo em um dia, para
morar e trabalhar, foi assassinado no dia seguinte, numa tentativa de assalto
frustrada no trânsito, em uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Veio
para o Brasil e morreu como um rato perseguido por exterminadores dispostos a
explodir o primeiro cérebro que encontram pela frente troca de um relógio ou um
celular.
FASCÍNIO
- Sim, o mundo, Brasil incluído, choca-se com jovens como o estudante de
medicina James Holmes, o auto-intitulado Coringa da sessão noturna de Aurora,
mas pouco se esforça para lembrar que a natureza da banalização da violência
pode até ser de ordem diferente, mas a nossa é tão banal e brutal quanto.
Quando contados os cadáveres de um em um, aqui mata-se/morre-se muito mais que
lá. A Polícia Militar de São Paulo, por exemplo, mata mais que toda a Polícia
dos Estados Unidos (e nos Estados Unidos). Por que o espanto com a matança dos
outros é maior do que com a nossa, a doméstica incluída? Por que a matança de
lá é a de um homem só, que, em surto assassino, revolve interromper a vida de
dezenas? Aqui, de um em um, os matadores matam muito mais, enquanto o brasileiro
olha horrorizado para a violência americana coletiva desses episódios, talvez
porque encontre neles um quê de fascínio hollywoodiano. Violência é violência,
assassinato é assassinato e cada país tem a sua forma banal de matar seus
cidadãos. O que faz de James Holmes um sujeito mais assustador que um assassino
anônimo que explode a cabeça de um motorista numa rua de São Paulo, querendo
apenas levar um objetinho para casa? Lá é loucura e aqui é pobreza e desigualdade?
Esses fenômenos não justificam a banalização da morte do outro. Nem lá, nem
aqui.
VIZINHO
- No terreiro local, uma quadrilha inicialmente descrita como formada por
quatro jovens de classe média e um deles considerado rico em qualquer
sociedade, divertiam-se roubando mansões num condomínio de luxo nos arredores
de Salvador, onde cada uma das cerca de 400 mansões custam entre um e 10
milhões. Entravam no espaço privilegiado e supostamente protegido por grades,
câmeras e seguranças graças ao apoio logístico de um dos integrantes da
quadrilha, morador do oásis desde criancinha. A razão dos assaltos, que
incluíam seqüestros relâmpagos e torturas psicológicas nas 10 famílias de
moradores vitimadas desde 2011, era banal: gastar o dinheiro com noitadas.
Segundo o delegado, os rapazes pagavam contas de até 15 mil numa única balada.
Os rapazes negam os cálculos. Dizem que eram só cinco mil por noite, em média.
Lá e cá, portanto, o que há em
comum na violência cometida é a gratuidade da ação, do comportamento de quem
mata, tortura, violenta, persegue e achaca, Polícia Militar incluída. No caso
dos condomínios horizontais de luxo, não deixa de ser curioso que 10 em cada 10
pesquisas feitas por pesquisadores do campo das ciências sociais apontam para
um detalhe que deveria intrigar quem investe milhões nessas mansões em nome do sonho
de viver feliz sob dois guarda-chuvas: a segurança e a liberdade. Um estudo
recente feito por uma pesquisadora da Universidade de Brasília mostra por A
mais B que praticamente a totalidade de atos delituosos, conflituosos e de
insegurança registrados em condomínios tem como autoria os próprios moradores.
A leitura dessas pesquisas deixaria boquiaberto quem sonha com os gramados, as crianças
brincando com portas abertas e a confiança plena nos vizinhos nos condomínios
de classe alta.
HASTA LA VISTA - A banalização do mal se
concretiza quando se come uma pipoca no cinema e um sujeito arranca-lhe da
poltrona para lhe matar; quando seu vizinho de porta do condomínio chama os
amigos para lhe seqüestrar apenas em nome do desejo de sair para entornar 10
mil em uísque, como repetiram os telejornais de Salvador durante a semana. É
como se esses sujeitos vissem nisso tudo uma brincadeira, como se quase piscassem
o olho após cruzar a fronteira do intolerável e dissessem às suas vítimas, como
vingadores ocos de um futuro bestial: ‘hasta la vista, baby’. E a referência
aqui não é o disco homônimo do U2, mas puro Schwarzenegger.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e
Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 29 de julho
de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com
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