sábado, 11 de novembro de 2017

A Fita Branca - Malu Fontes

Três acontecimentos bárbaros e tradutores do grau incompreensível a que pode chegar a intolerância de pessoas tidas socialmente como normais foram amplamente noticiados nos telejornais durante a semana. Nos três, a marca do ódio cego, burro, animalesco e indistinto por um outro a quem sequer o agressor conhece, sabe de quem se trata, se tem nome, passado, futuro, sonhos, planos, memórias, família, afetos, enfim, uma vida para trás e para a frente.

No fim de semana, em São Paulo, três rapazes foram brutalmente agredidos. Foram chutados, espancados e tiveram os rostos talhados por cacos pontiagudos de lâmpadas fluorescentes retiradas do lixo por cinco adolescentes, em plena Avenida Paulista. Os agredidos: rapazes em quem os agressores enxergaram signos de homossexualidade, razão considerada suficiente para despertar as agressões; os agressores: cinco garotos bem nascidos, o mais velho com 19 anos, bem criados, alunos de boas escolas privadas e com ódio a homossexuais, sentimento declarado explicitamente durante os ataques, sem motivos, segundo testemunhas.  

FAXINA DE GENTE - No Rio de Janeiro, dois rapazes homossexuais na faixa de 20 anos foram abordados, após a Parada Gay que ocorreu na cidade, por homens com farda do Exército e que se identificaram como militares. Foram ofendidos, xingados, agredidos e um deles levou um tiro na barriga só por ser quem era, por estar onde estava, pois não cometera uma infração sequer. Os militares simplesmente argumentaram que odiavam essa ‘raça’, referindo-se aos gays. Em Maceió, foi executado o 32º morador de rua, em menos de um ano. Ninguém foi preso ou está respondendo a processo pela faxina de gente que vem sendo feita nas ruas da cidade.  


O cardápio de manifestações de ódio chega aos borbotões pela TV: um garoto não gostou da nota baixa, no Rio Grande do Sul, e literalmente, quebrou a professora inteira. No trânsito, em Salvador, o motorista de uma BMW, ao ver os fundos amassados por um caminhão, encarnou o acertador de contas e, com uma daquelas pedras que a Prefeitura adora mandar pintar de branco para contrastar com a grama verde, enfrentou o caminhoneiro estilhaçando-lhe o vidro. O tal, por sua vez, desceu armado de um facão, perseguindo o opositor, produzindo cenas inverossímeis para a TV, captadas por câmeras de segurança existentes nas imediações do conflito. 

O mundo evolui financeiramente, cientificamente, tecnologicamente, mas o mau e velho homem continua o mesmo, entupido de conhecimentos e saberes, mas explodindo de ódio pelo semelhante. Diante das narrativas de violência por intolerância ao ‘outro’ difuso e do desrespeito por o outro que escolhe para a sua vida algo diferente daquilo que os fiscais da moralidade alheia apregoam como certo, o filme A Fita Branca, de Michael Heneke (quem gosta de narrativas óbvias e previsíveis, nem tente), ilustra como um clima de ódio pode fermentar-se entre uma sociedade até explodir, lá na frente, em manifestações bélicas explícitas. Não, não se está falando de violência urbana, do assaltante drogado, dos tiroteios entre Polícia e bandido, mas do ódio indiscriminado e primitivo, de gente contra gente, por razões as mais incompreensíveis, de gente contra gente apenas por não tolerar que o outro tenha modos diferentes dos seus de ser, estar e circular no mundo. É bom não banalizar a onda de preconceitos manifestada, sobretudo nas redes sociais na Web, por grupos de eleitores do sul e do sudeste contra os nordestinos, em consequência dos resultados das eleições presidenciais.


Pôster do filme A Fita Branca. Fonte: AdoroCinema


SARIGA E MERENDA - E por falar em eleições, no campo político dois episódios locais merecem ser associados: o presidente da União das Prefeituras da Bahia, Roberto Maia, advertiu durante a semana, em entrevistas, à imprensa, que, se o salário mínimo continuar a subir acima da inflação, conforme o governo está anunciando, isso levará as pobres prefeituras baianas a comprometer seus investimentos em favor de melhorias para a população, pois o reajuste inviabilizará o poder de gastos dos prefeitos nos municípios, nesses termos. Não diga, prefeito, que o problema que leva a quase totalidade dos municípios brasileiros e baianos a ter péssimas gestões é conseqüência do valor alto do salário mínimo... Além de soar incompreensível para quem o ganha para sobreviver e não ser acusado de parasitar o país via bolsas de distribuição de renda, nem os melhores marqueteiros ou lavadores de imagens podres do mundo poderão convencer a população a crer nisso, sobretudo quando dito em uma mesma semana em que mais de meia dúzia de prefeitos baianos foram presos na Operação Carcará (a ave que pega, mata e come) por roubar, sim, roubar, cerca de R$ 300 milhões que deveriam ter sido usados em merenda escolar. 


Não há reajuste de salário mínimo que faça o senso comum acreditar em falas políticas dessa natureza, quando o que se vê na TV é uma quadrilha de prefeitos presos por, literalmente, roubar comida de criancinha. Nesta mesma semana, um ser humano, desescolarizado desde sempre, animalizado pelo uso de crack e que atende pelo sonoro e inspirador nome de Sariga, ao roubar um relógio, empurrou para a morte por atropelamento um homem no centro de Salvador, fato registrado por câmeras de um circuito de segurança. Não custa lembrar que quantos mais prefeitos ladrões de merenda e de oportunidade escolar existirem, maiores as chances de produção de centenas, milhares de Sarigas, multiplicando-se pelas ruas do país. A diferença é que Sariga foi preso e vai apodrecer na cadeia. Os prefeitos presos? Foram todos soltos nas horas seguintes às prisões, o que significa que novos Sarigas, sem escola e sem merenda, virão por aí, para matar e serem mortos, como o de Salvador e como os sem teto de Maceió, produzindo cenários que fermentam e fomentam intolerância, ódio, medo e violência.  



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 21 de Novembro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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