Este
título é apenas uma tentativa, que já nasce frustrada, de traduzir o circo de
horrores em que se tornou a televisão. E o que é pior: para tudo o que aparece
de muito ruim ou muito raso, hoje, na TV brasileira, os profissionais das
emissoras, devidamente emprenhados pelo ouvido pelos colegas dos departamentos
comerciais e de marketing, vomitam um argumento que já vive pronto na ponta da
língua: é isso o que a Classe C quer ver.
Custa
a crer que nenhuma entidade tenha, até agora, se apresentado disposta a se
queixar juridicamente contra esse estigma de burrice, ignorância e preguiça
intelectual que vem sendo colado pelos meios de comunicação aos integrantes da nova
Classe C, recentemente endinheirada. Quem é louco para ter uma ONG para chamar
de sua, fica a dica, como diz a gíria: corra e crie urgente uma ONG para pedir
indenização por danos morais à mídia brasileira argumentando que esta vem atribuindo
de forma ostensiva e preconceituosa à classe C a condição de burrice extrema e
de consumidora das piores coisas que se tem feito na indústria cultural.
CLASSE BÁRBARA - Sobre essa burrice associada
pelos meios de comunicação de um modo geral à Classe C, o professor Muniz
Sodré, baiano de São Gonçalo dos Campos, hoje professor da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e um dos maiores intelectuais brasileiros, deu, na última
segunda-feira, no centro do programa Roda Viva, da TV Cultura, uma aula sobre o
assunto. Comemorando 70 anos e no auge da maturidade intelectual, questionou
que Classe C é essa, inexistente da forma como vem sendo representada pela
imprensa e pelas emissoras de TV, incluindo, principalmente, a teledramaturgia,
que agora a adotou como protagonista, vestida de outras cores, mas se
comportando sempre como uma classe bárbara.
Durante
a semana, um dos programas locais de TV em Salvador realizou a fantasia de um
voyeur da periferia que registrou imagens da fantasia sexual de um casal de
classe média que resolveu fazer sexo de madrugada em um lugar insólito: entre
os vagões de um trem na periferia da cidade. O apresentador do programa onde as
imagens do ato sexual foram parar achou por bem considerar a coisa mais normal
do mundo, já que empoderado por sua turba de seguidores alfabetizados
exclusivamente pela mídia eletrônica sem nunca ter (podido) passar pelo livro e
pela reflexão crítica, chamar a mulher da cena de galinha. Anunciando a
profissão da moça, médica, ameaçava revelar sua identidade e reiterava o quanto
ela estaria, a partir de agora, desmoralizada.
GALINHA - Numa cidade onde a média de
assassinatos por fim de semana só raramente não ultrapassa as duas dezenas,
crime bárbaro mesmo, para uma mulher, parece ser fazer sexo com seu companheiro
num lugar inóspito. Sim, só ela, nas palavras repetidas na TV, está
desmoralizada, “porque ele é homem” (sic). Diante disso, é mesmo de se
estranhar que oito bárbaros espanquem com paralelepípedos na cabeça (até a
morte de um) dois irmãos gêmeos que andavam abraçados numa rua em Camaçari (BA)?
O julgamento dos assassinos diante de dois homens abraçados na rua é semelhante
ao da TV diante de uma mulher flagrada por uma câmera fazendo sexo com seu
companheiro. Para os primeiros, eles devem apanhar porque são ‘mulherzinhas’
(sic). Para a segunda, a mulher deve ser desmoralizada porque ‘é uma galinha’
(sic).
Em
tempos caleidoscópicos em que marchas feministas se auto-batizam de marcha das
vadias, lésbicas protestam mostrado os peitos e ficam furiosas por serem rotuladas
de musas nas manchetes e em que, pela primeira vez, uma mulher conduz o país e
é elogiada pela firmeza de opiniões e gestão, é uma volta à idade média e à
inquisição ver num programa de TV uma campanha de desmoralização de uma mulher
por ter sido flagrada por uma câmera escondida fazendo sexo numa estação de
trem. E o medievalismo está menos na reação diante da cena e mais no fato de se
defender a tese de que a desmoralizada é ela, porque, como creem os
medievalistas, ‘em homem não pega nada’. Essa tese foi dita, mal dita e
reverberada ao vivo, na TV, e reiterada nas redes sociais pela audiência bombada
dos alfabetizados televisuais.
Nesse
contexto, em que mulheres são xingadas de galinhas, reclamar do quê se vez ou
outra o telejornal concorrente lança mão de atrações animais reais? Diante de
uma mulher sendo chamada de galinha pela sanha moralista de uma turba ignara,
porque fez com seu corpo e seu companheiro o que bem quis, como reclamar se um
dia o principal programa local do telejornalismo classicão exibe um urubu
tornado bicho doméstico ultra-mega-super amigo de um surdo mudo lavador de
carros da periferia e no outro uma cabra que mora e se comporta como cachorros
e é adestrada como tal por um profissional que anuncia para os próximos dias a
presença de um porco com as mesmas habilidades?
TETAS - Para fechar com chave de ouro a
descrição freak da programação da TV,
vista neste texto a partir da ótica de Salvador, destaca-se a farra
publicitária da Prefeitura de Salvador com a exibição, sempre em horário nobre,
quando o custo de cada segundo é altíssimo, com um jingle que, estivesse
Chacrinha vivo, deveria ser premiado com o Troféu Abacaxi. Sem obras para
mostrar e ancorado em um slogan torto que nomeia Salvador como ‘Cidade Sede do
Trabalho’, o anúncio institucional repete o versinho tolo ‘eu amo amar
Salvador’. Quem vive na cidade sabe que, se há coisas que os gestores dessa
cidade não fazem, é trabalhar. Sabe também que o verso seria melhor tradutor
das coisas se o verbo amar usado de forma falsa e melosa fosse substituído por
mamar. Ah, quão generosas para os gestores têm sido as tetas de Salvador...
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e
Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 01 de julho
de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário