domingo, 30 de janeiro de 2011

TELEANÁLISE: DINHEIRO NÃO TOLERA LUTO

Malu Fontes
Malu Fontes, jornalista e professora


Um dos principais e mais repetidos bordões do telejornalismo econômico ancora-se em um termo que dota o mercado financeiro de uma certa personificação, associando-o a estados de comportamento inerentes à condição humana. Quem nunca ouviu e viu Míriam Leitão anunciar numa manhã que o mercado acordou nervoso e numa outra dizer que o tal acalmou-se? Na vida real e de viés, no entanto, a aproximação, inclusive a semântica, entre as engrenagens que movem os humores do dinheiro e o estado de espírito das pessoas de carne e osso acaba nas quase caricaturais metáforas do jornalismo econômico. A distância abissal que separa os interesses econômicos das necessidades humanas não é traduzível nem mesmo pelas metáforas acerca do nervosismo e da calmaria atribuídas ao inapreensível mercado.

TRILHA SONORA – É fato que ninguém de bom senso que consome informação pela TV possa dizer que se acostumou às imagens – e a essa altura do fato ainda há sempre uma cena inédita, em torno dos desdobramentos da tragédia – e aos relatos produzidos pelas consequências das chuvas nos municípios serranos do Rio. No entanto, é nas falas aparentemente comuns e distanciadas do choque e da tristeza gerados pelo episódio que a condição banal e efêmera da vida humana se revela em toda a crueza. A vida é uma festa para a qual todos vivem o tempo todo sendo convidados e não há tempo, tolerância nem permissão para tristeza e luto. O choro e a dor só são tolerados se em escala imediata, instantânea, pois o dono da engrenagem da vida planetária, o mercado, não tem tempo a perder com elaborações nem tempo de secagem de pranto. Que enlouqueçam todos, na festa abstrata, mas não entristeça nenhum, na tristeza real.

Diante do trágico, a voz impaciente e ameaçadora do mercado só consegue ficar muda por um brevíssimo instante, por um tempo irretocavelmente traduzido pela homenagem que se faz a mortos em grandes espetáculos midiáticos, como jogos de futebol entre times estrelares e em shows de ídolos de massa: o minuto de silêncio. O mercado dá ao homem inserido em sua lógica apenas um minuto para prantear, elaborar e abandonar o luto. Findo o minuto de silêncio, no seguinte a ordem das coisas já é outra e alguém precisa incorporar o sádico que exige o som das máquinas registradoras de cartões de crédito, a real trilha sonora da festa desse tempo contemporâneo, que não urge, mas sim ruge, literalmente.

PETRÓPOLIS TÁ LEGAL - Menos de duas semanas após a chuva diluviana que matou algo perto de mil pessoas, com trechos de vários municípios mais inóspitos ao olhar humano que a ideia que se faz do inferno, fazendo-se apenas a troca do fogo por lama, eis que em uma entrevista banal, insuspeita e despretensiosa, aparece a voz de trovão do mercado exigindo um basta a tristezas, lágrimas e, subliminarmente, às imagens de destruição, pois é preciso faturar, é preciso reiniciar o bota e tira das tarjetas magnéticas dos cartões de crédito senão uma nova tragédia se abaterá sobre os sobreviventes das cidades serranas. Poderia ser qualquer um, o avatar do mercado, e por razões que pouco importam e que não fazem diferença alguma, quem entrou em cena incorporando a ordem do mercado, travestida de apelo, foi o prefeito de Petrópolis, Paulo Mustrangi. Depois de alguns dias de choro, percebeu-se o buraco causado na economia do município pela queda na visitação turística à cidade. Imediatamente foi criada uma comissão, formada por entidades de classe empresariais e turísticas, que colocou uma campanha publicitária na rua para atrair de volta os turistas em fuga: “Petrópolis tá legal”.

CHEIRO DE MORTE - A lógica do dinheiro é o que, de fato, move o mundo. Ela é inexorável e não é dada à perda de tempo chorando sobre a lama derramada. Mas não deixa de ser curioso imaginar qual é o tipo de turista que atende à convocação de uma campanha dessa natureza. A lógica por trás da campanha é: ora, em Petrópolis mesmo morreram ‘pouquíssimas’ pessoas (67). Isso é irremediável e não pode impactar – para usar uma palavra horrenda do mundão financeiro – a economia do município. As entrevistas do prefeito às emissoras de televisão têm, certamente à revelia do desejo dele, um certo tom de ameaça. Elas centram-se na tese de que os turistas devem esquecer a tragédia, mudar de ideia quanto aos cancelamentos das diárias nos hotéis e pousadas e irem correndo para a cidade, como faziam em anos anteriores, para encher os bares e restaurantes e para comprar o estoque do pólo têxtil local. Se isso não acontecer, infelizmente, subentende-se, haverá outra tragédia para quem sobreviveu: centenas de moradores perderão seus empregos nos hotéis, no comércio, na indústria de confecções e nos bares e restaurantes.
A campanha foi deflagrada depois que 100% das reservas da rede hoteleira local foram canceladas após a noite diluviana do dia 11 de janeiro. Provar é difícil, mas é mais simples acreditar na veracidade de uma nota de R$ 15 que pressupor que as pessoas que lançam esse convite ao prazer e ao consumo, com a região ainda rescendendo o cheiro de morte e destruição, estejam felizes com o telejornalismo cotidianamente mostrando os dramas dos sobreviventes que perderam tudo e o pedido de envio dos donativos de grande necessidade.
Falta coragem, mas o que os idealizadores da campanha “Petrópolis tá legal” desejariam era pedir que as emissoras parassem de mostrar a todo o tempo as cenas pós-tusami e substituíssem os pedidos de donativos por um convitezinho mais festivo a casais para passar uns dias românticos no frio da Serra do Mar. Garantia de que não vai desabar mais nada? Não, isso não precisa, afinal a auto-confiança dos donos do poder e do dinheiro ultrapassa qualquer fronteira de bom senso. Por mais que se viva em uma cultura que convida todos, todo o tempo, para o hedonismo e o prazer individual, quantas pessoas, hoje, que compartilham o que quer que seja parecido com senso de humanidade, sentiriam-se felizes divertindo-se e consumindo num lugar onde o sofrimento ainda parece berrar?


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 30 de Janeiro de 2011 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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