Malu Fontes
Com a disseminação das chamadas mídias pós-massivas, ou seja, os
tablets, as mensagens eletrônicas, as informações circulantes nos smartphones,
as imagens capturadas por câmeras onipresentes de celulares ou por sistemas
públicos e privados de vigilância, entre tantas outras modalidades de tráfego de
informação, a cada dia redefine-se o conceito de privacidade, para se continuar
sem saber mais o que é isso. A atriz Carolina Dieckmann e suas fotos nuas para
consumo do casal que o diga. Ela é apenas o caso mais recente.
O conceito de privacidade, e também o de violação desta, vêm se reconfigurando com as novas mídias. Crédito: socialtimes.com |
RETO -
Durante a semana, uma outra discussão sobre privacidade e ética chamou muito
menos atenção na TV do que o caso Dieckmann, por razões óbvias, mas teve um
potencial, para quem estivesse disposto a isso, é claro, muito maior para se
fazer pensar no direito à privacidade e no quanto ela vale quando se trata de
um cidadão comum. Uma equipe médica do centro cirúrgico do Hospital
Universitário de Londrina filmou com celulares e divulgou na rede a cirurgia em
um homem para a retirada de um peixe que entrou em seu intestino pelo reto.
O teor com que as abordagens jornalísticas trataram do tema, colocando a
opinião de advogados, autoridades em ética e representantes do Conselho Federal
de Medicina, leva a uma pergunta sem respostas: até que ponto a repercussão
dada pelos grandes veículos de comunicação de massa, como a televisão e seus
principais telejornais nacionais e os jornais impressos de maior circulação no
país contribui para inibir que atos antiéticos desta natureza sejam evitados ou
para que sejam inflacionados via web?
MAL LAVADO - A
exposição triplamente traumática a que o paciente foi submetido
(causada pelo incidente em si, pela inclusão das imagens da cirurgia na
Internet e pela repercussão posterior em grande escala nos telejornais e
jornais nacionais), leva à tese do que veio primeiro, se o ovo ou a galinha? Ao
dar ampla repercussão a fatos desta natureza, a imprensa convencional não está
fazendo as vezes do sujo que fala do mal lavado? Não está contribuindo, ao
exibir as imagens, para acentuar o dano ético e moral cometido originalmente pela
equipe médica que registrou tais imagens e as inseriu na internet?
A co-responsabilização dos meios de imprensa tradicionais, ao lado dos
médicos acusados de cometerem um crime contra a dignidade do paciente, parece se
escancarar quando, por exemplo, um telejornal expõe em rede nacional partes
dessas mesmas imagens, chamadas de indignas pelos âncoras. A falta de ética não
deveria estar tão somente na origem primeira da circulação, mas também na continuidade
da disseminação, na decisão editorial dos profissionais de imprensa que a fazem
chegar, inclusive, a rincões aonde jamais chegaria apenas via web.
URUBUS -
Nesse caso específico do Paraná, para além dos efeitos emocionais causados no
paciente e em sua família pela repercussão nos veículos de imprensa e da
presença ad infinitum na rede, já que
até mesmo o caríssimo advogado Kakay que atende de Demóstenes Torres a Carolina
Dieckmann não conseguiu retirar as fotos da atriz da web, as expectativas
voltam-se para o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Regional do Paraná.
Somente com a punição de atitudes desta natureza, cometidas por parte de
profissionais da medicina, e, sobretudo em um contexto de Hospital
Universitário, ou seja, um hospital escola, é possível ter alguma garantia que
a intimidade de pacientes em momentos máximos de fragilidade humana não se
transforme em atração circense. Já não bastam os pseudojornalistas travestidos
de urubus munidos de câmeras todo o tempo sobrevoando os corpos de gente pobre?
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e
Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 13 de maio
de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com
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