sábado, 19 de maio de 2012

Teleanálise | "A auréola de Carolina e os escravos do Brasil"

Malu Fontes

Muitas vezes as matérias jornalísticas exibidas na televisão revelam muito mais sobre o país e seus problemas por aquilo que escondem do que por aquilo que abordam e revelam abertamente. Durante a semana, três reportagens exibidas em diferentes telejornais são exemplos claros do quanto é possível informar sem informar. Tudo bem que seria exagero e radicalismo dizer que boa parte das matérias que podem ser caracterizadas como tais mais desinformam que informam. Não é verdade. Mas não se pode silenciar que estas deixam o telespectador desamparado quanto a instrumentos críticos que lhes permitam refletir melhor e mais criticamente sobre aquele assunto abordado.


As três reportagens, exibidas em dias diferentes e em diferentes telejornais. A primeira: toda a operação de cuidados e investimentos necessários adotados pelos produtores de flores da cidade paulista de Holambra, o principal pólo nacional de floricultura. Em datas comemorativas como o dia das mães e dos namorados, centenas de caminhões de grande porte e cheios de triques triques, como refrigeração na medida e suspensões que ultrapassem a perfeição mecânica, saem de Holambra e cruzam o país em centenas, milhares de quilômetros, para entregar flores perfeitas ao mercado nacional.


NO LOMBO - Se isso não leva o preço das flores para a estratosfera? Não se toca no assunto. Para que estragar assunto tão belo? Mas isso não é o mais importante desse exemplo: o lobby das grandes montadoras de automóveis na condição de anunciantes de TV é tão poderoso que ninguém nunca discute a sério que os custos de Holambra valem para tudo o que o brasileiro consome. Carne, peixe, grãos, cruzam o país no lombo caríssimo de caminhões. Enquanto isso, a construção de uma malha ferroviária nunca é pauta nem agenda política de nenhum programa jornalístico, de nenhum candidato a nada ou eleito para o que quer que seja. Quem se importa? As montadoras precisam vender seus caminhões, sustentando a lógica do transporte lento, caro e ineficiente que só serve para encarecer a vida e alimentar a eterna corrupção dos reparos constantes das estradas esfoladas por tanta carga pesada.

A segunda matéria: apenas poucas horas após a identificação dos hackers sebosinhos que revelaram ao país o tamanho e a cor da auréola dos peitos de Carolina Dieckmann na web, o Congresso nacional acudiu correndo e aprovou no ritmo the flash o projeto que circulava na casa há teeeeempos tornando crime invasão de computadores, violação de senhas, obtenção de dados sem autorização, a ação de hackers, a clonagem de cartões de crédito ou débito, enfim, os cybercrimes. Não, não estavam querendo ser manchete nos produtos jornalísticos nem serem oportunistas ao solidarizar-se com uma famosa global. Foi coincidência. Se correram assim, ágeis como coelhos, certamente foi pensando no bem comum do cidadão brasileiro.


BCHOS-PREGUIÇA - Mas a informação sobre a reação rápida dos deputados diante das vergonhas expostas de graça e sem fotoshop de Mrs. Dieckmann ainda diz muito pouco sobre os deputados se analisada jornalisticamente isolada. Ganha em cores e profundidade ideológica do tipo de parlamentares comprometidos que temos é quando esta mesma informação é contrastada com a terceira matéria que ilustra este texto. Na mesma semana, os mesmos deputados tiraram os seus da reta quando foram conclamados a votar o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Escravo. A pressão da bancada ruralista não permitiu, até agora, após várias tentativas, que a PEC fosse votada. Se aprovada, estabelece a pena de perda da propriedade como punição para quem mantém trabalhadores em regime de escravidão ou em condição degradante.

Sim, está correto transformar em crime o cybercrime. Mas por que a exposição das vergonhas de uma celebridade da emissora mais poderosa do país leva os parlamentares a correrem em disparada para ficar bem na fita e aprovam em tempo recorde uma lei e, ao mesmo tempo, estes mesmos deputados, tornam-se bichos-preguiça retardatários, letárgicos quando se trata de aprovar lei que protege gente escravizada em 2012? Talvez nem fosse preciso responder que trocentos deputados e senadores que não tomaram conhecimento da Abolição, volta e meia são acusados de manter mão de obra escrava em seus latifúndios no Brasil profundo. Mas já que entre as vítimas não está nenhuma Carolina Dieckmann, quem se importa? Nem a imprensa, sobretudo o telejornalismo, cuja cobertura sobre a eterna recusa dos nobres parlamentares de votarem (e aprovarem, se é que vão fazê-lo) da PEC do trabalho escravo foi menos que pífia.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 20 de maio de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com


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