Malu Fontes
Muitas vezes as matérias jornalísticas exibidas na televisão revelam
muito mais sobre o país e seus problemas por aquilo que escondem do que por
aquilo que abordam e revelam abertamente. Durante a semana, três reportagens
exibidas em diferentes telejornais são exemplos claros do quanto é possível
informar sem informar. Tudo bem que seria exagero e radicalismo dizer que boa
parte das matérias que podem ser caracterizadas como tais mais desinformam que
informam. Não é verdade. Mas não se pode silenciar que estas deixam o
telespectador desamparado quanto a instrumentos críticos que lhes permitam
refletir melhor e mais criticamente sobre aquele assunto abordado.
As três reportagens, exibidas em dias diferentes e em diferentes
telejornais. A primeira: toda a operação de cuidados e investimentos
necessários adotados pelos produtores de flores da cidade paulista de Holambra,
o principal pólo nacional de floricultura. Em datas comemorativas como o dia
das mães e dos namorados, centenas de caminhões de grande porte e cheios de
triques triques, como refrigeração na medida e suspensões que ultrapassem a
perfeição mecânica, saem de Holambra e cruzam o país em centenas, milhares de
quilômetros, para entregar flores perfeitas ao mercado nacional.
NO LOMBO - Se
isso não leva o preço das flores para a estratosfera? Não se toca no assunto.
Para que estragar assunto tão belo? Mas isso não é o mais importante desse
exemplo: o lobby das grandes montadoras de automóveis na condição de
anunciantes de TV é tão poderoso que ninguém nunca discute a sério que os
custos de Holambra valem para tudo o que o brasileiro consome. Carne, peixe,
grãos, cruzam o país no lombo caríssimo de caminhões. Enquanto isso, a construção
de uma malha ferroviária nunca é pauta nem agenda política de nenhum programa
jornalístico, de nenhum candidato a nada ou eleito para o que quer que seja. Quem
se importa? As montadoras precisam vender seus caminhões, sustentando a lógica
do transporte lento, caro e ineficiente que só serve para encarecer a vida e
alimentar a eterna corrupção dos reparos constantes das estradas esfoladas por
tanta carga pesada.
A segunda matéria: apenas poucas horas após a identificação dos hackers
sebosinhos que revelaram ao país o tamanho e a cor da auréola dos peitos de
Carolina Dieckmann na web, o Congresso nacional acudiu correndo e aprovou no
ritmo the flash o projeto que
circulava na casa há teeeeempos tornando crime invasão de computadores,
violação de senhas, obtenção de dados sem autorização, a ação de hackers, a
clonagem de cartões de crédito ou débito, enfim, os cybercrimes. Não, não estavam querendo ser manchete nos produtos
jornalísticos nem serem oportunistas ao solidarizar-se com uma famosa global.
Foi coincidência. Se correram assim, ágeis como coelhos, certamente foi pensando
no bem comum do cidadão brasileiro.
BCHOS-PREGUIÇA - Mas
a informação sobre a reação rápida dos deputados diante das vergonhas expostas
de graça e sem fotoshop de Mrs. Dieckmann ainda diz muito pouco sobre os
deputados se analisada jornalisticamente isolada. Ganha em cores e profundidade
ideológica do tipo de parlamentares comprometidos que temos é quando esta mesma
informação é contrastada com a terceira matéria que ilustra este texto. Na
mesma semana, os mesmos deputados tiraram os seus da reta quando foram
conclamados a votar o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho
Escravo. A pressão da bancada ruralista não permitiu, até agora, após várias
tentativas, que a PEC fosse votada. Se aprovada, estabelece a pena de perda da
propriedade como punição para quem mantém trabalhadores em regime de escravidão
ou em condição degradante.
Sim, está correto transformar em crime o cybercrime. Mas por que a exposição das vergonhas de uma
celebridade da emissora mais poderosa do país leva os parlamentares a correrem
em disparada para ficar bem na fita e aprovam em tempo recorde uma lei e, ao
mesmo tempo, estes mesmos deputados, tornam-se bichos-preguiça retardatários,
letárgicos quando se trata de aprovar lei que protege gente escravizada em
2012? Talvez nem fosse preciso responder que trocentos deputados e senadores que
não tomaram conhecimento da Abolição, volta e meia são acusados de manter mão
de obra escrava em seus latifúndios no Brasil profundo. Mas já que entre as
vítimas não está nenhuma Carolina Dieckmann, quem se importa? Nem a imprensa, sobretudo
o telejornalismo, cuja cobertura sobre a eterna recusa dos nobres parlamentares
de votarem (e aprovarem, se é que vão fazê-lo) da PEC do trabalho escravo foi
menos que pífia.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e
Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 20 de maio
de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com
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