terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

TELEANÁLISE: Você se lembra de mim?*

Você se lembra de mim?  

Malu Fontes
     
Malu Fontes, professora e jornalista
Entre o velório do senador Antônio Carlos Magalhães narrado pelas emissoras de televisão e o velório real, visto nas ruas, havia algumas diferenças, ignoradas convenientemente pela imprensa durante o funeral e depois dele. A iniciativa de apontar para a reduzida participação popular nos funerais coube, curiosamente, aos leitores dos jornais impressos. Em suas cartas que chegavam às redações já na segunda-feira, estes ressaltavam a desproporção entre três aspectos do evento: o que se esperava em termos de manifestação popular, aquilo que contaram as emissoras de TV e aquilo que, de fato, aconteceu em Salvador.
O tom hiperbólico da cobertura televisiva, dando conta de uma multidão de milhares de pessoas que teriam tomado as ruas da cidade por onde passou o cortejo fúnebre, não encontrava ressonância nas ruas de verdade. Sim, houve filas para uma despedida do corpo do senador e uma multidão concentrada em frente ao Palácio da Aclamação, onde foi velado, mas em uma dimensão que, em se considerando a relevância do personagem político que foi durante quatro décadas, estava longe de representar a comoção popular que se esperava no dia em que morresse. Sobretudo em se tratando de um sábado, dia em que a maioria das pessoas não trabalham. 
FANATISMO - No entanto, alguns detalhes que saltavam aos olhos na cobertura do funeral e no comportamento dos presentes e dos ausentes chamavam mais atenção do que a quantidade de pessoas que compareceram ao local do velório e do enterro. Na saída do corpo do Palácio da Aclamação, rumo ao Campo Santo, soavam no mínimo melancólicas duas cenas. Na primeira, uma câmera dirigida por uma emissora de TV, buscava um close fechadíssimo em torno de um homem. Carregava uma faixa dessas muito mal feitas saudando ACM, ao mesmo tempo em que urrava, numa espécie de manifestação glossolálica, um discurso qualquer de fanatismo. A câmera, de tão próxima, praticamente lambia o rosto do sujeito, imagem que, quando televisionada, insinuava uma multidão atrás dele. Na verdade, estavam em torno da tal faixa nada mais que meia dúzia de pessoas, numa cena que constrangeria o senador se este pudesse se saber objeto de tal manifestação. Aos repórteres, em sua maioria, sobrou o pecado de não realizar entrevistas, mas de tentar a todo o custo incluir frases prontas na boca dos entrevistados. Ao governador do Rio de Janeiro, Sérgio Carbral, uma jovem reporter não se constrangeu nem um pouco em perguntar: "o senhor diria que ele é um exemplo a ser seguido"? Ora, nem a um vereador fanático e de primeiro mandado nos cafundós da Bahia se faria perguntinha tão tacanha. E essa não foi das piores.
A segunda cena situava-se entre uma ilustração do que foi o modo fazer política do senador e o toque excessivamente provinciano do enterro: a composição humana da romaria atrás do carro do Corpo de Bombeiros que conduzia ACM. Enquanto populares caminhavam aos prantos, lamentado a perda do suposto pai perdido, o que restou dos seus órfãos políticos seguia em indefectíveis carrões pretos de vidro fechado fumê. Nada mais ilustrativo dos andares de baixo e de cima que constituíam o universo eleitoral do carlismo, uma mistura ímpar de um exército de Brancaleone fanático com a elite brega sul-americana.
PRIMEIRA DAMA - Para dar um toque de surrealismo a essa mistura de classes aparentemente improvável, uma ex-primeira dama do estado, metida numa blusa branca de listras pretas verticais, aboletava- se numa pick up verde de cabine dupla, dessas boas tanto para rallies em estradas rústicas de barro quanto para ostentar superioridade nas metrópoles. Abriu a sua janela, aboliu os óculos escuros e seguiu o trajeto debulhando- se em lágrimas, praticamente pedindo para ser vista chorando pela turba ignara que a ladeava. Certamente, a carreira política do marido, agora mais claudicante do que nunca após a morte do senador, agradece tamanha performance.
O toque final para entender os mecanismos de mentira, traição e hipocrisia que norteiam o exercício do poder e que estiveram presentes também nos rituais fúnebres do senador, foi dado por uma ausência coletiva: a das estrelas da axé music, tanto as meteóricas, como as ascendentes e decadentes. Uma ou duas deram o ar da graça, como Durval Lélys. As demais, desapareceram, deixando entre os telespectadores uma dúvida cruel. A ausência do povo do axé do velório do senador, sempre tão paparicado em vida, seria um caso raro de uma coincidente viagem coletiva, justamente durante a morte de ACM, ou uma comprovação de que os cantantes da terra são uns invertebrados ideológicos que, convenientemente, ora beijam a mão de um poderoso, ora viram a casaca ao sabor das urnas?
SOLIDÃO - Não se trata se cobrar presença, mas de esperar coerência. Foi impossível ver a tela da TV despovoada de artistas durante o funeral e não pensar na propriedade dos versos de um jingle que animou as campanhas do senador: "você se lembra de mim?/Eu nunca vi você tão só". Sim, diante dos paparicos que recebeu na vida, o senador experimentou uma solidão relativa, causada pela ausência daqueles que, nem bem ele apeou do poder gigantesco que tinha, começaram a rarear e a deixá-lo só. Quanto à também pouca repercussão na mídia nacional, televisiva e impressa, a explicação é simples: além de não mais deter o poder que já ocupara no governo federal, o senador teve contra si a concorrência da cobertura dos Jogos Pan-Americanos e da tragédia de Congonhas.  
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. 

*Coluna publicada em A Tarde no dia 29 de julho de 2007

 

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