Malu Fontes
Apesar de a crise
econômica que desde 2009 vem chacoalhando o mundo, inclusive o mundo dos muito
ricos, ter abalado um tantinho o chão das grandes corporações de capital nacional
e multinacional, ainda são elas que dão as cartas (e as caras) da economia
globalizada. Não há Estado topetudo que tenha poder para enfrentar o poder e o
capital das grandes empresas, exceto nas ditaduras, onde as duas coisas se
misturam e viram uma só. Para traduzir o poderio inabalável das grandes
corporações há dois documentários mais que ilustrativos: Inside Job e The Corporation,
ambos lançados no Brasil, o primeiro de 2010 e o segundo de 2003.
Mas este não é um texto sobre as grandes corporações e suas formas tentaculares de agir nos mercados do mundo. É sobre a publicidade veiculada por grandes empresas para lavar suas imagens para lá de duvidosas diante do público consumidor. E nesse aspecto as grandes multinacionais e as medianas paroquiais rezam pelas mesmas cartilhas de comunicação institucional. Todas exibem em suas peças publicitárias televisivas recados primorosos para o público avisando o quanto são boazinhas magnânimas e o quanto investem para proteger os pobres e desvalidos de conta corrente.
LIVROS POR METRO - Para ficar nos arredores da vizinhança, as emissoras
locais estão atualmente exibindo duas campanhas publicitárias que são um primor
de ironia quanto aos méritos das empresas às quais se referem: a de uma indústria
química sediada numa das praias mais valorizadas do litoral norte de Salvador
(localizada na própria praia, literalmente) e a de uma empresa de construção e
incorporação de apartamentos voltados para a classe média que se quer alta. Há
vários outros cases, mas, para a
exigüidade do espaço, estes são suficientes para ilustrar o quanto em tempos
nos quais se tornou obrigatório falar de responsabilidade social,
sustentabilidade e coisas que tais, contratar um bom cérebro publicitário e
adotar uma causa bonita já é coisa suficiente para ficar bem na fita.
No caso da indústria
química, escolheram uma menina certamente moradora das imediações da fábrica,
tida e havida no passado e no presente como causadora de danos bravos ao meio
ambiente local (há coisa mais pornográfica em termos ambientais que uma
indústria química numa praia?) e mandaram avisar na televisão que está feliz da
vida porque já leu dezenas e dezenas de livros e vai chegar a 200. Primeiro
que, se a coisa tivesse mesmo compromisso com o incentivo à leitura não seria
mais recomendável que a garota testemunhasse sobre o que encontrou nos livros,
a aventura, a subjetividade, o alargamento do mundo, a obra de um Lobato, de um
Júlio Verne, etc. Falar que a meta é passar de 60 para 200 parece coisa de
novela, onde os livros são de mentira e são comprados por metro, como anunciou
sem pudor a personagem Carminha, de Avenida Brasil, esta semana. Apontado para
a estante da casa, puxou uma coisa parecida com três volumes de uma
enciclopédia e retirou da estante uma moldura preta de madeira oca, pintada
para fazer parecer lombadas. Sim, livro e leitura remetem a qualidades e não a
quantidades. Mas o recado está dado e assim fica: a empresa espalha componentes
químicos mar e natureza adentro e a menina dos cachinhos é convocada para
anunciar à Bahia que essa mesma empresa é uma fofa e que de tão bondosa lhe
proporcionou a leitura de uns quantos livros na biblioteca montada para fazer
as vezes de lavanderia da imagem. O anúncio na TV coroa o recado.
CONVULSÃO - Já a construtora e incorporada exibe uma campanha para vender
seus apartamentos que é um clássico no setor imobiliário, repetida em 11 a cada 10 lançamentos de
condomínios de luxo. Onde havia antes um restinho de mata virgem intocada,
incluindo fauna e flora, claro, passa-se um trator, mata-se tudo o quanto é
bicho, espalha-se escorpião (aparentemente desdentado) até para a casa do
prefeito e no local são construídos trocentas torres apartamentos ou centenas
de casas de alto padrão. Sim, a floresta TEVE que ser removida para dar lugar
ao empreendimento, mas o que diz o anúncio publicitário para os compradores:
venha morar em um lugar onde a natureza está preservada. E, de novo, para todos
ficarem bem na fita, os mais pobrinhos das imediações, se crianças, ganham uma
brinquedoteca para a comunidade; se mais maduros, com sorte, garantem um
emprego de doméstica, jardineiro, etc. E todos, no mundo surreal da indústria
da promoção do bem dos pobres e com suas imagens devidamente lavadas, serão
felizes para sempre. Mas só nas campanhas publicitárias da TV. Fora da tela, a
convulsão social urra.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e
Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 29 de
abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com
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