sábado, 7 de abril de 2012

Teleanálise | "A Filha de Flora"

Malu Fontes


Há duas semanas da estreia, o novo novelão global das nove, Avenida Brasil, já tem uma vilã para chamar inteiramente de sua e, diga-se de passagem, muito mais crível que a tal rainha do Nilo inverossímil que até pouco tempo batia ponto no mesmo bat-canal e atendia pelo nome de Tereza Cristina (Christiane Torloni). Agora é a hora e a vez da Carminha de Adriana Esteves, a vilã de João Emanuel Carneiro. De tão imoral e amoral, Carminha tinha tudo para não ser tolerada pelo público de novelas, assim de um gole só, já nas primeiras cenas da novela. Embora o gosto por telenovelas no Brasil e o realismo do gênero no país leve a crer que o telespectador é permeável a algumas tolerâncias, a verdade é que o público situa-se numa posição moral muito pouco ou quase nada disposta a concessões quando alguns autores lhe apresentam personagens que adentram determinadas fronteiras morais e familiares sem oferecer compensações. 

Nina e Carminha, personagens de Avenida Brasil. Foto: iG
VÍSCERAS - Sim, a vilania nas novelas tem limites e quase sempre esse limite é construído usando como válvula de escape a loucura ou o humor da personagem. Além disso, recomenda-se deixar de fora perversidades explícitas contra crianças. Nazaré Tedesco, Tereza Cristina, Laura Prudente e Odete Roitman tinham, cada uma ao seu jeito, algo de histriônico, traços de humor e eram carregadas de bordões. Assim, só para citar estas, iam contornando aos olhos dos telespectadores seus excessos pouco críveis cometidos. Já Carminha, criada pelo “pai” de Flora (Patrícia Pillar), de A Favorita (2008), o mesmo João Emanuel Carneiro, não traz concessões: é a perversão em estado bruto, in natura, uma vilã absurdamente imoral e amoral, a um ponto tal que, apostar em um personagem com sua constituição moral no início de uma trama televisiva e lhe dar tamanho destaque nos primeiros capítulos, é um risco que só autores, roteiristas e diretores de mão cheia se permitem correr, pois a chance de o público abandonar a poltrona com as vísceras revolvidas existe e não é pequena.

LÁGRIMAS OCEÂNICAS - Mas, diferentemente do que se insinua nessas primeiras semanas de novela no ar, a promessa criativa e arrojada do modelo de vilania de Carneiro nem de longe está depositada em Carminha. Ou nem de longe está depositada exclusivamente nela. As fichas dos jogos sobre a moralidade, a ambiguidade da maldade e sobre a tese dos fins justificarem ou não os meios estão na mesa, mesmo, é para a mocinha insólita da trama usá-las e abusá-las: a ex-Rita e atual Nina (Débora Falabella), a branca de neve metaforizada, vítima da Carminha amoral, órfã hiperbólica de pai e mãe e objeto de todas as maldades associadas às madrastas das fábulas.
Descartada e literalmente depositada num lixão e depois redimida pelo amor de uma mãe postiça interpretada por Vera Holtz que lhe faz a ponte com uma adoção bem sucedida por uma família argentina, a Branca de Neve de Carneiro volta adulta à trama, disposta literalmente a revolver o lixo onde foi jogada, a devolver aos seus algozes cada lágrima derramada sob a interpretação da dulcíssima Mel Maia na primeira fase. E, de tantas, as lágrimas causadas por Carminha e vertidas por Rita-Nina/Mel, já nem pareciam cenográficas, mas oceânicas.

TALHERES - Filho da fina flor da classe média alta do Rio de Janeiro, nascido e criado nos melhores endereços do Leblon, filho único de mãe antropóloga e de formação cultural densa, João Emanuel Carneiro é, no casting da nova geração de autores da Globo, um nome de duzentos talheres. Embora fale de subúrbio, jogadores de futebol meso decadentes, bailes funk e técnicas de alisamento capilar da nova classe C, o moço não esconde que suas referências são de uma sofisticação literária a toda prova: de Crime e Castigo de Dostoievski, a Ilusões Perdidas, de Balzac, passando pela ideia de vingança da trama de O Conde de Monte Cristo, ele chegou à sua Branca de Neve revisitada no lixão. Para descrever as relações familiares e sexuais do subúrbio, vai de Nélson Rodrigues. E para dar densidade à sua heroína que de mocinha não terá quase nada, vai dele mesmo: mergulha em sua própria criação, Flora, a vilã adorável de Patrícia Pillar em A Favorita.
Carneiro tem feito questão de dizer em entrevistas que Nina é nada menos que uma filha dileta de Flora, uma Flora melhorada, má que só, mas com uma causa nobre que justifica seus sentimentos: Nina é uma vilã-mocinha, ambígua, eivada de maldades, mas para quem a família brasileira (expressão dele) não terá pudor de torcer. A favor, claro. Carneiro nega peremptoriamente que Nina seja uma personagem em busca de vingança. Enfatiza que todo o mal que a mocinha cheia de ódio fizer contra a vilania de Carminha atende pelo legítimo nome de Justiça.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 08 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com
                 

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