sábado, 28 de abril de 2012

Teleanálise | "A indústria do bem e suas lavanderias de imagem"


 Malu Fontes

Apesar de a crise econômica que desde 2009 vem chacoalhando o mundo, inclusive o mundo dos muito ricos, ter abalado um tantinho o chão das grandes corporações de capital nacional e multinacional, ainda são elas que dão as cartas (e as caras) da economia globalizada. Não há Estado topetudo que tenha poder para enfrentar o poder e o capital das grandes empresas, exceto nas ditaduras, onde as duas coisas se misturam e viram uma só. Para traduzir o poderio inabalável das grandes corporações há dois documentários mais que ilustrativos: Inside Job e The Corporation, ambos lançados no Brasil, o primeiro de 2010 e o segundo de 2003.


Mas este não é um texto sobre as grandes corporações e suas formas tentaculares de agir nos mercados do mundo. É sobre a publicidade veiculada por grandes empresas para lavar suas imagens para lá de duvidosas diante do público consumidor. E nesse aspecto as grandes multinacionais e as medianas paroquiais rezam pelas mesmas cartilhas de comunicação institucional. Todas exibem em suas peças publicitárias televisivas recados primorosos para o público avisando o quanto são boazinhas magnânimas e o quanto investem para proteger os pobres e desvalidos de conta corrente.


LIVROS POR METRO - Para ficar nos arredores da vizinhança, as emissoras locais estão atualmente exibindo duas campanhas publicitárias que são um primor de ironia quanto aos méritos das empresas às quais se referem: a de uma indústria química sediada numa das praias mais valorizadas do litoral norte de Salvador (localizada na própria praia, literalmente) e a de uma empresa de construção e incorporação de apartamentos voltados para a classe média que se quer alta. Há vários outros cases, mas, para a exigüidade do espaço, estes são suficientes para ilustrar o quanto em tempos nos quais se tornou obrigatório falar de responsabilidade social, sustentabilidade e coisas que tais, contratar um bom cérebro publicitário e adotar uma causa bonita já é coisa suficiente para ficar bem na fita.


No caso da indústria química, escolheram uma menina certamente moradora das imediações da fábrica, tida e havida no passado e no presente como causadora de danos bravos ao meio ambiente local (há coisa mais pornográfica em termos ambientais que uma indústria química numa praia?) e mandaram avisar na televisão que está feliz da vida porque já leu dezenas e dezenas de livros e vai chegar a 200. Primeiro que, se a coisa tivesse mesmo compromisso com o incentivo à leitura não seria mais recomendável que a garota testemunhasse sobre o que encontrou nos livros, a aventura, a subjetividade, o alargamento do mundo, a obra de um Lobato, de um Júlio Verne, etc. Falar que a meta é passar de 60 para 200 parece coisa de novela, onde os livros são de mentira e são comprados por metro, como anunciou sem pudor a personagem Carminha, de Avenida Brasil, esta semana. Apontado para a estante da casa, puxou uma coisa parecida com três volumes de uma enciclopédia e retirou da estante uma moldura preta de madeira oca, pintada para fazer parecer lombadas. Sim, livro e leitura remetem a qualidades e não a quantidades. Mas o recado está dado e assim fica: a empresa espalha componentes químicos mar e natureza adentro e a menina dos cachinhos é convocada para anunciar à Bahia que essa mesma empresa é uma fofa e que de tão bondosa lhe proporcionou a leitura de uns quantos livros na biblioteca montada para fazer as vezes de lavanderia da imagem. O anúncio na TV coroa o recado.


CONVULSÃO - Já a construtora e incorporada exibe uma campanha para vender seus apartamentos que é um clássico no setor imobiliário, repetida em 11 a cada 10 lançamentos de condomínios de luxo. Onde havia antes um restinho de mata virgem intocada, incluindo fauna e flora, claro, passa-se um trator, mata-se tudo o quanto é bicho, espalha-se escorpião (aparentemente desdentado) até para a casa do prefeito e no local são construídos trocentas torres apartamentos ou centenas de casas de alto padrão. Sim, a floresta TEVE que ser removida para dar lugar ao empreendimento, mas o que diz o anúncio publicitário para os compradores: venha morar em um lugar onde a natureza está preservada. E, de novo, para todos ficarem bem na fita, os mais pobrinhos das imediações, se crianças, ganham uma brinquedoteca para a comunidade; se mais maduros, com sorte, garantem um emprego de doméstica, jardineiro, etc. E todos, no mundo surreal da indústria da promoção do bem dos pobres e com suas imagens devidamente lavadas, serão felizes para sempre. Mas só nas campanhas publicitárias da TV. Fora da tela, a convulsão social urra.



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 29 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 21 de abril de 2012

Teleanálise | "Ninguém é inocente em Brasília"

Malu Fontes

A afirmação deste título não é literal. Em princípio é um arremedo tomado emprestado do título quase homônimo do livro de contos do escritor paulistano Ferréz: ninguém é inocente em São Paulo, sobre a guerra social e a violência vividas nos arredores do Capão Redondo, na periferia da capital paulista. Depois, a Brasília deste título não é a Brasília literal, não envolve os brasilienses que tocam suas vidas como todo e qualquer cidadão brasileiro. Refere-se, portanto, ao núcleo duro que dá as cartas do poder político do país, a aqueles que decidem como a máquina administrativa brasileira faz tocar a banda no resto do país. 

Há sucessivas semanas, a imprensa brasileira não fala em outra coisa senão no escândalo envolvendo a quadrilha de Carlinhos Cachoeira. Desde o mensalão não se via tanto cachorro grande envolvido num escândalo político e sendo citado todos os dias em tudo o que é telejornal, em gravações para lá de constrangedoras. Mas não deixa de ser curioso que, diante de acordos criminosos dessa natureza, os detentores de cargos políticos (deputados, senadores, governadores) ainda continuem sendo apontados pela população brasileira como os protagonistas exclusivos desse tipo de estripulia com o dinheiro público. 

TUBA DO BICHEIRO – A imprensa está aí todos os dias escancarando, embora a maioria dos leitores, telespectadores, cidadãos, enfim, resistam bravamente em enxergar, que é impossível existir corruptos sem que existam corruptores do mesmo quilate. Neste aspecto, as esteiras de crimes desfiladas diariamente nos telejornais brasileiros locais e nacionais, de um lado sobre casos de violência urbana praticados por grandes quadrilhas organizadas e, por outro, sobre grandes golpes envolvendo corrupção, têm algo em comum. Assim como nas organizações criminosas que protagonizam casos de violência quase sempre existem policiais envolvidos, nos casos de corrupção invariavelmente está a presença ostensiva e endinheirada de empresários dispostos a tudo para corromper representantes do poder público. 

JORNALISTAS - Do episódio Carlos Cachoeira, que de Goiânia comprava o Brasil, passando por congressistas de pelo longo a pelo nenhum, empresários, grandes construtoras e até mesmo jornalistas de alta plumagem de veículos renomados, aos quais o bicheiro dava de bandeja gravações clandestinas cheias de segredo sobre gente poderosa, emerge a cada dia um personagem novo. Se no princípio da coisa era apenas o senador Demóstenes Torres a surpreender seus eleitores que, de uma hora para a outra, viram que a nudez do paladino da ética no Senado ia muito além da careca, o fato é que, de lá para cá, não para de sair gato da tuba de Cachoeira.


Esta semana foi a vez de entrar na cena do angu o empresário, construtor e novo rico Fernando Cavendish, amigo tipo unha e cutícula do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, do PMDB, partido que, sob a indicação do maestro Renan Calheiros, dará parte generosa das cartas na CPI que vai investigar as teias de Cachoeira e suas relações com o mesmo Cavendish. Para quem tem memória curta, o Google tá aí para rememorar que a queda de um avião de grã-finos num paraíso no sul da Bahia revelou a intensidade das ligações fraternais perigosa entre Sérgio Cabral, Cavendish e as incontáveis licitações vencidas por este último em tudo o que é obra no governo do Rio de Janeiro na gestão atual.

COLLOR, O IMPOLUTO - O telejornalismo passou a semana especulando que, se Carlinhos Cachoeira já perdeu a liberdade, os amigos poderosos, o cabelo, a mãe (morreu há uma semana), mais de 10 quilos, portanto, já não tem nada a perder. Essa insinuação leva à especulação de que o bicheiro vai abrir a boca e que, assim sendo, proteja-se quem puder, pois se há algo que o Brasil sabe é que, em Brasília, essa Brasília cujos nomes frequentam CPIs, ninguém é inocente.


Coincidências à parte, até o pétreo e férreo José Sarney começou a semana enfartando. Mas falando-se da falta de inocência na CPI de Cachoeira, Demóstenes é fichinha: é ou não é o máximo das voltas que a história dá ouvir William Bonner e Patrícia Poeta anunciando que entre os senadores estrelados indicados para julgar a quadrilha empresarial e política do rei dos bingos de Goiânia está ninguém menos que o impoluto Fernando Collor de Mello?



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 22 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com
                 

domingo, 15 de abril de 2012

Coluna | "A gente não quer só pagode"

CULTURA

Malu Fontes

Quando se trata de falar criticamente de qualquer produto cultural, hoje, no Brasil, todo cuidado é pouco. Este é o país do elogio, das relações de comadre e de aplaudir sempre o famoso do bairro, mesmo que a sua música seja um lixo auditivo, seu filme seja uma sequência filmada de clichês e sua obra escrita provoque vergonha alheia. Quando se vive em Salvador e o assunto da conversa é música, o todo cuidado deve ser multiplicado à enésima potência.

Na verdade, se você é baiano, tem nível superior, tem uma rendinha razoável para não precisar recorrer aos empréstimos financeiros da moça do balcão da propaganda da TV e não é muito chegado aos ritmos onipresentes do axé e do pagode, uma advertência: se em qualquer espaço público onde estiverem mais de duas pessoas lhe pedirem sua opinião sobre os ritmos baianos, não pense duas vezes: diga que não tem opinião, que gosta de tudo e saia da conversa como entrou, como um peixe ensaboado. Somente assim você poderá livrar-se da pecha de arrogante, intelectualóide e, principalmente, de ser uma pessoa com forte pensamento de classe.


VALÃO - Em Salvador, não há outra opção entre gostar de axé e pagode ou ficar calado. Todas as outras equivalem a atrair desaforos. Para piorar o desconforto, nos últimos anos emergiu e se fortaleceu uma certa associação entre correntes culturais que privilegiam o relativismo (cultural e de tudo) e os movimentos sociais afirmativos que, juntos, atiram toda e qualquer declaração crítica sobre algo considerado popular no valão comum do preconceito contra os mais pobres. O que há de errado, esteticamente feio ou desqualificador no axé e no pagode? Absolutamente nada. Cada um produz, consome e apega-se afetivamente à cultura que pode e sabe fazer. O que está por trás da maioria das críticas feitas à hegemonia desses ritmos nos meios de comunicação é o modo massivo como ambos são privilegiados em detrimento de outros ritmos musicais. Para além do Arrocha e do Arrocha Universitário, que fique claro.

O problema (nem tampouco a solução) da música baiana não é o axé, o pagode, o arrocha ou seus semelhantes, mas o fato de haver toda uma geração de baianos abandonada em termos de formação cultural a quem sequer foi dado o direito de fazer escolhas estéticas. O sistema educacional na terra de todos os santos não tem conseguido suprir sequer as necessidades mais elementares da escolarização formal. Imagine-se, então, proporcionar esclarecimento suficiente para que a população trafegue por diferentes ramos e correntes estéticas, musicais, artísticas e possa fazer suas escolhas culturais em leques mais amplos. Há quem ache que o pagode é a mais linda das manifestações musicais do Século XXI de uma cidade que tenta há uma dúzia de anos e não consegue colocar um metrô nos trilhos. Mas será que, mesmo o gênero sendo tudo isso, dá para falar da dominação dele sem ser linchado por aqueles que consideram essa crítica um sinônimo de intolerância contra a cultura dos mais pobres? Não é. Só pede-se um pouquinho de chance para as pessoas aprenderem a gostar não apenas do que já gostam, mas também de outras formas de fazer música. A gente não quer só pagode...


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. maluzes@gmail.com Texto publicado originalmente em abril de 2012, na revista Plano B, n. 01. Salvador-BA

Teleanálise | "Guerra santa e faniquitos clericais"

Malu Fontes


Tratando-se o Brasil de um Estado laico, ou seja, um país sem vinculações formais, legais, constitucionais com qualquer religião, torna-se difícil decidir, se forem usados os princípios da razoabilidade, claro, o que é mais surpreendente: se o fato de a Suprema Corte do país, o Supremo Tribunal Federal (STF) manter embolorando em suas estantes, durante oito longos anos, uma ação que garante a mulheres grávidas cujos fetos têm diagnóstico de anencefalia, malformação irreversível e incompatível com a vida fora do útero, o direito legal de antecipar o parto ou se surpreendente mesmo é ver o assunto tomado de assalto por turbas clericais que querem fazer suas crenças religiosas pessoais se sobreporem ao direito, às leis e à autonomia. O que os telejornais transmitiram durante a semana foi uma espécie de embate entre argumentos científicos e apelos típicos de uma guerra santa em favor dos fetos anencéfalos.

PORTEIRA PARA FEIOS - Numa militância que em nome da fé juntava numa baciada humana pessoas que iam de Heloísa Helena, a bispos com B maiúsculo e minúsculo, passando por fanáticos que encenaram procissões noturnas em frente ao Supremo carregando lanternas empapeladas medievais, não faltou nem mesmo gente com o quilate de celebridade. O posto dessa categoria foi assumido na turma das lanternas por Elba Ramalho, sim, aquela que já andou dizendo ter sido abduzida por seres interplanetários. Dessa vez o foi pelo fanatismo. Possessos com a perspectiva de o STF garantir às mulheres o direito de não carregar na barriga por nove meses um feto que não vai sobreviver, os auto-declarados defensores da vida não se intimidaram em recorrer a mentiras e golpes baixos.

Mães de filhos com outros tipos de diagnósticos foram para a porta do Supremo expô-los jurando que eram anencéfalos sobreviventes, quando isso jamais pode ou poderia ser verdade. Altas autoridades da Igreja Católica não se intimidaram e apelaram ao senso comum com argumentos abaixo do rasteiro. Bispos da mais alta hierarquia da instituição juravam aos fiéis que autorizar a interrupção de gravidez em casos de anencefalia era abrir a porteira para a eugenia. Era só o começo para logo autorizarem o assassinato de deficientes, diferentes e até mesmo, pasmem, feios!!

BISPO DA PESCA - Não, nenhuma diversidade humana, muito menos a feiúra, que há milênios vive e sobrevive tranquila e em maioria no mundo, corre o risco apregoado pelos profetas insanos. Com o placar de 8 votos favoráveis à antecipação do parto e 2 contra, agora somente as grávidas que compartilham a tese de Elba, Heloísa e seus amigos bispos com B e b poderão continuar acalentando em seus ventres um feto que jamais terá possibilidade de sobrevivência fora do útero.

Entre as reações possessas à decisão do Supremo está a do bispo que caiu na rede do Ministério da Pesca sem saber pescar. Para ele, o que o STF fez foi usurpar as funções do Congresso, a quem cabe legislar, deliberar sobre o que pode e o que não pode, em termos de direito, o cidadão brasileiro. Ora, quem não quer legislar é o Congresso. Quem tem dúvidas que a maioria dos parlamentares brasileiros não quer nem de longe meter a mão em cumbucas polêmicas? O eleitorado é beato, conservador e hipócrita e tudo o que deputado ou senador não quer é perder voto. Se não, como vão se aproximar dos Midas corruptores como os Cachoeiras e que tais que lhes enchem os bolsos? Falar sobre anencefalia, contra ou a favor, significa perda de voto. E perder voto é ficar longe de oportunidades de enriquecimento fácil e rápido. Legislar para quê? Melhor discutir o valor das verbas indenizatórias e ficar esperando um Ministério.

CAETANO - Quanto aos beatos de lanterna no STF, refletir não dói: o Brasil registrou, nos últimos 30 anos, 1,1 milhão de assassinatos (e aqui nem entram os mais de 30 mil mortos, a cada ano, no trânsito, sem que ninguém esteja preso por isso). E cadê esse povo das lanternas rezando contra isso em frente ao Congresso, ao Ministério da Justiça, aos institutos médicos legais? Quanto paradoxo, se diante de fetos sem encéfalo são capazes de tanto clamor no Planalto Central, não? E viva Caetano: “E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital? E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal?” Embora tenha votado a favor, o ministro Gilmar Mendes, performático que só, atacou o que chamou de cerceamento da expressão dos grupos religiosos, por parte de cientistas, médicos, acadêmicos, militantes feministas, advogados, etc. Disse que os defensores da ação tiveram faniquitos anti-clericais. Ora e os faniquitos clericais dos que acusam os apoiadores da causa de eugênicos, nazistas e assassinos?


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 15 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

sábado, 7 de abril de 2012

Teleanálise | "A Filha de Flora"

Malu Fontes


Há duas semanas da estreia, o novo novelão global das nove, Avenida Brasil, já tem uma vilã para chamar inteiramente de sua e, diga-se de passagem, muito mais crível que a tal rainha do Nilo inverossímil que até pouco tempo batia ponto no mesmo bat-canal e atendia pelo nome de Tereza Cristina (Christiane Torloni). Agora é a hora e a vez da Carminha de Adriana Esteves, a vilã de João Emanuel Carneiro. De tão imoral e amoral, Carminha tinha tudo para não ser tolerada pelo público de novelas, assim de um gole só, já nas primeiras cenas da novela. Embora o gosto por telenovelas no Brasil e o realismo do gênero no país leve a crer que o telespectador é permeável a algumas tolerâncias, a verdade é que o público situa-se numa posição moral muito pouco ou quase nada disposta a concessões quando alguns autores lhe apresentam personagens que adentram determinadas fronteiras morais e familiares sem oferecer compensações. 

Nina e Carminha, personagens de Avenida Brasil. Foto: iG
VÍSCERAS - Sim, a vilania nas novelas tem limites e quase sempre esse limite é construído usando como válvula de escape a loucura ou o humor da personagem. Além disso, recomenda-se deixar de fora perversidades explícitas contra crianças. Nazaré Tedesco, Tereza Cristina, Laura Prudente e Odete Roitman tinham, cada uma ao seu jeito, algo de histriônico, traços de humor e eram carregadas de bordões. Assim, só para citar estas, iam contornando aos olhos dos telespectadores seus excessos pouco críveis cometidos. Já Carminha, criada pelo “pai” de Flora (Patrícia Pillar), de A Favorita (2008), o mesmo João Emanuel Carneiro, não traz concessões: é a perversão em estado bruto, in natura, uma vilã absurdamente imoral e amoral, a um ponto tal que, apostar em um personagem com sua constituição moral no início de uma trama televisiva e lhe dar tamanho destaque nos primeiros capítulos, é um risco que só autores, roteiristas e diretores de mão cheia se permitem correr, pois a chance de o público abandonar a poltrona com as vísceras revolvidas existe e não é pequena.

LÁGRIMAS OCEÂNICAS - Mas, diferentemente do que se insinua nessas primeiras semanas de novela no ar, a promessa criativa e arrojada do modelo de vilania de Carneiro nem de longe está depositada em Carminha. Ou nem de longe está depositada exclusivamente nela. As fichas dos jogos sobre a moralidade, a ambiguidade da maldade e sobre a tese dos fins justificarem ou não os meios estão na mesa, mesmo, é para a mocinha insólita da trama usá-las e abusá-las: a ex-Rita e atual Nina (Débora Falabella), a branca de neve metaforizada, vítima da Carminha amoral, órfã hiperbólica de pai e mãe e objeto de todas as maldades associadas às madrastas das fábulas.
Descartada e literalmente depositada num lixão e depois redimida pelo amor de uma mãe postiça interpretada por Vera Holtz que lhe faz a ponte com uma adoção bem sucedida por uma família argentina, a Branca de Neve de Carneiro volta adulta à trama, disposta literalmente a revolver o lixo onde foi jogada, a devolver aos seus algozes cada lágrima derramada sob a interpretação da dulcíssima Mel Maia na primeira fase. E, de tantas, as lágrimas causadas por Carminha e vertidas por Rita-Nina/Mel, já nem pareciam cenográficas, mas oceânicas.

TALHERES - Filho da fina flor da classe média alta do Rio de Janeiro, nascido e criado nos melhores endereços do Leblon, filho único de mãe antropóloga e de formação cultural densa, João Emanuel Carneiro é, no casting da nova geração de autores da Globo, um nome de duzentos talheres. Embora fale de subúrbio, jogadores de futebol meso decadentes, bailes funk e técnicas de alisamento capilar da nova classe C, o moço não esconde que suas referências são de uma sofisticação literária a toda prova: de Crime e Castigo de Dostoievski, a Ilusões Perdidas, de Balzac, passando pela ideia de vingança da trama de O Conde de Monte Cristo, ele chegou à sua Branca de Neve revisitada no lixão. Para descrever as relações familiares e sexuais do subúrbio, vai de Nélson Rodrigues. E para dar densidade à sua heroína que de mocinha não terá quase nada, vai dele mesmo: mergulha em sua própria criação, Flora, a vilã adorável de Patrícia Pillar em A Favorita.
Carneiro tem feito questão de dizer em entrevistas que Nina é nada menos que uma filha dileta de Flora, uma Flora melhorada, má que só, mas com uma causa nobre que justifica seus sentimentos: Nina é uma vilã-mocinha, ambígua, eivada de maldades, mas para quem a família brasileira (expressão dele) não terá pudor de torcer. A favor, claro. Carneiro nega peremptoriamente que Nina seja uma personagem em busca de vingança. Enfatiza que todo o mal que a mocinha cheia de ódio fizer contra a vilania de Carminha atende pelo legítimo nome de Justiça.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 08 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com
                 

domingo, 1 de abril de 2012

Teleanálise | "Entrevista com o diabo"

Malu Fontes

A semana televisiva em Salvador foi marcada pela presença ostensiva dos gêmeos Diego e Diogo Leão, 27 anos, nos programas populares. Com direito a exibição e repetição exaustiva de vídeos com performances estranhas dos dois, nas emissoras e no YouTube, contendo cenas que iam de beijos na linha desentupidores de pia homoeróticos e incestuosos a frases desconexas e comportamentos para lá de nonsense na delegacia, os gêmeos bombaram como sensação da imprensa ‘facinha’. Os rapazes, de uma família de classe média da cidade de Mossoró (RN), chegaram a Salvador num carro da família, usado sem permissão, e com 9 mil reais, retirados de um cofre dos pais também sem consentimento. 


Os gêmeos Diego e Diogo.


OUTRO MUNDO - Aparentemente sob o efeito de drogas ou sob um surto psiquiátrico, Diego e Diogo foram presos em pleno rush na Avenida Paralela, o corredor de tráfego mais intenso de Salvador, acusados de causar riscos de acidente e de morte, própria e dos demais motoristas que trafegavam pelo local. Pararam o carro numa das pistas, atravessaram o canteiro central e foram para o outro sentido, deitando-se no asfalto quente para fazer flexões, correndo o risco de serem atropelados e causando perplexidade aos motoristas. Sim, todo mundo que leu sobre os gêmeos de Mossoró nos jornais, nos sites ou os viu na TV considerou-se diante de cenas do outro mundo. 

Entretanto, diante do volume de cenas explícitas de surrealismo que desfilam diariamente na tela da TV, a maioria delas protagonizadas por gente que se leva e é levada a sério por milhões de telespectadores, os gêmeos de Mossoró podem se dar ao luxo de reivindicar, no panteão da hierarquia do nonsense, uma colocação bem baixa no ranking. Nos últimos dias, por exemplo, duas sumidades brasileiras a quem jamais se atribuiu surto por drogas ou por transtornos mentais protagonizaram cenas veiculadas na imprensa que deixam no chinelo as atitudes esquisitas de dois irmãos que resolvem fazer flexão no asfalto de um corredor de tráfego de alta velocidade.  

OVELHAS - Há algumas semanas, dois bispos nacionalmente famosos por estarem à frente de milhões de fiéis de duas igrejas neo-pentecostais, ambas ancoradas na teologia da prosperidade aqui e agora e disputando ovelhas e dízimos a tapa, vêm se engalfinhando diante das câmeras de TV. O roteiro e o repertório do confronto televisivo fazem os gêmeos parecerem crianças inocentes brincando de meninos maluquinhos num parquinho de playground. Qual telespectador, em perfeito estado de suas faculdades mentais, poderia crer que, em 2012, a televisão brasileira estaria tão evoluída ao ponto de proporcionar uma entrevista feita diretamente com o diabo e exibida como se fosse algo sério e real?  Sim, uma entrevista com o próprio: ‘sete pele’, pé-redondo, demo, satanás, lúcifer e todo o corolário de codinomes que o tal tem.

Pois não é que, para acusar o bispo 2 de satanismo e de associação com práticas diabólicas, o bispo 1 convocou o próprio diabo para ser entrevistado em sua emissora, comprada com o dízimo de suas ovelhas? O entrevistado, certamente mais sensato que seu entrevistador, embora tenha aceitado o convite para a entrevista, achou por bem não misturar sua diabólica imagem, construída há milênios e, portanto, com tanto a perder, com gente de tão má reputação e parece ter negociado algumas condições: pelo que tem se percebido, o diabo só aceitou falar, ou seja, ser entrevistado, se ‘encostado’ em alguma fiel endiabrada. O ‘sete pele’ entra numa pessoa na condição de encosto e através dela responde a todas e quaisquer perguntas, todas, claro, visando confirmar que o bispo 2 é seu afilhado envidio e que representa o mal absoluto do mundo. Confirma com todas as letras que tudo fará para destruir o bispo 1 e seus seguidores. Este, como digno representante de Deus, parece que ainda não conseguiu agendar com a assessoria de imprensa celestial uma entrevista com o Pai Eterno, para que o próprio confirme todas as boas intenções do bispo 1, sua filiação legítima ao céu e ao Bem Supremo. Mas, bem relacionado como é com as outras dimensões, o entrevistador não demora e convence os céus a falarem a seu favor.

Ana de Hollanda põe ovo em pé. Crédito: Bahia Notícias
OVO EM PÉ - Como se não bastasse bispos entrevistando o diabo na TV, eis que a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, mais apagada no cargo que as cinzas do incêndio causado há séculos por Nero, resolveu por um ovo em pé. Sim, não é ironia nem trocadilho. A irmã de Chico resolveu fazer isso na Linha do Equador. Talvez por achar que o lugar em si justificaria o ato, desse um pouco de dignidade e seriedade à coisa, a ponto de se deixar fotografar ajeitando o ovo no concreto, até pô-lo direitinho. Diante de cenas assim, protagonizadas por gente que nem admite ter puxado um fumo antes, como fizeram os gêmeos, e que é levada a sério por religiosos e poderosos, quem são mesmo os doidos, os surtados e os insanos?  


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 01 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; maluzes@gmail.com