domingo, 17 de abril de 2011

Teleanálise: Uns Poucos Oportunos e Muitos Oportunistas

Malu Fontes               
Malu Fontes, jornalista e professora

A culpa é do Congresso Nacional. É dos filmes violentos. É dos jogos de vídeo game que fazem crianças e adolescentes divertirem-se com a morte. É do computador. É da Internet. É da impunidade no Brasil. É da indústria bélica. É da omissão dos poderes públicos. É da corrupção. É da falta de segurança nas escolas. É da falta de valores. É da família que não dá limites. É do bullying. É da religião. É da falta de religião, é do ateísmo, do fundamentalismo, da fé, da falta de fé, da novela das nove, da sociedade de consumo e da Rede Globo. Todas essas explicações oportunistas foram durante esta semana, lidas, ouvidas em algum programa de televisão, algum veículo de imprensa, uma conversa social ou postadas em timelines de redes sociais e tinham o mesmo objeto: o massacre de Realengo, no Rio de Janeiro.

Auto-convencidas de sua certeza diagnóstica, as pessoas usaram as redes sociais durante a semana como um megafone do senso comum, onde atribuíam a (ir)responsabilidade desse tipo de evento até mesmo à imprensa, pois, se esta fosse censurada, argumentavam, os violentos não cometeriam crimes, pela certeza prévia de que seus atos não teriam repercussão. E eis o diagnóstico mais enviesado de todos, entre os ouvidos: “a Rede Globo realizou o sonho de Wellington, pois ele conseguiu o que queria: ficar famoso”. Ah, tá. A Globo deve ter inventado o rapaz e ensaiado seu desatino no Projac. E o resto da imprensa, inclusive a internacional, foi atrás?

CARPIDEIRAS - Diante da tragédia de Realengo, inaugural nesta categoria no Brasil, o senso comum, os picaretas de plantão e até alguns especialistas pareciam munidos de megafones e dispostos a gritar para o mundo, sempre diante de uma câmera, seus diagnósticos apressados e absurdos sobre o que teria motivado o atirador Wellington Menezes a repetir no Brasil um tipo de crime até então inédito na história da violência brasileira. É verdade que, diante de um crime da escala do massacre de Realengo, torna-se mais complexo afirmar quais são os limites da cobertura sensata por parte da imprensa e sobretudo da televisão, cujas câmeras parecem padecer eternamente de uma atração arrebatadora e fatal por lágrimas em close. Se forem de mães e professoras de 12 crianças entre 12 e 14 anos, a tentação está posta e não há professora, Patrícia Poeta ou câmera triste que não se transforme na mais autêntica das carpideiras eletrônicas e leve um país de telespectadores junto.

Diretamente proporcional à hipocrisia rasteira que depois de um massacre dessa natureza emerge parecendo saber tudo sobre a sua etiologia, é a hipocrisia cega que, no cotidiano, fecha completamente os olhos, prática inclusive da própria televisão de suas câmeras que dizem a tudo ver, e recusa-se a tomar conhecimento dos trancos e barrancos que fazem parte da rotina de toda e qualquer pessoa que não tenha recursos financeiros e tenha algum problema de saúde mental. Embora, para alguns, seja quase uma tentação recorrer ao Código Internacional de Doenças e parar na seção dos transtornos mentais para dar um verniz médico e patológico ao ato de Wellington de Oliveira, cadê a preocupação social, para além e aquém das tragédias e do sensacionalismo que as cercam, para após seu acontecimento, com as pessoas que têm doenças mentais severas e não encontram tratamento nas redes públicas de apoio da área de Saúde, conforme garante a Reforma Psiquiátrica?

Tanto quanto dizer que a culpa é do ateísmo ou da religiosidade, é patético associar diretamente e de forma exclusiva o massacre a uma (ainda) suposta esquizofrenia do atirador. Os esquizofrênicos existem, mas não saem por aí invadindo escolas e cometendo assassinatos em massa. Vincular o ato criminoso exclusivamente à suposta esquizofrenia é estigmatizar ainda mais quem precisa mais de tratamento e menos de reforço do preconceito que leva ao medo público. Nunca é tarde para lembrar que, na história dos transtornos mentais no mundo, as pessoas com esses distúrbios sempre foram muito mais maltratadas do que causadoras de maus tratos. Casos como o de Wellington, seja no Brasil, nos Estados Unidos, no Canadá ou em qualquer esquina do mundo, são exceções e não regra.

MATADOR - Antes de responsabilizar a Internet, os mulçumanos, o islamismo, o fundamentalismo religioso ou o ateísmo, é bom pensar que o crime arquitetado pelo atirador de Realengo trata-se de algo impossível de ser explicado pela racionalidade humana. Um garoto com um forte componente de transtorno psíquico (diga-se de passagem nunca notado por ninguém, ignorado na prática por todos que conviveram com ele duas décadas de vida) disposto, de forma doentia, a cometer um ato desta escala, o cometeria com ou sem revólver, numa escola ou numa feira, com bala ou com fogo, em 2011 ou 2017. O fato de a sociedade ficar atônita porque a violência, quando ‘gratuita’ e cometida contra a sacralidade da infância, precisa urgente de uma explicação para que a vida em sociedade continue fazendo algum sentido não é desculpa para oportunistas de plantão venderem diagnósticos medíocres e rasos de quem mal leu uma manchete de jornal e sai por aí explicando com quantos defeitos se produz um assassino em massa.

Nas mesmas edições noturnas em que os telejornais exibiam uma emocionante e concorrida missa de sétimo dia na escola do massacre, foi preso no Rio um vereador da cidade, André Ferreira, o Deco, apontado como chefe de uma milícia que assassinou pelo menos 30 pessoas nos últimos quatro anos e explora cinco bairros pobres. A pergunta é delicada e incômoda, mas aos oportunos e aos oportunistas, ei-la: quais os elementos que fazem de Wellington o monstro da capa vermelha da revista semanal e de Deco, igualmente matador e em nome não de um transtorno ou sofrimento psíquico solitário, mas por enriquecimento pessoal, ser objeto de aplauso de milhares de eleitores? A propósito, durante esta semana, houve, em Salvador, uma passeata organizada pelos próprios pacientes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Salvador, inconformados com a precariedade do atendimento, gerada pela crise na saúde municipal. A imprensa veiculou? Se um deles, ao invés de organizar um protesto público reivindicando tratamento, puxasse uma faca num ônibus, certamente seria manchete.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 17 de abril de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

Um comentário:

  1. Malu Fontes,
    Um raciocinio simplista, mas sincero. Estamos nos concentrando nas grandes cidades. Nos urbanizamos. Problemas crescem exponencialmente. Solucoes vêm devagar. Abandonamos o Campo. Todos na cidade disputando emprego, aceitacao e sucesso. Politicas governamentais acompanham a logica do Capital, que so visa lucro. O resto, que se exploda. O Estado nacional brasileiro é quase (in)governavel. O que devemos esperar?
    Saudacoes, Flavio DedeAbel, de Caico, RN

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