domingo, 24 de abril de 2011

Teleanálise | "A princesa, os tablóides e os cavalos"

Malu Fontes


Malu Fontes, professora e jornalista
Em tempos de velhas e novas guerras, catástrofes naturais no mundo e avalanches diárias de violência na TV doméstica, nada mais recomendável para o olhar saturado do telespectador do que voltar aos arquétipos imemoriais dos contos de fadas e consumir doses diárias de emoção alheia, de um tipo ao mesmo tempo novelesco e real: um casamento de princesa que, no mundo inteiro, anuncia-se em contagem regressiva. Quando, no próximo sábado, o príncipe inglês William e a plebeia Catherine Elizabeth Middleton trocarem alianças e pactos de amor eterno na Abadia de Westminster, em Londres, no mesmo lugar onde há 30 anos casaram-se Diana e Charles (pais do noivo), nada menos que 2,5 bilhões de telespectadores em todo o mundo estarão de olhos vidrados na tela. E, estranhamente, cada telespectador saberá mais detalhes da vida privada do casal do que sabe sobre sua própria família.

Sedenta de novos personagens para encher os olhos da audiência, a TV do mundo rendeu-se aos encantos de Kate Middleton desde que o noivado com o príncipe inglês foi anunciado oficialmente ao mundo e ela foi entronizada como o mais novo ícone fashion, embalada em um wrap dress azul (vestido envelope) e ostentando um anel de diamantes e safira do acervo da falecida sogra. Desde então, e num crescendo à proporção que o casamento aproximava-se, o casal principesco foi ocupando com a força de um tsunami todos os espaços midiáticos, dos jornais impressos regionais do interior do Brasil aos sites de moda mais antenados de Tóquio, passando por generosos espaços no francês Le Figaro, que na última quarta-feira inseria um caderno especial dedicado ao casal real. Blasè como exige o comportamento francês, o jornal falava da moça a pretexto de abordar curiosidades dos ingleses, e não dos franceses, claro, sobre a moça. Ah, tá.

PITANGAS - Embora a mera ideia de um casamento de princesa pareça não fazer o menor sentido no mundo contemporâneo, na prática o comportamento da audiência global parece dizer exatamente o contrário. Tudo o que se refere à vida do casal é sucesso de venda e público. O ar de cerimônia ritualística e de sonhos parece impregnar todas as abordagens na imprensa, mesmo quando se sabe que os noivos já moravam juntos há tanto tempo que os tablóides ingleses ironizavam a moça chamando-a de Waity Kate (a paciente Kate), numa insinuação de que William iria enrolá-la o resto da vida sem casamento. Na prática, o espaço dado pela mídia do mundo a Kate desenha-se como um dos mais desafiantes fardos para quem, cerca de três décadas depois, é colocada, querendo ou não, no lugar de um dos ícones de comunicação de massa mais registrados do século XX, Lady Diana, que, até a morte (em um acidente de trânsito, em Paris), foi literalmente submetida à perseguição inclemente dos fotógrafos.

Sobre a tão discutida e (mal)diagnosticada relação entre Diana e a mídia, em todos os seus formatos, vale dizer que, nessa história, embora aqueles que a mitificam e preferem emoldurá-la como vítima e mártir dos paparazzi digam o contrário, não há santinhos nem demônios. Se a imprensa cor de rosa ou marrom importunava a doce Lady Di, ela, por sua vez, não se fez de rogada e soube usá-la muito bem, e como ninguém das hostes da realeza havia feito até então, para vingar-se daqueles que ela aparentemente considerava seus algozes verdadeiros: a rainha ranzinha Elizabeth II, que nunca tolerou uma nora tão dada às lentes e câmeras, o marido feioso, rabugento, anti-carismático e adúltero e a amante dele, Camila. Foi através dessa imprensa (a dos tablóides e dos programas de TV voltados para a vida das celebridades) que a infeliz, bela e fashionista falecida sogra de Kate chorou as pitangas que o resto do mundo prefere crer que as cinderelas reais não têm.

CAVALOS - Quanto à Kate, em um mundo em que o exagero e o gozo da felicidade explicitada parecem ser todo o tempo exigidos das pessoas que caem no encanto da indústria de celebridades, o desafio é aliar essa personagem de referência em moda, beleza, comportamento e atitude que a mídia do mundo já grudou nela à contenção e ao comedimento que a realeza inglesa cobra dos seus. Em um contexto onde se tem, de um lado, os tablóides ingleses inclementes e, de outro, nos domínios de Buckingham, os rigores da rainha-mãe (que Diana preferiria chamar de má), ser feliz para sempre, o mantra dos contos que nomeia o destino das princesas após o casamento, é algo muito mais improvável do que aquilo que se espera dos quatro cavalos que conduzirão a carruagem dos recém-casados pelas ruas de Londres, entre a Abadia e o Palácio. Há meses os pobres-ricos bichos vem sendo adestrados para tirar de letra os barulhos da multidão estimada em um milhão de pessoas entre as quais os equinos reais terão que passar.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 24 de abril de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 17 de abril de 2011

Teleanálise: Uns Poucos Oportunos e Muitos Oportunistas

Malu Fontes               
Malu Fontes, jornalista e professora

A culpa é do Congresso Nacional. É dos filmes violentos. É dos jogos de vídeo game que fazem crianças e adolescentes divertirem-se com a morte. É do computador. É da Internet. É da impunidade no Brasil. É da indústria bélica. É da omissão dos poderes públicos. É da corrupção. É da falta de segurança nas escolas. É da falta de valores. É da família que não dá limites. É do bullying. É da religião. É da falta de religião, é do ateísmo, do fundamentalismo, da fé, da falta de fé, da novela das nove, da sociedade de consumo e da Rede Globo. Todas essas explicações oportunistas foram durante esta semana, lidas, ouvidas em algum programa de televisão, algum veículo de imprensa, uma conversa social ou postadas em timelines de redes sociais e tinham o mesmo objeto: o massacre de Realengo, no Rio de Janeiro.

Auto-convencidas de sua certeza diagnóstica, as pessoas usaram as redes sociais durante a semana como um megafone do senso comum, onde atribuíam a (ir)responsabilidade desse tipo de evento até mesmo à imprensa, pois, se esta fosse censurada, argumentavam, os violentos não cometeriam crimes, pela certeza prévia de que seus atos não teriam repercussão. E eis o diagnóstico mais enviesado de todos, entre os ouvidos: “a Rede Globo realizou o sonho de Wellington, pois ele conseguiu o que queria: ficar famoso”. Ah, tá. A Globo deve ter inventado o rapaz e ensaiado seu desatino no Projac. E o resto da imprensa, inclusive a internacional, foi atrás?

CARPIDEIRAS - Diante da tragédia de Realengo, inaugural nesta categoria no Brasil, o senso comum, os picaretas de plantão e até alguns especialistas pareciam munidos de megafones e dispostos a gritar para o mundo, sempre diante de uma câmera, seus diagnósticos apressados e absurdos sobre o que teria motivado o atirador Wellington Menezes a repetir no Brasil um tipo de crime até então inédito na história da violência brasileira. É verdade que, diante de um crime da escala do massacre de Realengo, torna-se mais complexo afirmar quais são os limites da cobertura sensata por parte da imprensa e sobretudo da televisão, cujas câmeras parecem padecer eternamente de uma atração arrebatadora e fatal por lágrimas em close. Se forem de mães e professoras de 12 crianças entre 12 e 14 anos, a tentação está posta e não há professora, Patrícia Poeta ou câmera triste que não se transforme na mais autêntica das carpideiras eletrônicas e leve um país de telespectadores junto.

Diretamente proporcional à hipocrisia rasteira que depois de um massacre dessa natureza emerge parecendo saber tudo sobre a sua etiologia, é a hipocrisia cega que, no cotidiano, fecha completamente os olhos, prática inclusive da própria televisão de suas câmeras que dizem a tudo ver, e recusa-se a tomar conhecimento dos trancos e barrancos que fazem parte da rotina de toda e qualquer pessoa que não tenha recursos financeiros e tenha algum problema de saúde mental. Embora, para alguns, seja quase uma tentação recorrer ao Código Internacional de Doenças e parar na seção dos transtornos mentais para dar um verniz médico e patológico ao ato de Wellington de Oliveira, cadê a preocupação social, para além e aquém das tragédias e do sensacionalismo que as cercam, para após seu acontecimento, com as pessoas que têm doenças mentais severas e não encontram tratamento nas redes públicas de apoio da área de Saúde, conforme garante a Reforma Psiquiátrica?

Tanto quanto dizer que a culpa é do ateísmo ou da religiosidade, é patético associar diretamente e de forma exclusiva o massacre a uma (ainda) suposta esquizofrenia do atirador. Os esquizofrênicos existem, mas não saem por aí invadindo escolas e cometendo assassinatos em massa. Vincular o ato criminoso exclusivamente à suposta esquizofrenia é estigmatizar ainda mais quem precisa mais de tratamento e menos de reforço do preconceito que leva ao medo público. Nunca é tarde para lembrar que, na história dos transtornos mentais no mundo, as pessoas com esses distúrbios sempre foram muito mais maltratadas do que causadoras de maus tratos. Casos como o de Wellington, seja no Brasil, nos Estados Unidos, no Canadá ou em qualquer esquina do mundo, são exceções e não regra.

MATADOR - Antes de responsabilizar a Internet, os mulçumanos, o islamismo, o fundamentalismo religioso ou o ateísmo, é bom pensar que o crime arquitetado pelo atirador de Realengo trata-se de algo impossível de ser explicado pela racionalidade humana. Um garoto com um forte componente de transtorno psíquico (diga-se de passagem nunca notado por ninguém, ignorado na prática por todos que conviveram com ele duas décadas de vida) disposto, de forma doentia, a cometer um ato desta escala, o cometeria com ou sem revólver, numa escola ou numa feira, com bala ou com fogo, em 2011 ou 2017. O fato de a sociedade ficar atônita porque a violência, quando ‘gratuita’ e cometida contra a sacralidade da infância, precisa urgente de uma explicação para que a vida em sociedade continue fazendo algum sentido não é desculpa para oportunistas de plantão venderem diagnósticos medíocres e rasos de quem mal leu uma manchete de jornal e sai por aí explicando com quantos defeitos se produz um assassino em massa.

Nas mesmas edições noturnas em que os telejornais exibiam uma emocionante e concorrida missa de sétimo dia na escola do massacre, foi preso no Rio um vereador da cidade, André Ferreira, o Deco, apontado como chefe de uma milícia que assassinou pelo menos 30 pessoas nos últimos quatro anos e explora cinco bairros pobres. A pergunta é delicada e incômoda, mas aos oportunos e aos oportunistas, ei-la: quais os elementos que fazem de Wellington o monstro da capa vermelha da revista semanal e de Deco, igualmente matador e em nome não de um transtorno ou sofrimento psíquico solitário, mas por enriquecimento pessoal, ser objeto de aplauso de milhares de eleitores? A propósito, durante esta semana, houve, em Salvador, uma passeata organizada pelos próprios pacientes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Salvador, inconformados com a precariedade do atendimento, gerada pela crise na saúde municipal. A imprensa veiculou? Se um deles, ao invés de organizar um protesto público reivindicando tratamento, puxasse uma faca num ônibus, certamente seria manchete.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 17 de abril de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 10 de abril de 2011

Teleanálise: Bolsonaro e a Cova Rasa

Malu Fontes 


O deputado federal Jair Bolsonaro é um personagem recorrente da direita galhofeira nacional. Desde que ingressou na vida parlamentar, Bolsonaro nunca atravessou um mandato, ou um ano sequer, sem aparecer nos jornais e telejornais defendendo algo de muito grosso calibre ou de muito baixo calão. A defesa da pena de morte e da tortura como método são alguns dos temas mais delicados do repertório parlamentar e corriqueiro de Bolsonaro.

A sorte de quem até hoje sabia que ele não passava de um surtado com mandato era o alívio de saber, também, que quase ninguém Brasil afora sabia da existência do deputado. O diabo é que, desta vez, por ter pegado carona na fama de Preta Gil e do CQC de Marcelo Tas, Bolsonaro ficou famoso nacionalmente. E fazendo exatamente o que lhe faz experimentar orgasmos múltiplos: ofendendo e discriminando. Desta vez os alvos foram os negros e os homossexuais.

LIMÃO - O barulho feito em torno de Bolsonaro e de suas últimas falas discriminatórias, episódio encontrável a um mero clique em qualquer site de buscas na web, talvez merecesse ser completamente ignorado pelos mais sensatos, dado o absurdo do seu teor. No entanto, apesar da cantilena de certos setores da sociedade e da intelectualidade brasileira, segundo a qual nunca fomos nem somos racistas, e da escala crescente de crimes violentos e assassinatos registrados nos últimos anos contra homossexuais, é bom que o preconceito manifesto, venha ele de onde ou de quem vier, seja rebatido e tratado como se deve, para não criar limo nem estimular plateias insanas ávidas por um porta-voz de ideias turvas e enviesadas.  

Um dia, um grupo de garotos bem nascidos, em plena Avenida Paulista, São Paulo, espatifa o vidro de lâmpadas fluorescentes, usadas como bastão de açoite, contra o rosto de rapazes nos quais enxergaram comportamentos homossexuais. No outro, a torcida de vôlei de um ginásio inteiro em Minas Gerais hostiliza um jogador xingando-o de bicha a cada vez que ele tocava na bola. Antes, durante e depois, jogadores de futebol brasileiros e negros são reiteradamente chamados de macacos em campos da Europa. Aí, vem um deputado falando de negros e homossexuais como se falasse de uma epidemia maldita. Ou pega-se o limão e faz-se uma limonada, aproveitando o preconceito para constranger e punir quem o promove, ou faz-se de conta que é assim mesmo e opta-se explicitamente pela tolerância diante da violência explícita cometida por quem tem mais poder e, consequentemente, direito de abusar contra toda e qualquer pessoa a quem julga diferente de si.

100 DIAS - Na mesma semana em que Bolsonaro divertiu-se, orgulhoso, ao ser retratado como Hitler em um cartaz de um grupo de manifestantes no Congresso, argumentando que só se irritaria se a retratação lhe inserisse um brinco, na mesma semana em que o jogador Michael resolveu levar os xingamentos que recebeu à Justiça, o corpo de uma menina de 17 anos foi encontrado, de cabeça para baixo, esfaqueada, numa cova rasa, no interior de Goiás. Um fazendeiro e seu filho são acusados de assassiná-la em janeiro, pelo fato de a vítima manter um relacionamento amoroso com a filha do acusado, também adolescente. O Jornal Nacional, tão cioso em noticiar casos de violência contra o adolescente, parece ter preferido silenciar sobre o caso, mesmo porque, na edição do dia em que a notícia veio à tona nas outras emissoras, o jornal de Fátima e Bonner estava por demais feliz em anunciar solenemente, e com antecedência de quatro anos, a campanha eleitoral em torno da candidatura de Aécio Neves à Presidência da República.

A popularidade de Dilma Roussef em seus primeiros 100 dias de mandato deve ter precipitado o alvoroço tucano. E, até onde se sabe, para o lançamento oficioso da campanha tucana, certamente ninguém se deu ao trabalho de perguntar a José Serra, o candidato canônico do PSDB, o que ele achava. O discurso de Aecinho, como lhe chamam os íntimos globais, foi o assunto político dos bastidores e da cena do telejornalismo político durante a semana. O fato é que, do ponto de vista televiso, o telespectador, coitado, quando sequer tinha se dado conta que uma campanha eleitoral havia acabado, eis que outra já começou.

MELANINA DO CUNHADO - E voltando a Bolsonaro, incomodado por demais em ser chamado de racista e nem um pouco por ser taxado de homofóbico, trouxe a seu favor para a imprensa e para os movimentos sociais que o acuaram a velha prova clássica das elites brasileiras quando precisam de provas para jurar que amam os negros e a negritude. Apresentou o retrato de um cunhado, cujo tom de pele tem alguma melanina a mais e lançou ao país uma pergunta que, para ele, calaria os argumentos de um país inteiro duvidante da sua tolerância. Apontando para o tom de pele do cunhado, inquiria seus interlocutores: “como eu posso ser racista se esse cara é meu cunhado?”. Diante de argumento tão incontestável, quem haverá de contradizê-lo?

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 10 de abril de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

domingo, 3 de abril de 2011

Teleanálise: "A Tese da Vizinhança"

Malu Fontes


Malu Fontes, professora e jornalista
Pouco acostumado a grandes operações policiais, como as empreendidas há mais de uma semana, em Salvador, na região do Nordeste de Amaralina e depois no Calabar e Alto das Pombas, o telejornalismo local deu sinais de que poderia, ou poderá, incorrer em erros capazes de gerar consequências e riscos para os moradores. Se em um primeiro momento as operações coordenadas pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia podem dar aos moradores desses bairros e à opinião pública uma idéia de alívio a ser celebrado contra o até então domínio do poder do tráfico, a exemplo do que vem ocorrendo no Rio de Janeiro com a implantação, em vários morros, das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), em Salvador a banda ainda está tocando muito diferente de lá e não é exagero afirmar que nada há de concreto a se comemorar.

CATIVEIRO - Embora, desde o início, a operação policial realizada no complexo de bairros localizados na região do Nordeste de Amaralina (compreendendo as áreas de Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho, Vale das Pedrinhas e o próprio Nordeste) tenha sido anunciada como pontual, com duração de apenas um fim de semana, o fato é que, diante dos moradores, as emissoras de televisão comportaram-se no primeiro dia como se todas as forças de apoio institucional do Estado tivessem desembarcado de mala e cuia nesses bairros. Na primeira manhã de uma operação com data para acabar, as câmeras, microfones e repórteres esquadrinhavam moradores como se todos já pudessem ser abertamente tratados como membros de um cativeiro libertados para sempre pelas forças de bem e de paz do Estado.

Qual a justificativa de uma emissora de TV para mostrar um senhor idoso, dar-lhe o nome, mostrar sua casa, incluindo fachada, cor de parede, rua e detalhes dos adereços das paredes, dizendo-se super contente com a ocupação policial e queixando-se da ação dos bandidos? Tanto é direito dele afirmar isso quanto das emissoras de TV contar isso a seus telespectadores. Mas, por que, quando é do interesse das emissoras, para denunciar poderosos, por exemplo, elas sabem muito bem usar de expedientes técnicos que distorcem rostos, escurecem cenários, alteram vozes? Que seu fulaninho queira dar entrevista, é direito dele e sorte das emissoras. Mas seria para não incorrer no erro no paternalismo e da tutela que o repórter, o editor, o câmera, não poderiam atribuir a esses personagens um tanto de ingenuidade ou inocência? Não bastaria imaginar esses entrevistados tendo que se ver, na semana seguinte, sem a presença ostensiva da Polícia em sua rua e sem as poderosas câmeras de TV que poderiam vir em seu socorro, acaso um dos donos do pedaço volte e, devidamente envenenado por conta da entrevista, queira dar-lhe algum tipo de lição? Ou não é esta a lógica dos homens do tráfico nos torrões onde atuam?

PERDER OS DENTES - Outro elemento repetido à exaustão pela opinião pública que se manifestava na TV, no jornalismo impresso e nas ruas era a comparação inevitável com as UPPs no Rio de Janeiro. Pouco ou nada informada sobre os projetos, os critérios ou as estratégias de planejamento da Segurança Pública para começar essas operações pelo Nordeste de Amaralina e Calabar, a população tende a imediatamente entendê-las como equivalentes às do Rio, quando, na verdade, há diferenças estruturais que seria melhor não adjetivar de tão abissais. Nas UPPs, pelo menos é o que se prega oficialmente, quem adentrou morros adentro não foi apenas a Polícia, mas o Estado, com coleta de lixo, posto de saúde, iluminação, serviços. Sobre isso, ainda não se fala.

Os mais deslumbrados com as pirotecnias do BOPE em Tropa de Elite e que veem a solução para a violência de Salvador em munição e heróis, em capitães Nascimento às dúzias e em tiros e armas para tudo o quanto é lado, referem-se às operações com pessimismo, mas atribuem seu fracasso à causa errada. Dizem que a Polícia Baiana não tem cacife para fazer o que se fez no Rio. Ou seja, é o nordestino lamentando-se coitadizando-se mais uma vez, olhando para o sul maravilha e se achando sem cartucheira e munição. O problema é a estrutura, estúpido, não a conjuntura, poderia-se dizer. Não tem BOPE, Capitães Valentões nem cacife de filme de Hollywood que funcione enquanto os meninos e as meninas do Calabar ou do Nordeste de Amaralina não tiverem uma escola decente, enquanto continuarem perdendo os dentes para as cáries antes da maioridade, ou enquanto, mesmo com um diploma de um curso profissionalizante embaixo do braço, continuem sendo rechaçados por seus eventuais empregadores porque estes têm medo de seus endereços.   

FITINHA DO BONFIM - Por fim, diante do estranhamento causado pela população de dezenas de outros bairros de Salvador que dizem sentir-se (e as estatísticas lhes dão razão) mais acuados pela violência e pela onda de homicídios que lambe a cidade do que os bairros objeto das operações até agora, sobretudo nos finais de semana, não custa nada o Governo do Estado explicar a todos por que é mais importante, estrategicamente, sufocar o tráfico no Calabar e no Alto das Pombas do que em Narandiba, no Arenoso, no Uruguai ou ao longo do Subúrbio Ferroviário, por exemplo.   

E é preciso explicar também como será possível usar como laboratório de treinamento policial, em termos de ocupação, um local com cerca de 20 mil moradores (Calabar e Alto das Pombas) e aplicar os resultados em bairros infinitesimamente mais violentos e com 200, 300, 400 mil moradores. Mais difícil é convencer as pessoas de que os ambulantes de bugigangas do Pelourinho e do Bonfim são fofíssimos e agradabilíssimos aos olhos dos ‘turista’, ao ponto de os segundos ficarem amicíssimos dos primeiros enquanto compram uma fitinha do Bonfim superfaturada e com poderes hiperbolizados. E isso a propaganda da Bahiatursa faz tão bem que tem até quem acredite. Desde que more fora de Salvador e nunca tenha vindo aqui, claro. Enquanto essa explicação não é dada, para os mais pobres e encurralados dos demais cantos da cidade fica prevalecendo a tese de que os bairros até agora escolhidos o foram não em função do que há dentro deles, mas fora, ao redor: a vizinhança. E ela é rica.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 03 de abril de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com