sábado, 19 de novembro de 2011

Teleanálise de Malu Fontes | "O bom selvagem e o maus civilizados"

Malu Fontes, professora e jornalista
Durante a semana, a televisão mal falou de outra coisa que não fosse a prisão de Nem, o chefe do tráfico na favela carioca da Rocinha. Sim, o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, continuou no pau de arara das denúncias, mas como se trata do sétimo ministro com esse roteiro, o telespectador já sabe mais ou menos como esse tipo de novela deve acabar e preferiu migrar com toda a sua atenção para Nem e a Rocinha. Todo o roteiro da prisão de Nem e a seguida operação de invasão dos órgãos de segurança pública do Rio à Rocinha foram Ibope certo, pois desde Tropa de Elite, os filmes, cenas dessa natureza parecem se tratar do episódio 3 do blockbuster de José Padilha.

Para além de toda a cobertura da TV sobre a prisão de Nem, que começou com um episódio mais que novelesco envolvendo um carrão preto ocupado por homens que se diziam do Consulado da República do Congo, descendo às duas da madrugada um morro no Rio de Janeiro, dois detalhes chamaram atenção: o brilho dos cachos encaracolados e negros como a asa da graúna da cabeleira de Nem (que até horas atrás a TV apresentava ao país num retrato de um malandro de cabelo aloirado de tinta), e a reação da imprensa ao telefonema afetuoso que o traficante deu para a mãe assim que chegou à Delegacia da Polícia Federal. Sim, a cabeleira negra e brilhante ao ponto que nenhum umidificador de cachos é capaz de garantir é coisa que só mulheres devem notar, mas, o que dizer do espanto com que Deus e o mundo reagiram ao pedido que o preso fez à mãe para que os filhos (sete, dois deles adotados) não faltassem às aulas apesar do ocorrido?

TESTAMENTO - A reação da audiência ao telefonema de Nem e à referência à educação dos filhos foi se transformando no que desde o início já indicava ser: as visões caricatas e maniqueístas que a intelligentsia tem de líderes do crime. Ou são monstros à imagem e semelhança de Hitler, que apenas substituem câmaras de gás por microondas de pneus em chamas, ou verdadeiros Robin Hoods com uma inteligência e visão social MUITO acima da média. A imprensa se mostra especialmente talentosa literariamente quando se trata da narrar aqui e ali os perfis da versão Robin Hood da crônica policial brasileira. Não raro, todos os males da favela são de responsabilidade do tráfico, essa entidade abstrata sem corpo, rosto e nome. Já os traficantes, os donos do pedaço, estes parecem ter um especial jeito de seduzir os formadores de opinião que deles mais se aproximam. Não raro são descritos como gentis, ajudantes de primeira hora que nada deixam faltar aos mais pobres da comunidade, donos de uma visão critica da sociedade e por aí vai.

No caso Nem, por exemplo, não foram poucas as vezes que foi descrito como um sujeito família, justo, bom pai, bom filho, que sempre andava desarmado e nunca teria matado ninguém. Como maniqueísmo nunca deu certo, a não ser para alguns poucos e raros personagens que tiveram a sorte de pertencer ao elenco do Velho Testamento, falta alguma coisa que ligue os pontos dessa história de violência recente na Rocinha, já que Nem era esse menino tão fofo, quando de perto. Se ele era o chefe, quem ordenava as mortes das pessoas cujas ossadas foram achadas pela Polícia na ocupação da Rocinha? Aliás, relações públicas são tudo na vida política. O fenômeno das UPPs começou como invasão de morro pela polícia, evoluiu para ocupação de área a serem pacificadas e hoje atende, segundo os governantes, como Libertação de Comunidades Conflagradas. Oui.

Quanto à visão terna de Nem como o menino desarmado, é claro que ele não precisaria se dar ao trabalho de andar armado. Afinal, para que servia o exército de homens comandados por ele que lhe davam proteção armada dia sim e noite também, em qualquer movimento que fizesse e até mesmo enquanto dormia? Sobre nunca ter matado ninguém, quem duvida? O que não lhe faltavam eram matadores que cumprissem ordens. Comandar uma área com 70 mil moradores onde a Polícia sequer podia pensar em subir para não por seus homens em risco sem ter fama de matar gente soa quase risível. Matar é coisa feia. Mandar? Talvez nem tanto, né?

ABUSADO - O caso Nem e a forma como alguns coleguinhas de imprensa o descrevem não deixa de repetir um pouco o deslumbramento de alguns meninos e meninas bem nascidos que vivem nas redações: acreditam mais em Robin Hood do que deveriam e esquecem de dar às versões de carne e osso do personagem um tantinho de humanidade. Ninguém é tão bom ou tão mau. Seja Nem, Paulo Maluf ou João das Couves, são homens sob as peles que habitam e toda a sorte de contradições. Já foram ditas coisas elogiosas sobre facetas de lideranças célebres do crime, como Marcinho VP (não o Nepomuceno, que está preso e vivo, mas o morto, que dá nome ao livro Abusado, de Caco Barcelos) e Marcola, do PCC paulista. Deste último já se disse que domina mais os clássicos da literatura mundial do que toda a Academia Brasileira de Letras reunida. Na hora que um deles mata um sujeito errado, como fez Elias Maluco com Tim Lopes, aí, o jornalismo-alice arregala os olhos.

Escrever frases mezzo deslumbradas sobre o caráter humano de Nem, não é outra coisa senão uma forma bonitinha de manifestar preconceito de classe. Basta um sujeito com ficha criminal saber dizer uma frase com sujeito, verbo e predicado para ser considerado um samaritano em potencial. Há quem pense que bandido concreto é feio, sem dentes, vive com uma bazuca no ombro e mata pessoalmente uma dúzia por mês. Essa é a visão distorcida de quem acha que Nem é o bom selvagem porque quer educar os filhos e que pais de classe média que negligenciam a educação como valor são os maus civilizados. Sim, traficantes podem ser pais muito zelosos. Pais honestos podem ser negligentes com educação e há, no Congresso, parlamentares que fizeram e fazem muito mais mal ao Brasil do que Nem fez em sua breve carreira. Mas nem por isso, nenhum do trio deve ser condenado à morte ou guindado à condição de herói. 

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 21 de novembro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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