Malu Fontes, professora doutora e jornalista |
Se há um aspecto com o qual o telespectador assíduo e atento dos telejornais está acostumado é com a repetição de cenas nas quais as câmeras de TV, ocultas ou não, denunciam uma prática criminosa ou desumana e no dia seguinte o Estado está no mesmo local, como se convocado e pautado pela imprensa. Em um país onde as coisas funcionam, a ordem mais natural é aquela em que o Estado e suas ações pautam a imprensa, no sentido de transformar tais ações em notícias ou cobrar dos gestores públicos o cumprimento destas em grau satisfatório.
No contexto brasileiro, no entanto, há omissões crônicas do Estado, práticas sociais criminosas que se repetem há anos e para que o poder público venha à sociedade prestar contas ou oferecer possibilidades de solução é preciso que a imprensa, sobretudo a televisão, chegue antes e mostre a barbárie da vez. Um exemplo clássico desta prática se deu na primeira sexta-feira de setembro, quando o Jornal Nacional exibiu uma reportagem na qual denunciava a prática sistemática e ostensiva do tráfico e consumo de drogas, aliada ao roubo e à agressão física dos consumidores pelos traficantes, no centro histórico de Recife.
GLOBETROTTER - Desnecessário dizer que tal cenário exibido pelo Jornal Nacional não se tratava de algo episódico, de mais ‘um caso isolado’, como adoram dizer os gestores públicos quando são confrontados de calças curtas diante das mazelas sob suas pastas. O fato, registrado com câmera oculta pela equipe do telejornal, é algo que se repete desde tempos imemoriais naquele local sem que o Estado tomasse uma atitude pelo fato de as coisas serem daquele ou de outro modo. No dia seguinte à exibição da reportagem-denúncia, a própria emissora já estava no local para acompanhar as medidas tomadas pelo Estado: o policiamento havia sido amplamente reforçado no centro histórico, batidas foram feitas, alguns suspeitos foram presos e o movimento criminoso, miraculosamente, havia desaparecido.
A primeira pergunta que deveria ser dirigida, não ao Governo de Pernambuco, à Polícia de Recife, mas a toda e qualquer instituição pública em contexto semelhante é: as medidas foram adotadas porque uma determinada prática criminosa fora realizada em um determinado espaço ou o governo agiu porque o Estado hoje parece agir não para atender às necessidades dos cidadãos, mas para dar uma resposta e uma satisfação para que um determinado meio de comunicação filme, narre, relate? Ou alguma autoridade quer fazer a opinião pública crer que a Polícia de Recife, por exemplo, nunca tomou conhecimento de que o cenário nas noites de determinados points do centro histórico da cidade era aquele há anos? No entanto, a presença policial estava ali para dar uma satisfação e uma matéria ao Jornal Nacional e aos seus telespectadores. O fluxo das ações públicas parece invertido: é o Estado que segue a televisão, indo atrás dela para se justificar quanto às suas incompetências e omissões. Só reage quando um flash estoura na cara.
Como a Rede Globo é líder de audiência em seus telejornais, torna-se, automaticamente, uma grande acionadora dos poderes públicos. De modo geral, é como se os governantes vivessem dormindo em berços esplêndidos e só se dessem ao trabalho de sair dos seus cochilos modorrentos quando a imprensa lhe gritasse na cara, estampando um retrato social feio. Esses retratos podem existir à vontade, desde que não sejam exibidos jornalisticamente, pois só quando isso acontece é que os fatos parecem ganhar vida para gestores públicos. Um exemplo concretíssimo disso é o projeto Jornal Nacional no ar, o avião do jornalismo da Globo que cruza o país, um globetrotter nacional da notícia in loco.
RICARDO TEIXEIRA - Como na edição do dia os apresentadores anunciam onde o avião estará no dia seguinte e fazendo o quê, prefeitos, governadores, secretários, delegados e tudo o quanto é gato pingado têm se virado nos 30 para maquiar realidades em menos de 24 horas para tentar ficar bem na fita na edição do telejornal no dia seguinte. Não, não é apenas Ricardo Teixeira que compartilha a tese dos governos militares de que um fato ‘se não saiu no Jornal Nacional, não aconteceu’.
Um exemplo recente de que o Estado vive a reboque das denúncias feitas na televisão foi o episódio denunciado nos telejornais em que uma mãe em trabalho de parto foi recusada por mais de uma vez em várias maternidades de Belém, resultando na morte dos dois bebês. No dia seguinte o avião do Jornal Nacional estava ‘na maternidade’ e o que não faltavam eram autoridades cheias de boa vontade prometendo a Deus e à Globo abrir inquéritos, fazer auditorias, demitir e punir culpados. Alguém acredita que alguma medida punitiva seria adotada se o fato não tivesse sido denunciado na imprensa por várias emissoras de TV e por vários jornais? Ou que o tratamento dado à mãe de Belém é muito diferente do recebido diariamente por milhares de mulheres no resto do país?
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 11 de setembro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com
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