domingo, 25 de março de 2012

Teleanálise | ''Novo jornalismo em tempos de corrupção''

MALU FONTES

Há uma semana o Fantástico levou ao ar uma grande reportagem, classificada pelo próprio programa como do gênero jornalismo investigativo, na qual a Rede Globo inaugurava em seus protocolos jornalísticos um método novo de apurar informação para a construção de uma reportagem em profundidade. À frente da reportagem, Eduardo Faustini, o repórter de rosto desconhecido mais famoso do telejornalismo brasileiro, pois todas as suas matérias são feitas com a estratégia da câmera escondida e todas provocam repercussão nacional. Não raro as reportagens de Faustini levam gente para a cadeia e para os tribunais.

Desta vez, Faustini e o Fantástico deram um passo além na estratégia da câmera escondida. Com o propósito de denunciar como funciona a máfia de empresários especializados em fraudar concorrências públicas em hospitais universitários, o jornalista lançou mão de um recurso inédito na emissora: ‘tornou-se funcionário’ de um hospital do Rio durante meses e, combinado com a direção real da unidade e certamente muito bem assessorado pelo departamento jurídico da emissora, lançou editais de concorrências falsas para atrair empresários de má fé, habituados a embolsar dinheiro público nesse tipo de expediente.

RATOEIRA - O que a emissora e Eduardo Faustini fizeram foi montar uma armadilha para pegar, como se pega rato em ratoeira, representantes de empresas que vivem de lesar cofres públicos fraudando e combinando licitações, realizando concorrências viciadas e mentirosas e fornecendo produtos a preços super faturados, muito além dos valores praticados pelo mercado. É aí que, do ponto de vista do jornalismo e do telejornalismo, começa o embate em torno de uma reflexão: esses fins justificam, jornalisticamente, os meios? O fato de os níveis de corrupção no Brasil atingirem patamares tão alarmantes, justificam o fato de o telejornalismo assumir o papel das instituições públicas e não apenas fiscalizar a esfera pública, mas montar armadilhas para pegar corruptos e entregá-los às autoridades?

Dificilmente se encontrará um telespectador disposto a discordar da Rede Globo e de seus profissionais de imprensa por armarem uma arapuca desta natureza, por literalmente criarem um fato e transformá-lo em notícia bombástica. Sim, aqueles empresários têm aquelas práticas como um habitus de há muito enraizado e não são apenas aqueles. Mas, daquela vez, era tudo fake, era uma armadilha, o que significa dizer que o quê a Globo fez não foi noticiar um fato, simplesmente. Ela criou um fato específico para depois noticiá-lo. O cenário já existia, é verdade, mas aquele fato específico foi criado.  


RAPINAGEM - Após criar o fato, fazê-lo notícia, mostrar os culpados em flagrante e apresentá-los ao país já após um rito sumário de condenação, a emissora foi esfregar sua competência de agente fiscalizador na cara dos poderes públicos que, aos olhos da população, não passam de uma Carolina banguela e demente na janela vendo os recursos públicos serem devorados pela rapinagem de empresários corruptores, com a conivência de autoridades públicas corruptas. Usando as imagens da armadilha, todos os telejornais da emissora passaram a semana esfregando-as na cara de senadores, deputados, autoridades policiais e jurídicas, ministros, órgãos de fiscalização das contas públicas, prefeito e governador.

A matéria do Fantástico é a tradução do jornalismo assumindo para si parte do papel que deveria ser exercido com eficiência pelo poder público. Tendo desempenhado-a com eficiência auto-reconhecida e auto-celebrada, a TV volta-se para a opinião pública e para as autoridades e grita: estão vendo? Eu consigo pegar ladrões. E vocês, o que estão fazendo? Como soldados de chumbo capazes de matar a mãe para não perder a chance de ganhar um minuto no Jornal Nacional, todas as autoridades públicas, com o rabo entre as pernas pela omissão de todo dia, prometem tudo à Globo: vão investigar, averiguar, instalar CPI, buscar o dinheiro de volta, suspender contratos, prender, punir, acabar com essa bandalheira e o diabo a quatro. Vão nada... Só ratinhos de pequena desenvoltura e pelo curto são mansos o suficiente para cair nesse tipo de armadilha. Os big boss das grandes construtoras, por exemplo, onde rolam as grandes águas sob as pontes, jamais terão esse tipo de 15 minutos de fama no Fantástico. 



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 25 de março de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA;maluzes@gmail.com

segunda-feira, 19 de março de 2012

Teleanálise | "De estilingue a vidraça"

Malu Fontes

Alguém já disse que estatística é a arte de torturar números até que eles confessem o que se pretende que eles confessem. E ainda segundo essa máxima, os números sempre confessam. Não deve ser diferente quando se trata de relativizar em proveito próprio os percentuais de audiência medidos pelo ibope para um determinado produto de televisão cuja estreia foi numericamente muito mais para lá do que para cá. Esse foi o caso da estreia do programa TV Folha, no último domingo, das 20h às 20:30h, na TV Cultura, emissora pública do Governo de São Paulo mas com programação nacional, seja por retransmissão de parte de sua programação por emissoras regionais nos estados ou por TV por assinatura. 

Anúncio da estreia da TV Folha. Foto: divulgação

PROMESSA - Não é segredo para ninguém que se interessa por televisão e por políticas públicas de radiodifusão que a TV Cultura de São Paulo vem enfrentando nos últimos anos graves problemas financeiros, administrativos e de gestão, o que tem levado o Governo de Geraldo Alckmin a demitir dezenas de funcionários. Nesse contexto, um dos maiores e mais prestigiados jornais impressos de circulação nacional, a Folha de S. Paulo, comprou meia hora na grade da emissora e vem há semanas prometendo revolucionar as noites televisivas de domingo, sempre reiterando que o telespectador não tem nenhuma opção na TV nas noites dominicais. Como promessa é coisa da qual se deve duvidar sempre e infeliz de quem aposta na veracidade da concretização delas, o que o público de fato pôde ver teve muito mais de frustração do que de revelação ou revolução, seja de formato ou conteúdo.

O programa, visto sem paixões, é o que se pode chamar de bonitíssimo mas ordinário. Com mais vinhetas modernosas que informação e, como já dito, com mais promessas que informação de qualidade como produto entregue ao telespectador, a sensação que seu formato, sua forma e seu conteúdo deixaram foi a de ser um comercial bem feito para angariar novos ou manter velhos leitores da Folha no dia seguinte; um convitão publicitário para que o leitor potencial fosse fisgado no dia seguinte, seja na banca real ou nas bancas virtuais das tecnologias digitais. Até mesmo os colunistas comumente mais compenetrados em seus textos curtos na plataforma impressa e digital do jornal resolveram se mostrar um tanto quanto histriônicos demais na triunfal estreia televisiva. De modo geral, embora meia hora em televisão seja muito tempo, a impressão era que se tinha informação demais, tempo de menos e faltavam estratégias para reter a atenção do telespectador. Algo meio ‘tudo ao mesmo tempo agora’.

BISPOS - Como o jornal que pariu o TV Folha sob promessas reiteradas de revolucionar as noites televisivas de domingo faz diariamente contundentes críticas aos produtos televisivos das emissoras que disputam a tapa entre si os índices de audiência, o programa que foi ao ar não escapou da maldição da metamorfose do tipo ‘de estilingue a vidraça'. Já no dia seguinte, a TV Record, volta e meia objeto de crítica não apenas televisiva mas objeto de grandes reportagens da Folha sobre os mundos e os fundos dos bispos que a gerem, bateu no TV Folha sem dó nem piedade: esteticamente, politicamente e numericamente. Enquanto a própria Folha anunciava que o seu programa fez a audiência da TV Cultura crescer, exatamente nesses termos, a Record tripudiava anunciando os três décimos de crescimento como um retumbante fracasso.

No horário do TV Folha, a TV Cultura detinha até domingo passado uma audiência média de 0,7 pontos percentuais, segundo o Ibope. Mesmo com toda a propaganda do novo programa, com direito a anúncio de página dupla, o TV Folha teve apenas 1,0 ponto de audiência. Os três décimos que foram anunciados pelo jornal sem pudor como crescimento da audiência da Cultura foram tripudiados até mesmo por sites cuja linha editorial é atuar como observatório da mídia. Não apenas a Record, mas pesquisadores da área de Políticas Públicas de Comunicação, classificaram a parceria entre o jornal e a emissora pública paulista como venda de espaço em emissora pública para uso publicitário de produto privado, no caso, do jornal patrocinador do programa. Que venham as próximas edições revolucionárias ou, então, que cessem as promessas hiperbólicas.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 18 de março de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

Teleanálise | "Morrer na praia"

Malu Fontes


Duas mortes, dois assassinatos, ocorridos em um intervalo de menos de uma semana, em Salvador, traduzem o cenário de convulsão social e de insegurança em que a cidade e seus moradores vivem mergulhados. Tarsis Santos Lima, 17 anos, assassinado no dia 02 de março na Passarela de um shopping enquanto se deslocava para trabalhar; Natália Penhalosa Duarte, 19 anos, assassinada com um tiro na cabeça, no dia 06 de março, por um assaltante na praia. Na TV, a propaganda oficial do Governo Federal diz há algum tempo que “país rico é país sem pobreza”. Não, ninguém há de questionar que o Brasil ainda tem e terá por muito tempo bolsões gigantescos de pobreza, apesar das transformações, para melhor, em termos de desenvolvimento econômico também decantadas dia sim e outro também nos telejornais que anunciam a chegada de muitos ex-pobres ao paraíso, chamado agora de Classe C.

Entretanto, o que a cobertura diária da imprensa e menos ainda da TV não dá conta é de esmiuçar as distâncias abissais que parecem ir se constituindo entre essa melhoria de vida da população e o crescimento assombroso dos índices de violência, sobretudo homicídios e latrocínios, em algumas grandes cidades brasileiras. E Salvador está entre os casos de destaque. Por mais que a TV, até por razões comerciais de sobrevivência, anuncie uma Bahia linda e eternamente sustentada numa tal magia que cada vez parece só funcionar na tela e com trilha sonora impecável, como convencer, hoje, sem recursos imagéticos e efeitos especiais, apenas no gogó, um turista a optar por Salvador para uma temporada?

FACÃO - O sistema de transporte inexiste, a cidade é mal cuidada, as opções de lazer só mínguam e parecem restringir-se ao Carnaval e a quem gosta de axé, ir ao Centro Histórico é uma sessão de luta corporal com vendedores e pedintes inconvenientes e grosseiros e ir à praia se tornou um comportamento de alto risco. O que parece um vendedor de cocos revela-se um assaltante armado com um facão ameaçando decepar mãos e cabeças de banhistas ao assaltá-los e usar uma máquina fotográfica ou um celular é um pedido explícito para receber um tiro no meio da testa. Qual o conceito de turismo numa cidade mergulhada neste contexto? Se assim, logo um slogan do tipo “venha a Salvador e ganhe uma chance de morrer na praia” fará mais sentido do que convidar um turista para um passeio no Abaeté. Aliás, quem se atreveria?

VOYEUR - Quanto ao assassinato do, no ou nas imediações do shopping, o retrato da barbárie que o circunda é o mesmo que traduz a da praia. O que o motivou, diz-se, teria sido a tentativa de ‘seguranças’ das imediações de impedirem um assalto a uma mulher na passarela que dá acesso ao estabelecimento, coisa corriqueira no local, também se diz. Em reação a um desses episódios, ‘homens de preto’ teriam atirado a esmo e matado Tarsis Santos, vendedor de milho e a uma semana de alistar-se no Exército. A moral dos dois fatos e das repercussões noticiosas que norteiam os dois casos é: os mais pobres devem evitar a passarela do shopping para fugir do risco de serem mortos por seguranças ou assaltados por ladrões e os turistas e banhistas devem evitar as praias de Salvador a qualquer custo, pois, abandonadas, sem infra-estrutura e sem segurança, podem ser um convite à morte pela violência. Não, ninguém quer morrer na praia. O programa seguro que parece restar é bancar o voyeur diante dos veículos de comunicação consumindo as mais novas estripulias sexuais e amorosas do prefeito da cidade.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 11 de março de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA; maluzes@gmail.com

Teleanálise | "A queda do Fantástico é da televisão aberta"

Malu Fontes

Ao completar duas mil edições no ar no último domingo, o Fantástico apareceu em praticamente todos os veículos de imprensa, incluindo o cordão infindável de sites, blogs e portais na Internet não pelo aniversário e pelo fôlego longo, mas por sua perda de audiência. A notícia era a de que a principal revista eletrônica da televisão brasileira havia perdido 38% de sua audiência em pouco mais de uma década. Se no ano 2000 o programa tinha uma audiência média de 34,3 pontos, ao longo de 2011 a média foi de 21 pontos. Os dados são do Ibope e cada ponto equivale a 58 mil domicílios na Grande São Paulo.

O que chama atenção, no entanto, é que o tom das notícias publicadas sobre a queda do Fantástico tem sempre um quê de comemorativo e parece querer ignorar completamente as mudanças ocorridas no cenário da audiência da televisão aberta no Brasil nas duas últimas décadas. O programa perdeu audiência? Sim, é absolutamente verdade. Mas, as duas outras perguntas a serem feitas simultaneamente são: sim, mas quem não perdeu? Sim, mas quem ganhou? Só assim, verifica-se que o Fantástico e sua derrocada de telespectadores, comemorada sem disfarce pela concorrência, é tão somente um sinônimo não apenas para a queda de audiência da televisão brasileira, mas para a mudança de comportamento da população, da sociedade.

GENÉRICO - O fato é que se o Fantástico perdeu quase 40% da audiência em quase duas décadas, nenhum dos seus concorrentes conquistou esse público perdido. Ele foi para outro lugar. Para a Internet, para o vídeo game, para a TV por assinatura, para o DVD, para o Blu Ray, para os tablets, para os smartphones e não para a tela das emissoras que dariam um doce para abocanhar esse público que escapuliu das noites globais de domingo. Só a título de ilustração, o Domingo Espetacular, uma espécie de genérico criado pela Record para competir com o Fantástico, nunca sai da metade da audiência do seu modelo. E não é verdade que os dois não se esforcem para se aproximarem um do outro e ambos da audiência, o que parece não estar funcionando.


Enquanto o Domingo Espetacular patina na metade da audiência do concorrente apelando para reportagens modorrentas que parecem durar uma eternidade e que só convidam o telespectador a dormir ou fugir via controle remoto em busca de algum dinamismo, o Fantástico parece cada vez mais com uma central de realities shows populares, disposta a tudo e mais alguma coisa para seduzir, abduzir e hipnotizar a nova classe C. A cada edição aparece algo mais esdrúxulo, como briga de parentes, bafafás em condomínios, apresentadores perdendo quilos, gente subindo num palanquete no meio da rua para mandar recado com um megafone para o diabo e o papagaio e agora filhos nunca reconhecidos pelos pais reivindicando seus nomes nos registros civis e, claro, produzindo lágrimas na audiência.


SUICIDA - Nesse cenário, com não apenas o queridinho para ser chamado de abandonado pela audiência, no caso, o Fantástico, mas todas as emissoras, na média, perdendo público para outras mídias, como se seus funis estivessem furados, deveria ser obrigação dos profissionais de imprensa que noticiam as quedas de audiência sempre prestar, ao leitor ou ao telespectador a quem se dirigem para informar, um servicinho jornalístico a mais e contextualizar o fenômeno.


A televisão aberta, e não o programa A, B ou C, é que está diante do desafio de reinventar-se. Não é o meio televisual que está em crise, mas o modo de produção de televisão comercial, na esteira das transformações provocadas nos últimos anos pelas novas tecnologias. Não se trata de risco de morte ou colapso, mas da alteração de cenários que jamais voltarão a ser os mesmos. A porca torce o rabo, no entanto, é quando se vê que, diante da fuga do público para formatos que este considera mais interessantes, o que prevalece é uma solução suicida dos canais abertos: produzir coisas cada vez menos interessantes aos olhos desse novo telespectador em processo de migração.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 04 de março de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA; maluzes@gmail.com